Conferência em evento promovido pelo IEA-USP sobre o tema AMÉRICA DO SUL: INTEGRAÇÃO, GEOESTRATÉGIA E SEGURANÇA
O título desta comunicação pode prestar-se a ser visto como uma petição de princípio: a integração latino-americana é um dado da realidade e a nós cabe apenas estudar como esse fato influi ou é influenciado pelas relações internacionais. Diria mais: a aceitar essa integração como datum, corremos o risco de sepultar o Poder Nacional sob argumentos politicamente corretos, e o de aceitar a tese sobre o perecimento quase inelutável do Estado, hoje quase-hegemônica nos estudos acerca da globalização. Antigas preocupações com o Poder Nacional brasileiro e a afirmação do Brasil num mundo dividido substituem-se, agora, por uma preocupação única, a de colocar o País no chamado main stream das relações interestatais definido, ele, claro está, pela ideologia da ação automática do mercado e pelos interesses, nem sempre apresentados com clareza e transparência, do Estado-Duque do sistema interamericano, vale dizer os Estados Unidos da América.
A União Européia tem servido, para uns e outros, de exemplo de como é possível superar antagonismos e diferenças, mesmo entre países marcados por uma história de guerras, como França e Alemanha. Ora, se a União Européia é tomada como modelo a inspirar o Mercosul e, agora, a pretendida unidade sul-americana, é preciso ver que os defensores da tese de que nos devemos mirar no espelho europeu partiram e partem ainda hoje de uma falsa premissa: a que os Estados Europeus se reuniram apesar de suas divergências e das dificuldades em realizar a sonhada união.
Por que digo que a premissa é falsa? Porque os defensores do “espelhismo”, preocupados com o sentido em que vai o main stream, deixaram de observar fato simples: a bem pensarmos os termos, a União Européia nada mais foi de que o resultado de um processo em que os Estados delegaram aos Governos competência para associar-se em alguns setores, especialmente o econômico e o nuclear, reservando-se, todavia, as decisões capitais nos terrenos que são próprios e específicos do Estado e que o definem: defesa e relações exteriores. Essa a realidade, e a nós ficou o pesado encargo de lamentar que a Constituição Européia não tenha sido aprovada pela França (acusada de nacionalista) e pela Holanda. E o não nos sentirmos bem diante da reação da Espanha e outros que querem defender sua cultura, sua integração social e nacional, e sua organização social dos efeitos do que consideram como a nova invasão dos bárbaros.
O que há de fatal nesse “espelhismo” é que o cristal em que miramos tem a virtude de deformar a imagem de tal modo que nos vemos como melhores, pois caminhamos aceleradamente para a integração sem necessidade de uma guerra envolvendo dois grandes Estados nem de duas guerras mundiais para chegar à CECA, ao EURATOM e outras comunidades menores e, finalmente, à União Européia e ao tratado de Maastrich. Por simples atos de vontade, passamos da Aladi ao Mercosul, à Comunidade Andina em outro ponto cardeal da América do Sul e, finalmente, à Comunidade Sul-Americana de Nações (Casa).
Digo simples atos de vontade por uma razão: desde o Governo Itamar Franco o Brasil faz questão de negar a Constituição de 1988, na qual se inscreveu este estranho parágrafo único do artigo 4º — o que define os princípios que regem a “República Federativa do Brasil nas suas relações internacionais”: “Art. 4º — Parágrafo único. A República Federativa do Brasil buscará a integração econômica, política, social e cultural dos povos da América Latina, visando à formação de uma comunidade latino-americana de nações”. Razões as devem ter tido de monte os constituintes — mas os Governos que se sucederam à promulgação da “Cidadã” não as respeitaram, tanto assim que o empenho maior que colocaram desde a promulgação da Carta foi e é na constituição de uma “comunidade sul-americana” e não de uma “comunidade latino-americana de nações”.
A crítica ao main stream e ao parágrafo único do artigo 4º tem um e mesmo motivo, a defesa do Poder Nacional, isto é do Estado Nacional brasileiro.
