– 3º Congresso Latino-Americano de Ciência Política – Alacip /Unicamp
Qualquer que seja seu enfoque, um estudo sobre as relações entre os Estados Unidos e a América Latina deve, de início, atentar para alguns fatos que, muitas vezes, tendem a passar despercebidos. Refiro-me, por estranho que possa parecer, a fatos econômicos e ao que poderíamos chamar de projetos de cultura.
A expressão América Latina tem, como todos sabemos, origem européia, mais especificamente francesa, e denotou, no fim do século XIX, o esforço intelectual e político para afirmar a presença cultural francesa num continente em que ingleses e norte-americanos lutavam para ter preponderância nos campos econômico e financeiro. Seria necessário um criterioso estudo para saber as razões que levaram o escol dos países de colonização ibérica a incorporar no seu léxico a expressão que, aceita, negou a existência de todos os grupos étnicos que compunham, em alguns países em maioria, a população do Hemisfério Sul mais o México e a América Central.
Haya de la Torre, na segunda década do século XX, já tentava contrapor a essa denominação uma outra que traduzisse mais corretamente o que era a América ibérica ou, mais especificamente, a América de colonização espanhola: Indoamérica. Politicamente comprometida com a Aliança Popular Revolucionaria Americana (APRA), a denominação Indoamérica não chegou a comover os integrantes do escol comprometidos socialmente com as oligarquias dominantes.
Por um fenômeno que Haya de la Torre chamou de “coloniaje mental”, a expressão América Latina ganhou foros de cidade. Não que, sem antes, designasse, para alguns poucos, um projeto de cultura. Nos anos 20, ao mesmo tempo em que Haya de la Torre buscava difundir sua nova concepção do Espaço-Tempo Histórico, na Argentina, Uruguai e Chile houve os que, refletindo sobre a catástrofe cultural que a Grande Guerra também foi, tentassem contrapor a cultura Latino-americana à anglo-saxã, aquela se distinguindo desta pela raça e pela religião: latinos e católicos em oposição a protestantes e anglo-saxões.
O projeto disso não passou, fosse porque a “raça” que se reivindicava era restrita aos países em que a idéia fora lançada, fosse porque as servidões da infra-estrutura impediam uma comunicação criadora entre diferentes setores sociais, fosse porque, finalmente, a Economia e a Política impuseram suas leis às pretensões da Cultura.
A abertura do canal do Panamá em 1914 foi o marco da penetração em força do capital norte-americano na costa do Pacífico; ao mesmo tempo, com ele se sinalizava para as elites políticas, oligárquicas ou não, que tinham de defrontar-se com um Governo para quem a Doutrina Monroe, tão louvada por muitos, podia ser interpretada de acordo com os interesses políticos internos dos Estados Unidos — vale dizer, de acordo com a resultante do polígono de forças traçado pelo embate dos diferentes fatores reais de poder que ali disputavam sua influência maior ou menor na Casa Branca e no Capitólio.
Estaremos falseando a realidade — ou, dizendo de outro modo, fazendo a nossa história olhando para nosso próprio umbigo — se não considerarmos o impacto que teve, nas relações dos Estados de origem ibérica com os Estados Unidos, a penetração das idéias que, como grandes ondas, varriam a Europa: o comunismo da III Internacional, o fascismo italiano e o nazismo, simbolizando, um, a Revolução, outros, o Regresso.
Não se poderá compreender a história desses sofridos países — que incorporaram uma expressão criada pela França e depois adotada por todos os Impérios (e muitos de nós, igualmente) — se não tivermos presente a luta pela preponderância entre o Capital de origem inglesa e o de extração norte-americana. Ela se deu ao mesmo tempo em que a Revolução e o Regresso disputavam sua entrada nas Américas, ameaçando, uma e outro, os interesses econômicos do Capital anglo-americano associado ao nascente capitalismo de aqui mesmo, e em alguns casos os interesses políticos das oligarquias locais, divididas, elas próprias, em diferentes frações que se disputavam o poder político sem consideração pelas normas liberais expressas nas constituições nacionais.
