O GOVERNO DEVERIA SABER QUE O ESTADO NÃO RECUA

 

 

                                               

      A crise do Estado, a que me refiro com frequência, pode dar-se como explosão. Na França, o pavio foi aceso na greve da Gendarmaria sob o Governo Guy Mollet. A bomba explodiu na ação dos paraquedistas na Argélia, em 1958. Depois, enfrentando outra revolta, o General De Gaulle proclamou: “O Poder não recua!” e venceu!

 

     A crise pode também dar-se silenciosamente, como no Brasil de hoje, ainda que o pavio tenha sido aceso na renúncia de Jânio em 1961 e um petardo haja explodido em 1964 sem grandes efeitos: o velho edifício social e político permaneceu intocado, afora pequenas emendas para tornar sua fachada mais bonita. Hoje, a crise, silenciosa, corrói lentamente não apenas as instituições, mas também ─ o que é mais grave ─ as mentalidades.

 

      Muito bem. Foi um General quem disse que o poder não recua. Mas De Gaulle não era só um General; era, sim, Presidente da República, eleito pelo voto popular. Sufragado para manter o Estado uno e indivisível – soberano! No Brasil não se pensa no Estado; cuida-se do Governo e de como conservar o pequeno poder que ele dá a qualquer Presidente que se instale no Planalto.

 

      Tomemos dois casos que, aparentemente desconexos, traduzem idêntica realidade.

 

      O Secretário-geral da Presidência da República resolveu parlamentar com os Black Blocks para tentar evitar outras manifestações no estilo que esse grupo adota. O resultado ─ afora o rolo de papel higiênico que lhe jogaram para que entrasse no Itaquerão ─ foi nulo. Mas, se somos o Governo, aplaudiremos que se tenha evidenciado que respeitamos as manifestações populares, somos contra a repressão da PM de São Paulo e queremos resolver o problema com negociação civilizada. Os Black Blocks pensarão diferente: o Poder recuou, e podemos continuar nossa atividade, pois contaremos sempre com boa vontade!

 

     O fato em si, teorias à parte, é que o Poder Executivo negociou com particulares que violaram a lei e provocaram, com sua organização, não só a perturbação da ordem e do sossego públicos como danos ao patrimônio privado e público. Ao negociar com particulares que deveriam ter sido autuados pela Polícia Civil e processados pela Justiça, o Secretário-geral não apenas deixou claro que o poder recuou, mas que o crime pode compensar. Ou as ações dos Black Blocks não estão capituladas como crime no Código Penal?

 

     O outro fato, talvez mais grave, pois denota quem deveria, para sua segurança, cuidar da Ordem deixou-se levar pelo que hoje parece ser a moda politicamente correta: se a livre manifestação é livre, a PM que se recolha aos Quartéis até que seja fundida com a Polícia Civil (e seria fundida sem hierarquia?). Trata-se de folheto que editado por Protestos.org sob a chancela da FGV veementemente repudiado por esta instituição ensinando aos manifestantes em geral como proceder para evitar ser identificados pela repressão e processados ─ que usem máscaras! Como a lição fosse questionada, um professor de Direito Penal de uma Universidade Federal opinou: o livreto está amparado pela Constituição ─ livre manifestação do pensamento ─ e as manifestações igualmente, pois são a manifestação do que pensam os manifestantes. Pt viva a Constituição!

 

     Em 1946, o General Góes Monteiro escrevia a Sobral Pinto que o Estado Novo ─ que construíra juntamente com Vargas ─ não pudera realizar as reformas reclamadas em 1930 por efeito de o ditador ter-se deixado guiar pelo que ele, Góes, chamou de castilhismo-borgismo ─ organização política que vigorara no Rio Grande do Sul desde a proclamação da República. Ainda que Júlio de Castilhos não perfilasse idéias corporativistas, o Estado Novo construiu não apenas um Estado corporativo (Carta de 1937), mas buscou, com algum êxito, organizar a sociedade segundo iguais princípios (a organização sindical que criou pela Consolidação das Leis do Trabalho é disso a prova).

 

     Cuidando das relações de trabalho, dividiu a sociedade em “categorias profissionais”. Esse tipo de organização da sociedade, isolando uns de outros na sua atividade profissional, contribuiu para reforçar o individualismo e, ao mesmo tempo, impediu que os grupos sociais ─ quaisquer deles ─ tivessem uma visão do Brasil como um todo e formulassem, a partir dessa consciência, sua concepção de como deveria ser o processo político. Em suma, que tivessem uma visão do Estado, que, em si, traz uma visão do mundo.

 

     Enumerar as causas para essa crise do Estado seria um nunca mais acabar. Poderíamos nos fixar em uma delas: a ausência de um grupo que procurasse responder aos anseios de boa parte da sociedade, muitas vezes não claramente expressos. Em outras palavras, um grupo ou uma individualidade singular que tivesse idéias claras a respeito do Estado Nacional e formulasse, do processo político e social, e também cultural, uma concepção correspondente a uma idéia moderna de Estado que consubstanciasse uma concepção do mundo.

 

     Para mal de nossos pecados, nem temos o grupo nem a individualidade. Conclusão: no Brasil, o Poder do Estado não recua está inerte na UTI, se não morrendo, tentando escapar de uma infecção hospitalar…

 

     A ser correta a interpretação que Oliveira Viana fez do Brasil, a desorganização da sociedade com certeza contribuiu para que, caso um grupo ou uma individualidade desse tipo tivesse existido no passado, não encontrasse ressonância na sociedade e murchasse, não se desenvolvesse. Mas, para que o Estado não morra, é preciso recuperá-lo. Ou perceber o que a falta dele provoca e tentar criá-lo, sabendo que o mundo não é o de 1939, antes da Grande Guerra que tudo transformou em matéria de fé, usos e costumes. E que o Brasil não é mais o de 1950, predominantemente rural, 50 milhões de habitantes, ainda a caminho da urbanização anárquica.

 

       

 

  

 

 

 

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