O DIFERENCIAL DE PODER

OESP  

 

     A escalada de envolvimento das Forças Armadas no confronto do Estado com os sem-terra vai-se dando aos poucos. Agora, o Exército organiza comboios e os escolta para evitar saques. A idéia de “comboios” deve remontar à Segunda Guerra Mundial, quando para evitar que submarinos afundassem navios solitários, decidiu-se organizar todo o transporte marítimo em comboios, que seriam escoltados por navios de guerra. O comboio aliado não evitou perdas, mas ganhou a Batalha do Atlântico. A questão que se coloca, no instante em que se faz um comboio de Goiânia a Brasília (!), que em seguida irá de Brasília a Petrolina, não é saber se haverá perdas – tenho quase certeza de que não – mas saber se todo o trânsito de caminhões para a e pela região conflagrada será organizado em comboios e o que será feito quando um caminhão isolado, como se fosse um navio solitário no Atlântico, encontrar um grupo disposto a apropriar-se dele. Os que organizam os saques não cometerão a tolice de declarar “guerra submarina total e sem quartel”, como os alemães fizeram quando viram que não conseguiam levar a Inglaterra à rendição. Contentar-se-ão em atacar os caminhões-navios isolados. Ou não nos lembramos mais do que vimos nas fitas de farwest? Dificilmente os índios atacavam as caravanas escoltadas pelo 7º de Cavalaria do General Custer, preferindo os colonizadores que tinham pressa em chegar e desprezavam os perigos da rota e não queriam ou não podiam ter a proteção da tropa. Os índios perderam, afinal, mas Custer ficou em Little Big Horn.  

 

    Esse é um problema, cuja resposta será dada pelo tempo. Outro, a meu ver mais grave, é aquilo que se poderia chamar a diminuição do diferencial de poder. A idéia que me ocorreu quando vi duas fotos na quarta-feira, reforçou-se ao ler a notícia de que o Ccomsex – Centro de Comunicações do Exército – informara que “apesar de acompanhar os comboios, o Exército não participará de ações repressivas contra possíveis saqueadores”, pois “a função de repressão aos saques continua sendo das polícias militares estaduais”. As fotos a que me referi falam mais do que os comunicados do Ccomsex. Uma delas é de um saqueador – quem saqueia é saqueador até que o dicionário diga o contrário – intimando o motorista de um caminhão com uma foice. A outra, mais significativa, esclarecendo muito bem como se está dando a diminuição do que chamo de diferencial de poder, é de um PM armado de fuzil-metralhadora enfrentando quase cara-a-cara um sem-terra que se defende, e ameaça, com uma foice devidamente colocada em seu cabo. Para acionar sua arma, o PM deveria dar alguns passos para trás – e quando intentasse fazê-lo não teria como escapar com rapidez do alcance da foice, cujo golpe poderia ser simplesmente dirigido para desarmá-lo. Num confronto da natureza dos que se estão dando no Nordeste, o enfrentamento cara-a-cara só teria sentido se os dois contendores estivessem armados do mesmo tipo de arma. O arco do índio do farwest era uma arma até estratégica quando o apache ou o sioux estava longe do revólver ou do rifle do soldado em posição. No enfrentamento corpo-a-corpo, valiam a machadinha ou a faca de escalpo e a baioneta do soldado.  

 

    As fotos são significativas quando vistas de uma perspectiva de eventuais confrontos. Mais importante do ponto de vista do psicossocial – que muitos insistem em acreditar que não existe – é o fato de os que não participaram até agora de nenhum saque começarem a pensar que o futuro está aberto ao que for mais expedito. Se essa impressão se generalizar, o mais provável é que a autoridade de que se deveria achar revestido o aparelho de Estado venha a desaparecer. Como já morreu na fotografia do PM e do sem-terra com a foice.

 

 

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