Estabeleçamos desde já que a economia (Mercosul, Casa o que seja) é assunto de Governo — desde que, como diria o General de Gaulle, haja um Estado. Relações Exteriores e Defesa são assunto de Estado. Donde se segue que a política que conforma a política externa e a defesa, melhor dizendo a segurança do Estado (e por definição da Nação) não apenas deve ser uma, como deve ser voltada para assegurar e manter o Poder Nacional.
Poderíamos dizer que todos os que estudam a ligação causal entre as palavras e os atos — para não voltar ao 1984 de Orwell e seu double speak — ficariam espantados ao verificar que no afã de buscar apagar 20 anos de vida nacional, ao buscar expungir a idéia de “segurança nacional”, nos concentramos na de “defesa”. O resultado do empenho em fazer que, na linha do main stream e imaginando que estivéssemos na Europa ou nos Estados Unidos, “defesa” triunfasse sobre “segurança nacional” foi que se deixou de considerar as condições especiais do desenvolvimento do Brasil e assim se passou por cima das forças centrífugas que ameaçam o Estado. Creio não ser demais, num Instituto preocupado com o estudo de temas especiais, nos concentrarmos um instante que seja na distinção — sobremodo importante — entre “segurança nacional” e “defesa” quando consideramos o problema da integração latino-americana e as relações internacionais.
Melhor do que ninguém, o Marechal Humberto de Alencar Castelo Branco pode ser chamado à discussão. Em conferência que proferiu na Escola Superior de Guerra a 13 de março de 1967 (dois dias antes de passar a chefia do governo ao Marechal Costa e Silva), o então Presidente da República fez questão de definir os termos: “A primeira parte a fixar é a dilatação do conceito de segurança nacional, bastante diferenciado, hoje, do conceito mais restrito de defesa nacional. A diferença é dupla. O conceito tradicional de defesa nacional coloca mais ênfase sobre os aspectos militares da segurança e, correlatamente, os problemas de agressão externa. A noção de segurança nacional é mais abrangente. Compreende, por assim dizer, a defesa global das instituições, incorporando por isso os aspectos psico-sociais, a preservação do desenvolvimento e da estabilidade política interna; além disso, o conceito de segurança, muito mais explicitamente que o de defesa, toma em linha de conta a agressão interna, corporificada na infiltração e subversão ideológica, até mesmo nos movimentos de guerrilha, formas hoje mais prováveis de conflito que a agressão externa”. Substituamos o que neste texto é conjuntural, os movimentos de guerrilha, por “crime organizado” em suas múltiplas facetas, e o discurso continua atual.
No afã de desqualificar a política externa e todo o Governo Castelo Branco, esquecemos-nos de que sua preocupação era o Poder Nacional e sua relação com o mundo exterior. Daí ter: 1 — formulado a doutrina dos círculos concêntricos de atuação da diplomacia brasileira — o primeiro sendo a América Latina; 2 — ter deixado claro no decreto-lei 314 (pouco referido nos estudos sobre seu Governo) que a segurança nacional poderia ser colocada em risco por países amigos que procurassem difundir valores contrários aos nacionais, e 3 — não ter hesitado em ocupar militarmente território contestado pelo Paraguai, dando origem a uma crise internacional que foi mais tarde, no Governo Médici, resolvida com a assinatura do tratado que permitiu a construção de Itaipu. Chamo sua atenção para o item 2.
A “defesa” é parte integrante da segurança nacional — por assim dizer, é sua face militar; a “diplomacia” da mesma forma, sendo a face diplomática dela. Ou se quisermos ficar com Aron, na sua generalidade, General e Diplomata são funções cujo exercício caracteriza o Estado.
Ora, no instante em que o constituinte de 1988 fixou na “Constituição cidadã” que o objetivo da política externa brasileira é a integração econômica e política das nações latino-americanas, o General perdeu função e o Diplomata lançou-se no mar revolto das proposições unitárias de Bolívar, Haya de la Torre e, agora, do Coronel Chávez, fazendo tábula rasa das grandes diferenças étnicas, culturais e sociais que distinguem uns dos outros países do continente, esquecido de que seus Governos não descuram, hoje, da afirmação do Poder Nacional de seus Estados nem, o que é mais importante, de sua história e de sua inserção nos diferentes sistemas e na sociedade internacional.
A Europa pôde unir-se — seus Governos, bem entendido, como nos ensina o episódio da votação da Constituição Européia pela França e pela Holanda — porque as guerras de afirmação do Estado Nacional, além do impacto da Reforma e das guerras de religião que a acompanharam permitiram que se construísse a idéia da Europa, quando não aflorasse um “espírito europeu”. Tendemos a ver na União Européia o triunfo da idéia comunitária, esquecendo que, mais do que isso, a idéia da Europa corresponde à superação diríamos dialética das situações que levaram, desde séculos, a um estado de guerra quase permanente.
A Segunda Guerra Mundial e a experiência de Hiroshima e Nagasaki permitiram que as guerras fossem superadas pela idéia da Europa. Essa, não esqueçamos, assenta hoje como ontem não na abdicação da idéia de Estado, mas numa similitude de culturas — religião, organização social e vocação republicana, isto é, o governo da Lei e não dos homens.
Foram essa similitude provada na História e aqueles fatos militares que levaram a que fossem superadas as divergências econômicas que separavam os Estados europeus no pós Segunda Guerra; não a simples vontade do legislador expressa numa constituição. As guerras e a similitude de culturas levaram a que se tornasse realidade o sonho de Kant: “Isto seria uma federação de povos que, no entanto, não deveria ser um Estado de povos. Haveria aí, uma contradição, porque todo Estado implica a relação de um superior (legislador) com um inferior (o que obedece, a saber, o povo) e muitos povos num Estado viriam a constituir um só povo, o que contradiz o pressuposto (temos de considerar aqui o direito dos povos nas suas relações recíprocas enquanto formam Estados diferentes, que não devem fundir-se num só)”. “Esta federação não se propõe obter o poder de Estado, mas simplesmente manter e garantir a paz de um Estado para si mesmo e, ao mesmo tempo, a dos outros Estados federados, sem que estes devam por isso (como os homens no estado de natureza) submeter-se a leis públicas e à sua coação”.
Creio ser possível, a esta altura, voltar a discutir a integração latino-americana — como creio deva ser vista: à luz da idéia de Poder Nacional e como esse novo ente jurídico (que se pretende seja político e real) interagirá com os demais Estados da sociedade internacional.
Em 8 de dezembro de 2004, os Presidentes dos Estados da América do Sul assinaram a Declaração de Cusco pela qual decidiram formar a Comunidade Sul-americana de Nações. Naquele documento, definiu-se que “A integração sul-americana é e deve ser uma integração dos povos” e que “… o desenvolvimento das regiões interiores do espaço sul-americano contribuirá para aprofundar o projeto comunitário…” A 9 do mesmo mês, assinaram a Declaração de Ayacucho 2004, pela qual “… destacam a importância do compromisso assumido para tornar efetiva a Zona de Paz Sul-americana e se comprometem a promover uma cultura de paz que torne viáveis sociedade plurais e identificadas com propósitos comuns”. Note-se que a declaração foi assinada antes que a Venezuela anunciasse seu programa de rearmamento.
Se estivéssemos diante de documentos que nada comprometessem, pouco se diria acerca deles — exceto que os “povos” a que se faz alusão no primeiro, deles não tiveram conhecimento ou, melhor dizendo, não tomaram consciência no que implicam ao criar instâncias máximas de “condução política” e de “decisão executiva do processo” de integração. Estamos, pois, diante de uma organização política, pela qual os Chefes de Estado se comprometem a envidar esforços para realizar isto e aquilo. Da perspectiva em que me coloco, é curioso assinalar que o Presidente da República Federativa do Brasil assinou documento em que os heróis da independência brasileira cedem passo aos exemplos “do Libertador Simón Bolívar, do Grande Marechal de Ayacucho, Antônio José de Sucre do Libertador José de San Martin”. Verdade que a reunião se realizou “por ocasião da celebração das façanhas libertadoras de Junin e Ayacucho”, o que permitiria explicar por que as lutas de 1822 no Brasil não tenham sido lembradas, nem o príncipe Dom Pedro ou José Bonifácio. Esse é aspecto de somenos, mais interessante, talvez, para teses acadêmicas. Assim seria se a cessão do passo à inspiração e exemplo dos vizinhos não viesse acompanhada, na ação da diplomacia brasileira, pela idéia, posta em prática muitas vezes, de que sendo grande, o Brasil está necessariamente obrigado a fazer concessões e a esquecer seus problemas internos para auxiliar o desenvolvimento dos que, na América do Sul, têm uma posição de menor desenvolvimento relativo. Donde se seguir que a assinatura de documentos de integração e a prática da política externa (econômica e política) podem estar em contradição antagônica — contradição essa que se manifesta mais claramente quando se pensa em termos de Poder Nacional, na medida em que o Brasil, pelo menos no que se observa na prática internacional do Mercosul, obriga-se sempre a respeitar as peculiaridades de seus sócios, ainda que a custo do sacrifício de acordos com terceiros Governos que com certeza seriam de seu interesse se não estivesse amarrado por compromissos que não levam em conta as divergências culturais e sociais, históricas e étnicas que existem e pesam na política dos outros países membros.
Os recentes atritos com a Bolívia indicam a que ponto a segurança nacional (para não falar na defesa da matriz energética nacional…) são a prova da fragilidade da posição de quem se propôs ter uma posição de liderança sem cuidar das condições de poder necessárias para ser líder ou pelo menos ser tratado como primus inter pares.
É difícil construir cenários em que uma possível união latino-americana entra em relação com a sociedade internacional. Difícil, antes de tudo, porque a diferença de poder relativo entre os países que a comporiam impede que tenham uma política externa comum — que a União Européia, cujo exemplo é tão louvado, nem ela conseguiu ainda estabelecer. Quando me refiro à política externa comum, tenho em mente que a posição em que o Governo de Caracas faz questão de situar o Estado venezuelano no contexto das relações interamericanas e internacionais em sentido lato poderá chocar-se com posições contrárias, impedindo uma ação comum.
O momento internacional que o Brasil atravessa exige que não nos façamos ilusões nem nos deixemos levar por unitarismos românticos ou posturas ao estilo antiimperialista dos anos 50 do século passado. Não construímos ainda o cenário interamericano em que o Brasil se insere depois que o Presidente Chávez anunciou seu plano de rearmamento e o Presidente Morales joga, com o Brasil, o jogo do gato e do rato. A “revolução bolivariana” do Presidente Chávez nada tem a ver com a Declaração de Cusco de 2004, que estabelece a preocupação com manter a América do Sul como zona desmilitarizada; muito menos as ações do Presidente Morales assentam no princípio do pacta sunt servanda. Passados menos de dois anos da assinatura da Declaração de Cusco, o que se observa é que a tão desejada unidade latino-americana (ideal bolivariano, se quisermos, mas não brasileiro por nossa história nem dos próceres dos países nossos vizinhos depois que sua independência foi reconhecida pelos “grandes” da época) não encontra bases sólidas para que possa ser construída. A análise fria da realidade não impede que o Governo brasileiro se deixe levar pelo unitarismo romântico, que em muitas ocasiões se confunde com ações inspiradas num fanatismo abstrato de pensamento que desconhece os dados da realidade e faz pouco da Realpolitik que inspira as ações dos que têm poder no Hemisfério.
Essa Realpolitik tem alguns fatores que a inspiram para não dizer conformam: o petróleo, a proliferação nuclear, o tráfico internacional de drogas e de armas, e a necessidade de evitar que na América do Sul haja o que se denomina de Estados falidos.
Antes do que nos preocuparmos com uma unidade supra-estatal em que o Brasil aparece como expondo suas fraquezas estratégicas, é o caso de nos determos e de procurarmos definir quais são os interesses nacionais de longo prazo e como fazer para chegar a eles. Retomar a idéia de segurança nacional em seu sentido mais amplo, parece-me, é um primeiro passo nessa direção.
Muito obrigado.
xxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxx