O EXÉRCITO E O PODER MODERADOR

 

 

 

        

      Muitos, se não todos os artigos escritos a propósito da passagem dos 50 anos do 31 de Março de 1964 não fazem qualquer menção à idéia (ou seria uma tese) fartamente difundida na Academia, segundo a qual as Forças Armadas desempenharam, durante a República, o papel semelhante ao representado pelo Poder Moderador no Império. Essa tese inspirou também o “brasilianista” Alfred Stephan no seu livro, de grande repercussão, sobre os militares e a Política no Brasil.

 

      A ocasião é oportuna para que se possa rever essa tese. A revisão é necessária para que se tenha, da República e das intervenções militares, uma visão mais clara e, provavelmente, mais correta.   

 

      Essa revisão deverá ser iniciada por uma leitura da Constituição de 1824. Somente à luz do que foi o Poder Moderador no Império poder-se-á afirmar que as Forças Armadas prolongaram ou não na República ─ em circunstâncias e forma diferentes, mas com o que seria igual propósito ─ a instituição imperial.

 

      Que é e como age o Poder Moderador no Império? É um Poder Neutro.  Delegado privativamente ao Imperador “para que incessantemente vele sobre a manutenção da Independência, equilíbrio, e harmonia dos mais Poderes Políticos” (Executivo, Legislativo e Judiciário), ele o exerce para nomear os Senadores; convocar a Assembléia Geral extraordinariamente, “quando assim o pede o bem do Império”; sancionar os decretos e resoluções da Assembléia Geral para que tenham força de lei; aprovar e suspender interinamente as resoluções dos Conselhos Provinciais; prorrogar ou adiar a Assembléia Geral; dissolver a Câmara dos Deputados nos casos em que o “exigir a salvação do Estado”, convocando imediatamente outra que a substitua; nomear e demitir livremente os Ministros de Estado; suspender os Magistrados; conceder anistia “em caso urgente, e que assim aconselhem a humanidade,e bem do Estado”. Consolidada a figura do Presidente do Conselho, o Imperador o escolhia e a ele cabia a tarefa de formar o Gabinete, que deveria sempre ter a aprovação da maioria da Câmara.

 

      As intervenções militares foram em grande número: 1889 (proclamação da República), 1893 (revolta da Armada), 1922 (os 18 do Forte), 1924 (revolução em São Paulo e início da Coluna Prestes), 1930 (a Revolução), 1935 (a Intentona), 1937 (o Estado Novo), 1945 (deposição de Vargas), 1954 (suicídio de Getúlio), 1954 (memorial dos coronéis), 1955 (a “Novembrada”, deposição de Carlos Luz e Café Filho), 1956 (Jacareacanga), 1959 (Aragarças), 1961 (tentativa de impedimento de Goulart), 1963 (revolta dos sargentos) 1964 (deposição de Goulart), 1968 (AI-5). Examinemos essas intervenções:

 

          1889 ─ O Exército depõe o Imperador e instala a República.

 

          1893 ─ A revolta da Armada não tem conseqüências institucionais.

 

           1922 ─ A revolta, de caráter corporativo, é limitada aos 18 do Forte de Copacabana e, por motivos outros, à Escola Militar.

 

‘         1924 ─ Uma revolução malograda, não uma intervenção. O mesmo se diga da Coluna Prestes.

 

         1930 ─ Uma revolução com grandes consequências institucionais, políticas e sociais, não uma intervenção.

 

         1935 ─ Revolta malograda, ideologicamente marcada por sua chefia, visando a uma transformação institucional. 

 

           1937 ─ Golpe de Estado chefiado pelo Presidente da República que assume poderes ditatoriais.

 

           1945 ─ Deposição do Presidente da República e entrega do Poder ao presidente do STF.

 

          1954 ─ Fevereiro – Grupo de Coronéis do Exército divulga manifesto contra o aumento do salário mínimo e a política do Ministro do Trabalho, Goulart. Os Ministros da Guerra e do Trabalho demitem-se.

                 ─ Agosto – Manifestação dos chefes militares pedindo a renúncia do Presidente e a entrega do cargo ao Vice-presidente da República. O suicídio de Vargas nem foi exigido nem foi induzido – foi auto-deliberado.

 

         1955 ─ Deposição de dois Presidentes para, meses depois, dar posse ao Presidente eleito.

 

‘        1956 e 1959 ─ Revoltas sem qualquer importância militar, visando à deposição de JK.

 

           1961 ─ Os Ministros militares tentam, sem êxito, impedir a posse de Goulart, Vice-presidente da República.

 

          1963 – Impedidos de candidatar-se, Sargentos revoltam-se em Brasília. Há combates.

 

      As intervenções de 1964 e 1968 fogem do quadro geral que procuramos estabelecer.

 

      As intervenções militares pouco tiveram do caráter “moderador” com que as revestimos depois de 1954. Com alguma licença interpretativa, poderíamos atribuir tal caráter à deposição de Vargas em 1945 e à “Novembrada” de 1955. Em 1945, conhecida a decisão de Vargas de renunciar, o respeito à Constituição de 1937, outorgada por golpe de Estado, foi solução proposta pelo General Dutra para evitar uma crise na hipótese de um General pretender assumir o poder. Em 1955, igualmente se respeitou, em termos estritos, a Constituição de 1946, e, ainda que o mote “retorno aos quadros constitucionais vigentes” deixasse claro que os Comandantes da tropa (e os políticos civis a eles ligados) pretendiam dar a entender que a Constituição tinha sido violada, o que havia, a rigor, era a propaganda de Lacerda que pregava que JK não deveria tomar posse.  

 

      De 1954 a 1964, houve profunda transformação no ethos militar, as Forças Armadas decidindo assumir o poder. Fator capital nessa mudança foi a pessoa política de João Goulart. Julgado pelos Coronéis em 1954 e pelos Ministros militares em 1961, foi condenado pelos Generais em 1964.

 

      O poder de editar Atos Institucionais, fechar o Congresso, cassar mandatos e expedir decretos-lei não se confunde com o Poder Moderador do Imperador. Abriu caminho para que os Generais conduzissem ao total isolamento atual das Forças Armadas na estrutura do Estado. E abriu caminho a que desaparecesse para sempre a figura do Totem, que Oliveira Viana tão bem identificou no Império.

 

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(publicado em 14/04  em “O Estado de S.Paulo”)

 

 

 

 

 

 

  

 

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