As ondas de expansão do capital e dos interesses políticos norte-americanos no pré-guerra — a Segunda Guerra Mundial — chocaram-se com as ondas autoritárias que vinham da Europa. Como que para surfar nessas ondas e antecipando-se aos militares e à elaboração dos famosos planos Arco Íris, F.D. Roosevelt iniciou em 1933 aquilo que se chamou “a retirada das Antilhas” — sem dúvida porque os interesses norte-americanos e das oligarquias já estavam assegurados pela presença de Batista, Somoza e Trujilo e também porque se fazia mister apresentar sob nova face a presença norte-americana na sua área de influência direta.
A primeira administração F.D. Roosevelt tinha também de conquistar a simpatia dos Governos situados ao Sul e vencer a oposição dos que se opunham à preponderância norte-americana e buscavam amparo no Regresso, especialmente em sua versão italiana — como foi o caso do Grupo dos Oficiais Unidos na Argentina — ou poderiam pender para uma versão indígena do nacional-socialismo — como foi o caso do Movimento Nacionalista Revolucionário boliviano.
Daí, depois de anos de resistência aos reclamos dos países do Sul e do México, a administração democrata aceitar o princípio da não-intervenção, também em 1933. Assegurada a igualdade jurídica de todos, não foi difícil, apesar da oposição da Argentina e, muitas vezes, a do Chile, conseguir que os Governos da América ibérica manifestassem a intenção de solidarizar-se na hipótese de agressão externa contra qualquer país das Américas.
A II Guerra Mundial consagrou a unidade de intenções e permitiu que à preponderância do Capital — e, em muitos casos, de um estilo de vida — norte-americanos se somasse a solidariedade dos interesses militares. Em 1945, fato consagrado depois em 1947 com o TIAR e um ano depois com a criação da OEA, a tranqüilidade nas relações externas passou a ser a tônica nas Américas — desde que, nas áreas de interesse primacial para a defesa do território norte-americano, a Revolução não viesse desafiar a tranqüilidade que se estabelecera.
Para que se possa compreender o processo que se inicia em 1947, é preciso ter em mente que a percepção da Revolução nos círculos dirigentes dos Estados Unidos mudou com a Guerra Fria.
Para os que davam a direção intelectual e política nesses círculos, não se estava mais diante de um ou mais partidos que buscavam tomar o poder para realizar uma sonhada revolução de caráter socialista ou comunista. A percepção era que se estava diante de partidos a serviço da União Soviética, que buscavam tomar o poder para minar as bases da fortaleza norte-americana no mar das Antilhas e na América Central. A eleição de Jacobo Arbenz, na Guatemala, em 1954, foi para os Estados Unidos o primeiro sinal de que a Guerra Fria poderia chegar às Américas disfarçada de combate à oligarquia e aos setores aliados pelos interesses à United Fruit Co. A incursão de Castillo Armas, apoiado pelos serviços especiais norte-americanos, levou ao fim do Governo Arbenz.
A declaração da OEA, reunida em Caracas naquele mesmo ano, estabelecendo que o comunismo era inimigo do modo de vida e da democracia vigentes nos países integrantes da organização, foi, por sua vez, a primeira resposta a qualquer ação que contasse, ainda que remotamente, com o apoio de forças reputadas comunistas contra interesses oligárquicos aliados aos do Capital e à posição estratégica norte-americana. As ações contra Fidel Castro em 1962 e depois contra Juan Bosch, em São Domingos, 1965, foram apenas a conseqüência do que se estabelecera em Caracas.
Cabe lembrar também, quando se procura associar ações políticas aos interesses econômicos em sentido lato, que a assim chamada globalização ou mundialização criou as condições para que o Capital possa acumular onde lhe parecer mais seguro e conveniente. Não nos esqueçamos, ainda, de que a América ibérica conta pouco — ou menos do que indicam muitas análises — no comércio mundial, cujo crescimento ou cuja estabilidade é, para a acumulação global, conditio sine qua non.
Na análise das relações entre os Estados Unidos e a América Latina, é necessário lembrar as questões estratégicas, que podem, variando as circunstâncias, ser mais importantes que aquelas associadas à penetração do Capital. O petróleo venezuelano é, dessa perspectiva, estratégico para os Estados Unidos — não é um fator econômico.
Se tivermos o quadro estratégico como pano de fundo, poderemos ver como ações econômicas (com peso político como conseqüência) contribuíram, no último quartel do século XX, para alterar o sentido daquilo que, nos anos 1920, já se chamava América Latina, cuja integração fora bandeira de Haya de la Torre — para não falar dos que sonhavam com os Estados Unidos Socialistas da América Latina.
Deixando de lado os fatos de que a ONU fundiu a América Latina com o Caribe na antiga CEPAL, e de que a Organização dos Estados Americanos incorporou todos os Estados situados pela Geografia Política no continente do Hemisfério Ocidental e no mar das Antilhas, é preciso ver que projetos políticos disfarçados de intenções econômicas deram sua contribuição para que, na prática, a chamada América Latina deixasse de ser uma, como pretendiam muitos.
Tenho presente os esforços para a criação de mercados comuns e uniões aduaneiras e, mais significativo ainda no processo, os esforços dos Estados Unidos para realizar o velho sonho de um mercado comum das Américas (a ALCA) e, na impossibilidade política de transformá-lo em realidade, a assinatura de acordos de livre comércio com países isolados.
A primeira conseqüência desse processo, que é visto como econômico (com pretensões imperiais quando se trata dos Estados Unidos), é que será difícil nos referirmos à América Latina como se fosse um todo à vista desses acordos que consagram interesses regionais.
Não foram os Estados Unidos os que deram o primeiro passo na direção de fazer da realidade geográfica que se chamava de América Latina uma expressão sem sentido político efetivo. Talvez tenha sido o Brasil, por estranho que isso possa parecer, quem deu início à marcha nessa direção. Foi, na verdade, o chanceler Celso Amorim, no Governo Itamar Franco, quem compreendeu que a América do Sul era, ela sim, uma realidade, e a América Latina apenas uma declaração intelectual de intenção de oposição aos Estados Unidos, anglo-saxão.
Sem pretender fazer da América do Sul um ponto de apoio para eventuais disputas com os Estados Unidos, o Governo Fernando Henrique deu passos significativos no sentido de fazer da América do Sul uma realidade: a reunião dos Presidentes em Brasília e, depois, os projetos de integração física do continente — que se transformam em fatos concretos no Governo Lula da Silva — transferem, obrigatoriamente, o foco da ação política do “Latina” para o “Sul”.
Não entrarei, aqui e agora, na discussão da viabilidade e do sentido profundo que se deve dar, como brasileiros, ao projeto Mercosul; será bastante, para os efeitos desta comunicação, dizer que foi o primeiro passo na direção de afirmar uma comunidade econômico-política no Hemisfério Sul — no limite da ação, em oposição aos Estados Unidos. Os acordos de livre-comércio que os Estados Unidos vêm assinando com países da América Central e do Sul fecham o círculo que sufoca as pretensões daqueles que insistem e insistirão durante muito tempo em falar de nossas vicissitudes como sendo latino-americanas.
Creio que é chegado o tempo de as palavras traduzirem a realidade e não procurarem disfarçá-la numa manobra ideológica que, hoje, já não tem sentido.
A Política, felizmente, ainda que perfilando a Economia, não desapareceu em todas essas marchas e contramarchas que acompanham a criação das fluidas fronteiras com que se pretende cercar o Capital.
Se o projeto de Cultura dos anos 20 — raça latina em contraposição à anglo-saxã; religião católica em contraposição à protestante — perdeu seu momento de força, é preciso ver com atenção a proposta da “revolução bolivariana” que o Presidente Chávez vem apregoando. Creio que se pode dizer que, ressuscitando sob outro nome a Indoamérica de Haya de la Torre, seu bolivarianismo tem em vista a América índia, ainda que ostensivamente não pretenda redimir o Índio. Ao bolivarianismo de Chávez deve acrescentar-se, para que se tenha visão mais ampla do problema, o indianismo declarado de Evo Morales e sua estranha concepção de como se deve dar a redenção do índio num universo político em que se estatizam riquezas e propriedades e se chama o capital internacional (não norte-americano) para desenvolver o país.
Do aprismo, sem dúvida, Chávez e agora Morales tomaram a idéia da anfictionia que se oporá ao Capital — uma federação que assumirá novas formas políticas de associação e que faz desde já, no enunciado dos dois, dos Estados Unidos a antítese de sua pregação.
O que a marcha “bolivariana” significa para o Brasil é outra história.
Uma consideração final.
Se, por um lado, a crise dos foguetes em 1962 concluiu-se com um acordo tácito pelo qual os Estados Unidos não invadiriam Cuba, por outro lado levou a que a face missionária da política externa norte-americana se evidenciasse em seu aspecto mais dramático — diria mesmo danoso — para o sistema interamericano e, também, para a sociedade internacional.
Refiro-me à legislação interna dos Estados Unidos que sanciona terceiros não norte-americanos que mantiverem relações comerciais com Cuba, clara manifestação de que, em muitos círculos dirigentes norte-americanos, o Direito Internacional é válido quando e se não interfere com os interesses políticos, econômicos e estratégicos dos Estados Unidos.
Essa primeira manifestação — de que as relações internacionais são, para os integrantes desses círculos, conformadas pelo princípio do Rebus sic stantibus e não por aquele que exprime a boa fé nas relações internacionais, o do Pacta sunt servanda — balizou a determinação do Presidente George W. Bush de invadir o Iraque fundado na “soberania norte-americana”, como deixou claro em seu discurso anunciando o início das operações à margem das decisões do Conselho de Segurança da ONU.
Este ponto parece-me crucial na análise do futuro da América do Sul, considerando, como disse atrás, que o petróleo venezuelano é estratégico para os Estados Unidos e também, como igualmente assinalei, que a revolução bolivariana do Coronel Chávez e a redenção do Índio de Morales têm, no limite, como negação e antítese, os Estados Unidos. E nada assegura que, na oposição tradicional ao Índio por setores dominantes na Bolívia, inclusive a antiga Rosca, e, agora, por dirigentes regionais ao Governo de La Paz — não venhamos a ter ali a desestabilização política, criando uma situação que poderia ser descrita como a de um Estado Falido.
Os demais problemas que chamam nossa atenção, como a presença norte-americana na Colômbia, no Equador e, agora (sempre posta em dúvida em diferentes círculos) no Paraguai, são de menor importância, na medida em que, justificando-se pelo combate ao narcotráfico, ao crime organizado e ao contrabando de armas para movimentos guerrilheiros ou ações criminosas urbanas, essa presença tem, em menor ou maior grau, o apoio dos Governos locais. O “caso Tríplice Fronteira” — chamemos assim — parece merecer, agora, menor atenção, porque se chegou à conclusão de que não há, na região, ramificações com o terrorismo da Al Qaeda.
O fundamental, e para o qual é necessário estar atento, é que a regra fundamental que rege, para os Estados Unidos, a sociedade internacional (e, portanto, o sistema interamericano) é a do Rebus sic stantibus. No instante em que a maior potência militar do Hemisfério não hesita em colocar interesses estratégicos nacionais acima do Direito Internacional — quando, repito, o que chamo de Estado-Duque do sistema despreza o Direito Internacional — por mais que insistamos na observância do vestefaliano princípio da soberania, a estabilidade da sociedade internacional e a do frágil sistema regido pelo Tratado Interamericano de Assistência Recíproca e pela Declaração de Caracas – 1954 estão ameaçadas.
xxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxx