O EXÉRCITO, A LEI E A ORDEM

 

 

     O episódio do Morro da Providência fez que se voltasse a discutir se o Exército — e as Forças Armadas em geral — deve ou não ser destacado para garantir a segurança nas cidades. Os que defendem essa medida baseiam-se na atuação das Forças Armadas no Haiti e invocam o dispositivo constitucional, segundo o qual elas se destinam a garantir a lei e a ordem. Se o debate dessa questão não for bem conduzido, dentro no máximo de um ano (tempo para elaborar, discutir, aprovar e sancionar uma lei regulando o assunto) as Forças estarão engajadas no combate ao crime comum sem proveito algum para a sociedade e com grande prejuízo para elas. Por isso creio necessário levantar e discutir o problema.  

 

     Neste artigo, alguns aspectos desse problema serão examinados. Talvez muito me alongue, pelo que peço desculpas.  

 

     O Exército (ou o Corpo de Fuzileiros Navais) poderá ser engajado se prevalecer uma tese esdrúxula, segundo a qual as Forças Armadas foram feitas para substituir a PM ou a Polícia Civil. Tomo o exemplo do Rio de Janeiro, foco da atenção de todos e motivo do movimento que existe para engajar o Exército em ações de polícia. A comparação com o Haiti é cavilosa. Lá, a força da ONU age como força de ocupação, ainda que se diga o contrário. É por isso que não pode deixar o país enquanto não houver uma estrutura de Estado capaz de manter Ordem e Lei (signifiquem o que signifiquem elas para os haitianos ou para a ONU). O terreno foi aos poucos sendo conhecido, e o “inimigo” aos poucos sendo neutralizado: nessa ação, tenho certeza de que as tropas da ONU davam cobertura à polícia local (?) para que agisse contra aqueles que se opunham à nova ordem.  

 

     A força de ocupação não é dissuasiva; dá cobertura tática à ação daqueles que conhecem melhor o terreno e as ligações entre famílias, clãs e grupos eventualmente criminosos.  

 

     No Rio de Janeiro, tudo é diferente e muito mais complexo.  

 

     É para a complexidade da situação que desejo chamar atenção.  

 

     Como ver situações de emprego — Ao cuidar da “guerra real”, Clausewitz ensina que o General deve levar em conta, entre outras coisas, a opinião pública. O conhecimento das variações do humor e da direção para onde apontam os que ajudam a formá-la é essencial para o planejamento de qualquer ação. Será necessário ter em conta que, de uma perspectiva estática, há no Rio de Janeiro duas opiniões públicas: a dos que reclamam, perto ou longe dos morros, a intervenção do Exército, e a dos que habitam os morros onde a ação militar irá se desenvolver (assim muitos esperam). Uma corrente de opinião tenderá a chocar-se com outra e nada indica que os favoráveis à intervenção militar predominarão nesse confronto. Pelo contrário, à medida que vierem a público, corretamente ou deturpados, fatos da ação militar que possam ser explorados negativamente, a opinião dos que foram favoráveis poderá mudar, colocando a tropa interventora em má situação perante o Congresso e o Judiciário. Para não dizer a Imprensa.  

 

     Estarão os Comandos, na eventualidade de uma mudança da opinião pública, preparados psicológica e politicamente para enfrentar essa nova situação? Inclusive tendo em vista as reações do chamado “público interno”? Terão refletido no desgaste inevitável para o prestígio institucional das Forças Amadas, especialmente do Exército, que se seguirá a esse tipo de exploração de considerados maus tratos infligidos à população?  

 

     Examinada a questão da opinião pública, o “plano de guerra” deverá responder à seguinte questão: qual doutrina norteará a ação? Ela será ação de dissuasão, de ocupação de território inimigo ou de apoio tático à Polícia Civil − civil, sim, porque no caso de intervenção, a PM será colocada como subordinada, provocando todos os problemas daí decorrentes. A definição da doutrina de emprego será feita depois da resposta a outras perguntas:  

 

          1. o território está em poder do “inimigo”?  

 

          2. Em estando, está em seu poder firmemente, isto é, ocupado e controlado pelo inimigo? Se estiver firmemente em poder do “inimigo”, a operação não poderá ser nem de dissuasão nem de apoio tático. Deverá ser de ocupação com as conseqüências necessárias de uma ação desse tipo.  

 

          3. Se o território não estiver firmemente em poder do inimigo, esse fato pode indicar que ele assim prefere que esteja, pois poderá agir como “um peixe dentro d’água” conforme os ensinamentos de Mao Tse-tung.  

 

          4. Há Inteligência capaz de auxiliar na resposta a essas perguntas e, sobretudo, apta a apontar as ligações do “inimigo” com a população civil (chamemo-la assim) que nada tem a ver com a transgressão da lei comum?  

 

          5. Qual o dispositivo, se a operação for de ocupação, necessário para estar presente e agir com eficácia numa região de 50 mil habitantes ou mais?  

 

     Há outra questão, que deve ser discutida em profundidade: qual a característica do inimigo? Essa é, como veremos abaixo, quando estudarmos o problema à luz do que dispõem as constituições, a questão fundamental.  

 

     O Exército (ou os Fuzileiros Navais) será chamado a intervir contra o tráfico de drogas. A questão é a seguinte: a ação dos traficantes abala a estrutura do Estado, da União, ou apenas do estado do Rio de Janeiro? Procedamos por partes.

 

     Foi comum, nos anos 1965/66, a tese segundo a qual o “Movimento Comunista Internacional” (a subversão, simplesmente) tinha uma estratégia indireta que consistia em difundir o amor livre, as drogas e finalmente, destruídas ou muito enfraquecidas as defesas da sociedade, apoderar-se do Estado. Tomemos essa tese pelo que diz, pois ela nos permite perguntar: o objetivo final do tráfico é apoderar-se do Estado? Ou seu objetivo, possivelmente o mais importante, é infiltrar-se no aparelho do Estado para poder continuar suas atividades sem repressão? Minha resposta é que o tráfico de drogas não pretende apoderar-se do aparelho de Estado e transformar o Brasil numa “república cocalera”. Infiltrar-se, sim!

 

     Ora, se o objetivo do inimigo é apenas a infiltração para garantir facilidades nos negócios, não é o Estado enquanto tal que corre risco, embora muitos dos membros de seu aparelho coativo estejam corrompidos. O sentido da ação é importante para definir Missão e Doutrina; uma errada apreciação desse sentido poderá levar a que se dê às Forças Armadas Missão e Doutrina que de nada valerão no combate ao tráfico, porque a doutrina e o objetivo final do adversário não são aquilo que se pensou ser. Anote-se também que, se o objetivo dos traficantes é ganhar dinheiro e ter sossego para enriquecer, suas conexões sociais e políticas vão além dos morros — vale dizer, estarão em setores sociais que a ação militar não poderá alcançar.

 

     Isso não significa que o Estado esteja a salvo. O narcotráfico não se reduz ao Rio de Janeiro, sabendo-se que depende de e se utiliza da infra-estrutura para alastrar-se por todo o País. Através das conexões sociais e políticas que transcendem o território dos morros cariocas ou as favelas paulistas, o Estado (União) se coloca em indiscutível vulnerabilidade.  

 

     Se consideramos, no entanto, que não é o Estado (União) que corre perigo de desintegrar-se, e nos limitamos a avaliar o êxito do tráfico de drogas no Rio de Janeiro, ele reside na incapacidade dos aparelhos repressivos do estado do Rio de Janeiro. Em outras palavras, o estado do Rio de Janeiro não é capaz de manter a ordem pública. Se é assim, a solução não será engajar as Forças Armadas no seu combate, mas intervir no estado nos termos da Constituição, pelo tempo que for necessário para a que a Polícia (Militar e Civil) possa iniciar uma ofensiva que de fato atinja as raízes do problema. O que implica a solidariedade ativa da sociedade, da população. E da classe política como um todo…

 

     É o momento, agora, de examinar os aspectos constitucionais da questão.  

 

     O preceito constitucional — Não pretendo discorrer sobre interpretação de constituições. Essa é tarefa para especialistas. Não posso, no entanto, deixar de lembrar que as oposições ao período dos Presidentes militares lutaram com afinco para não incluir no texto da Constituição de 1988 a expressão “defesa da lei e da ordem”. Foi a resistência das Forças Armadas, com destaque para a atuação do General Leônidas Pires Gonçalves, então Ministro do Exército, que conseguiu, finalmente, que a expressão constasse do texto constitucional. Sem dúvida, essa oposição (que já denunciava o início da campanha contra as Forças Armadas por parte dos vencidos em 1964) respondia à interpretação que se fazia nos arraiais dos adversários do movimento de março de 1964 do texto da Constituição de 1967 — aliás, de todas as republicanas, sejamos claros — que atribuía às Forças Armadas a missão de garantir a lei e a ordem. Como interpretavam? Que a defesa da lei e da ordem não se referia a garantir a segurança nas cidades, combatendo criminosos mais ousados, mas sim à defesa do que as Forças Armadas e boa parte do mundo civil consideravam ameaças ao Estado, garante, ele sim, da Lei e da Ordem (agora com maiúsculas). Se, por outro lado, o General Leônidas empenhou-se em que o texto registrasse “lei e ordem” não foi para que o Exército pudesse ter unidades destinadas a garantir a lei e a ordem nas cidades, mas sim porque estava consciente de que a missão precípua das Forças Armadas era a defesa do Estado.

 

     Inicio minhas considerações pela citação dos textos constitucionais. Creio necessário fazê-lo para que o debate se possa dar com conhecimento do que se discute.  

 

     Carta de 1824 —  

     Artigo 142 — Todos os brasileiros são obrigados a pegar em armas para sustentar a Independência e integridade do Império, e defendê-lo dos seus inimigos externos e internos.

 

     Artigo 148 — Ao Poder Executivo compete privativamente empregar a Força Armada de Mar e Terra, como bem lhe parecer conveniente à segurança e defesa do Império.  

 

     Constituição de 1891 —  

      Artigo 14 — As forças de terra e mar são instituições nacionais permanentes, destinadas à defesa da pátria no exterior e à manutenção das leis no interior.  

 

     Constituição de 1934 —  

      Artigo 162 — As Forças Armadas são instituições nacionais permanentes e, dentro da lei, essencialmente obedientes aos seus superiores hierárquicos. Destinam-se a defender a Pátria e a garantir os poderes constitucionais, a ordem e a lei.

 

     Carta de 1937 —  

    Artigo 161 — As Forças Armadas são instituições nacionais permanentes, organizadas sobre a base da disciplina hierárquica e da fiel obediência à autoridade do Presidente da República.

 

     Artigo 166 — Em caso de ameaça externa ou iminência de perturbações internas, ou existência de concerto, plano ou conspiração, tendente a perturbar a paz pública ou pôr em perigo a estrutura das instituições, a segurança do Estado ou dos cidadãos, poderá o Presidente da República declarar em todo o território do País, ou na porção do território particularmente ameaçada, o estado de emergência.

 

     Desde que se torne necessário o emprego das Forças Armadas para a defesa do Estado, o Presidente da República declarará em todo o território nacional, ou em parte dele, o estado de guerra.

 

     Constituição de 1946 —  

      Artigo 177 — Destinam-se as Forças Armadas a defender a Pátria e a garantir os poderes constitucionais, a lei e a ordem.

 

     Constituição de 1967 —  

     Artigo 91 — As Forças Armadas, essenciais à execução da política de segurança nacional, destinam-se à defesa da Pátria e à garantia dos poderes constituídos, da lei e da ordem.

 

     (A emenda constitucional nº. 1, da Junta Militar, de 1969, manteve o mesmo artigo com a mesma numeração).

 

     Constituição de 1988 —  

      Artigo 142 — As Forças Armadas (…) destinam-se à defesa da Pátria, à garantia dos poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer desses, da lei e da ordem.  

 

      Chamam atenção, desde já, os seguintes pontos:  

 

     1. com pequenas alterações de redação, vê-se que desde 1891 as Forças Armadas são destinadas a manter, garantir ou defender a lei;  

 

     2. a garantia da ordem aparece em 1934, na mesma constituição que dá status constitucional ao Conselho de Segurança Nacional, indício seguro de uma maior projeção das Forças Armadas, especialmente do Exército, nos assuntos do Estado. Aliás, a Constituição de 1934 — convém recordar — foi elaborada e votada depois da revolução constitucionalista de 1932, mas, sobretudo, depois da revolução de 1930, ocasião em que o Presidente da República foi deposto pelos Ministros militares que, em seguida, entregaram o poder aos revolucionários que vinham do Sul e tinham conquistado posições no Nordeste;

 

     3. em 1937 há uma mudança significativa: quando for necessário o emprego das Forças Armadas para a defesa do Estado, será decretado o estado de guerra, como a significar que elas são empregadas apenas em situação de guerra. É importante notar que é apenas em 1937, na Carta outorgada pelo Estado Novo, que se faz, explicitamente, menção à função das Forças Armadas como sendo a de defender o Estado.

 

     A questão que mais merece atenção são as razões pelas quais os constituintes, desde 1891, insistiram em colocar a expressão “defesa da lei e da ordem” nas constituições sem que tenha havido restrição a isso. Da mesma maneira que a memória histórica nos ajudaria a registrar que as intervenções militares na política — e foram muitas — sempre se deram para ou manter a constituição (como se alegou no 11 de novembro de 1955), impedir que se desvirtuasse a Ordem estabelecida pela Carta de 1946 (a intervenção de 1964) ou para reformar o Estado (o Tenentismo, sucessivas revoltas, e a revolução de 1930 — sem entrar agora na discussão do Estado Novo). A manutenção da destinação constitucional leva a crer que se entendia que essa missão ou o exercício dessa função não se referia à defesa do que se pode entender por “ordem pública”. Esta, em todas as constituições, sempre esteve garantida e protegida pela Guarda Nacional ou pelas milícias estaduais, Polícias Militares estaduais (Força Pública em São Paulo) ou simplesmente pela Polícia Civil.  

 

     Não se tem notícia de que os constituintes de 1891 tenham discutido a “manutenção da lei no interior”. Pelo contrário, o que se discutiu foi a pertinência de todo o artigo 14, havendo constituintes que julgavam desnecessário constar da Constituição que o Exército era organização nacional permanente. Um comentário à Constituição de 1891 talvez nos auxilie a compreender o que se pretendeu no alvor da República, depois reafirmado quando o novo regime já estava consolidado.  

 

     Ao analisar a Constituição de1891, dizia o deputado pela Bahia Aristides A. Milton, em 1898: “A honra do militar consiste, sobretudo, em submeter-se à inteligência que o comanda, e à legítima autoridade a quem cabe utilizar-lhe os serviços. / Esses serviços, conforme se deduz do que tenho ponderado, são preciosíssimos, porquanto não se conseguiu ainda suprimir a guerra, que pode atentar contra a independência nacional, nem tão pouco impedir que a revolta, e outros movimentos perturbadores da ordem publica preparem a vitória da tirania, com o sacrifício cruento da lei”.  

 

     Como interpretar a Constituição — A “manutenção da lei no interior” deve entender-se, a meu ver, como defesa da Ordem inscrita nas Constituições. Isso significa que as Forças Armadas estão destinadas a garantir que o ataque aos princípios basilares que regulam a vida em sociedade — o direito à vida, à propriedade e à liberdade — não atinja a integridade do Estado. Esses princípios devem — e sempre foram — observados à luz de um bem maior, que a filosofia política desde a Idade Média cristã chamou de Bem Comum e que os filósofos do século XVI denominaram de Razão de Estado, embora a expressão recobrisse um sentido autoritário, que as teorias contratualistas buscaram reduzir ao mínimo necessário a que o Estado não fosse destruído pela tirania ou por revoltas. A palavra Lei, tal como se pode deduzir à luz da História do Brasil, não deve ser tomada no sentido da lei ordinária nem mesmo dos Códigos; deve ser vista como o conjunto de princípios e normas que decorrem da Ordem.

 

     Exemplifico. Tome-se a intervenção em 1954, que acabou conduzindo ao suicídio do Presidente Vargas. Para os Oficiais-Generais das três Forças que assinaram os documentos que precipitaram a decisão de Vargas, a estrita observância da Constituição de 1946 e das leis então em vigor impediriam que se aprofundassem as conexões das relações que desnaturavam o Estado, mostravam um Governo corrompido e perturbavam o processo político normal, impedindo parte da sociedade de usar, em igualdade de condições, os meios que possibilitariam sua plena liberdade e a consecução do Bem Comum.  

 

     A intervenção de 1955 igualmente foi feita para preservar a Ordem estabelecida na Constituição — o resultado das eleições daquele ano, embora se possa discordar das razões que levaram o General Lott a comandar a “novembrada”.  

 

     Outra interpretação da defesa da lei e da ordem não se fez desde a proclamação da República. Fazê-lo, aliás, seria destinar às Forças Armadas a missão de impedir ou jugular atividades criminosas capituladas no Código Penal. Se essa fosse sua missão, seriam transformadas em polícia ou em gendarmaria — destinação a que o General Góes Monteiro se opôs com tenacidade em 1936, tendo em vista que, sendo a gendarmaria um órgão do Governo, esse pode usá-la como quiser para garantir o apoio miliciano. No entender do General Góes — agora reafirmado pelo General Heleno — as Forças Armadas são obedientes ao Estado e não ao Governo.  

 

     A prova de que nunca se pensou em empregar as Forças Armadas no combate ao crime comum — insisto no comum, para diferenciá-lo das ações contra o Estado — pode ser encontrada na própria legislação. Ela não dá às Forças Armadas poder de polícia. Isso significa que, em qualquer ação, seus membros não podem deter alguém a não ser em flagrante delito, não podem fazer buscas e apreensões (o que significa que não podem entrar em residências ou locais de trabalho — antes de mais nada porque Juiz nenhum em seu bom juízo expedirá o competente mandado — nem processar qualquer cidadão, a não ser que tenha cometido crime militar e esteja sob investigação em um IPM).  

 

     Esse pormenor, o de não terem elas poder de polícia, é bastante para evidenciar que, desde a República, a sociedade (ou o Estado ou os Governos, como quiserem) sempre teve em conta que a manutenção da ordem pública não é função das Forças Armadas a não ser que haja “a revolta, e outros movimentos perturbadores da ordem publica preparem a vitória da tirania, com o sacrifício cruento da lei”. Em outros termos, quando houver movimentos dirigidos contra o Estado, como sucedeu depois de 1967.

 

     Poder-se-á alegar em contrário que houve diversas ocasiões em que o Exército foi chamado a cumprir missões de garantia da lei e da ordem. E serão lembrados os momentos, vários, em que ele foi chamado a substituir as Polícias Militares, cujos integrantes estavam em greve. De fato, isso aconteceu, mas é preciso notar, igualmente, que nas greves das polícias civis, como a de Alagoas, o Exército não foi chamado. Nas greves da PMs, foi engajado especificamente não para garantir a ordem, mas para dar tranqüilidade às populações, isto é, garantir a percepção de que não haveria agitações que perturbassem a ordem pública, como quebra-quebras. Missão de dissuasão e não de polícia, portanto. Igualmente de dissuasão é seu emprego quando solicitadas pela Justiça Eleitoral para garantir a tranqüilidade em eleições.  

 

     Para esclarecer um pouco mais o que tenho em vista, gostaria de lembrar um episódio ocorrido na cidade de São Paulo no Governo Carvalho Pinto (não sei precisar o ano). Reivindicando aumento de salário, boa parte dos Oficiais do Corpo de Bombeiros, em passeata, foi até o Palácio do Governo (o Palácio dos Campos Elíseos), cercaram-no e estavam a ponto de derrubar as grades e invadir a residência do Governador. A situação foi controlada pelo General Costa e Silva que comandava a Divisão de Infantaria: mobilizou a tropa, apoiada por dois blindados, e ordenou aos bombeiros que entrassem em forma e marchassem presos — o que foi feito. Essa intervenção foi feita para manter a Ordem e a Lei porque nem a Força Pública nem a Polícia Civil teria condições de sufocar a revolta. Tinham sido ultrapassadas e o que estava em risco não era a “ordem pública”, mas o princípio do Estado.  

 

     Há outro elemento que sempre fez que as Forças Armadas não fossem empregadas em missão de polícia: a Federação. E para pretendê-lo, agora, seria necessário reformar a Constituição. Não bastará uma lei ordinária ou complementar para resolver a questão. Aceitar essa tese — que será levantada pelo Ministro da Defesa — será um golpe de Estado, pura e simplesmente. Digam o que disserem em contrário todos os defensores da idéia de empregar as Forças Armadas no combate ao crime comum nas cidades e nos campos.  

 

     Ao autorizar os estados a ter PMs para cumprir missões de polícia preventiva e ao autorizar a existência de polícias civis estaduais para desempenhar as funções de polícia judiciária, as Constituições republicanas vedaram à União cuidar da manutenção da ordem pública. Essa função passou a ser eminentemente estadual. Na Constituição de 1988, pode ler-se: “Artigo 144 — § 5º — Às polícias militares cabem a polícia ostensiva e a preservação da ordem pública…”. A Carta vai mais além: estabelece no artigo 34 que a União só intervirá nos Estados: “III — para pôr termo a grave comprometimento da ordem pública”. Por “grave comprometimento” deve entender-se, na melhor doutrina, situação em que os órgãos repressivos do estado federado foram ultrapassados por revolta ou movimentos perturbadores da ordem pública — e movimentos de tal monta que a figura do Estado está em risco.  

 

     Ao utilizar o Exército no combate ao crime comum, organizado ou não, sem reconhecer que o Estado está em risco, o Governo atual só faz colocar em risco o princípio mesmo do Estado.

 

  

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