O assalto do PCC às Forças da Lei e da Ordem não é o único sinal de que o Estado brasileiro está em crise. Esse foi o que chamou a atenção da população para o clima de absoluta insegurança em que vive no instante em que o Governo não tem condições de cumprir as funções que os cidadãos, por intermédio do Estado, lhe delegaram. Outro, igualmente sério e que poucos o têm nessa categoria, é o fato de o Território haver deixado de significar coisa alguma para boa parte dos brasileiros. As respostas dadas (amostras estatisticamente não significativas) às perguntas que faço, de quando em quando, na universidade são assaz indicativas de que a idéia de território (uma das condições para que o Estado permaneça sólido como instituição) já não existe na mente nem nos corações dos meus alunos. Que lhes pergunto? Se a Amazônia fosse invadida pelas Farc, quem se alistaria para combatê-las? As respostas permitem ver que, quase unanimemente, ninguém. O sinal mais grave, no entanto, não é quando universitários perdem a noção de Território como elemento basilar do Estado — é quando o Governo permite que essa idéia desapareça da mente dos que compõem o grande número, os desprivilegiados, na medida em que não o defende.
Serei mais claro: estou certo de que se as Farc ocupassem uma parte da Amazônia, as Forças Armadas seriam deslocadas para recuperar o território perdido e afirmar a soberania brasileira sobre aquela parte do país. Não é disso que trato. Do que cuido é quando o Governo Lula permite que outro Governo, portanto outro Estado, assuma, sem que ele proteste, tarefas que são próprias do Governo brasileiro. Não diria exclusivas porque o Governo brasileiro deixou, há algum tempo, que tarefas próprias do Estado fossem assumidas pelos particulares, e não cuidou de disputar com eles a hegemonia. No instante em que isso acontece, quando brasileiros perdem a noção do Território e o Governo permite que os corações e as mentes dos simples, dos que pertencem ao grande número dos desprivilegiados, saúdem um Governo estrangeiro que lhes promete alívio em suas dores, no instante em que isso acontece podemos de fato rezar o Réquiem pelo Estado brasileiro.
O grave é que são poucos os que vêem o que está acontecendo, passo a passo, numa escalada suficientemente suave para que as coisas não sejam tão evidentes — embora às vezes o sejam. Para que não pairem dúvidas, serei novamente claro: refiro-me ao Governo do Coronel Chávez e à penetração que está fazendo nos corações e mentes do grande número, dos brasileiros que não são assistidos como os seres humanos devem ser, pelo Governo em função delegada pelo Estado, embora este não seja o único caso.
Há, entre alguns intelectuais, quem se preocupe com o “populismo” do Coronel Chávez, ao qual se acrescentaria, agora, o do Presidente Evo Morales. A idéia de que eles são populistas, PT saudações, foi vendida (ou comprada?) à mídia e a intelectuais estrangeiros. Todos juntos, nós também, só cuidamos de estudar o “populismo” que renasce na América Latina, acrescentando-se a esses Presidentes “populistas” o velho símbolo da revolução armada, que é Fidel Castro, e o Presidente Kirchner, esquecendo-nos de que este deu o calote em investidores privados e pequenos, mas pagou antecipadamente o Fundo Monetário Internacional.
O Governo Lula insistiu em incluir a Venezuela no Mercosul. O que pareceu a muitos um gesto pouco respeitoso para com Bolívia e Chile, que não gozam dos mesmos privilégios estatutários que a Venezuela. Na verdade, ou foi um passo irrefletido, ou maquiavelicamente vendido ao povo como o caminho certo para a unificação e a solidariedade sul-americanas. Diria que irrefletido não foi; maquiavélico, sim, não para apressar a unidade e a integração sul-americanas, mas sim para tornar inviável qualquer negociação em bloco com os Estados Unidos a respeito do que quer que seja que possa envolver, ainda que tangencialmente, os países membros do Mercosul em desagregação. A Alca, como diria Chávez, já foi al carajo — ou alguém imagina que o Brasil, a Argentina, o Uruguai e a Bolívia negociarão com os Estados Unidos, agora que Chávez tem uma palavra a dizer? Da mesma maneira, essa palavra ele a proferirá em qualquer assunto que, a seu ver, envolva os interesses da América bolivariana que pretende construir, resgatando, contra os brancos invasores, o mito do Índio que reinou no Sul até a chegada dos espanhóis, que, segundo a legenda negra, mataram três milhões de índios.
Se for para pensar conspirativamente, pensemos.
A Venezuela está comprando títulos soberanos do Uruguai, da Argentina, da Bolívia e do Equador. Dependendo da eleição peruana (escrevo no sábado que antecede o pleito), poderá comprar também do Peru. Ainda que esteja revendendo esses títulos a muitos ou alguns poucos tolos ou espertalhões, deverá sempre conservar número suficiente deles em poder do Tesouro da Venezuela para que, na hipótese de uma moratória, possa jogar Estado contra Estado e fazer que a discussão seja levada ao Clube de Paris — ao qual o Brasil, pelas últimas notícias, pretende pertencer… Uma grande jogada simétrica, por certo… No Clube de Paris, os Governos dos privilegiados discutem como tratar as dívidas soberanas dos Governos dos desprivilegiados…
Na Bolívia, em que o Brasil tem interesses de Estado, ele se intrometeu ainda mais, não apenas no petróleo e no gás, mas também no comércio exterior em geral. Se a Bolívia não conseguir vender a bom preço seus produtos aos países andinos, a Venezuela os comprará. Não participou (financiando, ao que tudo indica) de uma feira de pequeno comércio de exportação na Bolívia? Vai comendo pelas bordas e, aos poucos, vai conquistando corações e mentes: a Venezuela do Coronel Chávez pensa em nós…
Mas voltemos ao Brasil. Vamos enumerar o que a memória consegue resgatar.
Um — Substituiu Fidel e Che Guevara na mentalidade dos universitários e secundaristas de esquerda (ou que se julgam tal), simpatizantes do anarquismo, membros de partidos que se identificam com o trotskysmo ou simplesmente são contra o capitalismo. É também quem, na América do Sul, opõe-se em discurso frontal aos Estados Unidos embora venda muito petróleo para aquele que é considerado o inimigo da humanidade. Sua participação numa das sessões de um Forum Social Mundial em Porto Alegre arrastou multidões. O apoio a Morales permitiu que pelo menos um partido de esquerda brasileiro colocasse a nacionalização das instalações da Petrobrás como um passo na direção da integração socialista. Além de ter sensibilizado alguns nacionalistas brasileiros que o justificaram…
Dois — Veio, sem ser convidado oficialmente pelo Governo brasileiro, participar de um Fórum (não sei que nome tinha) em Curitiba com a presença clamorosa do Governador do Paraná, que aplaudiu sua idéia de que o MST se ligue à Via Campesina (aquela que destruiu os laboratórios de pesquisa genética da Aracruz no Rio Grande do Sul). Ninguém protestou, muito menos o Governo Lula. Afinal, o Ministro da Justiça poderia argumentar que como o MST não existe, pois não está registrado em cartório algum como pessoa jurídica, o Governo nada pode fazer: Chávez propôs a união de quem não existe com quem, seguramente, também não existe… Se financia as atividades do MST, ninguém sabe, ninguém viu nem ninguém investigou…
Três — Gastou um milhão de dólares para conquistar o título de campeã do carnaval carioca para uma escola de samba que desfilou com temas em homenagem a Bolívar e à solidariedade sul-americana. Alguém disse como o dinheiro entrou e foi gasto? Convém não esquecer que as escolas de samba não buscam exatamente a pureza em seus patrocinadores… mas lhes são fiéis
Quatro — Tentou, mas não conseguiu diante do protesto do Itamaraty, que não aceita que alguém cuide de negócios externos a não ser ele mesmo, levar empresários brasileiros para que vissem as oportunidades que a Venezuela oferece para a integração física do hemisfério.
Cinco — Agora, o maior feito: fretou um avião, fez um convênio com uma Prefeitura de Pernambuco e levou para Caracas cerca de cem desprivilegiados que sofrem de catarata para que se operem lá com técnicas desenvolvidas por médicos cubanos… O Governo federal não foi consultado nem, idem, o Governo estadual. Mas a Polícia Federal, com certeza, expediu os passaportes. “Chávez, disse um dos escolhidos, pensa nos pobres”.
Com a Venezuela, sozinha e altaneira, paramos por aqui. Mas há Cuba, também, e é mais divertido ver como tudo se faz para conquistar corações e mentes:
Um — Acordo com o Governo do Piauí, há algum tempo, para que professores cubanos alfabetizem adultos no Estado…
Dois — O Governo do Paraná (de novo ele) espera autorização do MEC para que professores cubanos e venezuelanos alfabetizem adultos no Estado do Paraná.
Diria, na minha birra de defender o Estado Nacional, que aqueles que pesquisaram todas as formas como os Estados federados e os Municípios podem contribuir para uma integração sul-americana, devem estar hoje satisfeitos, vendo sua teoria contra o Estado Nacional — defendida, como ouvi e vi, por um certo representante do Itamaraty — proliferou.
Quando se perdem corações e mentes, como será possível reconquistá-los? A experiência da França na Argélia (onde ganhou a guerra contra a FLN, mas perdeu a batalha psicológica) e a dos Estados Unidos no Vietnã deveriam fazer pensar nossos governantes. Se não eles, pelo menos as Forças Armadas. Haverá, nelas, ainda quem pense em termos de guerra revolucionária ou subversiva, ou de ação psicológica adversa, como se gostava de chamar esse tipo de atividade de Governos estrangeiros anos atrás?
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