Nunca pretendi que os textos que divulgo nesta página parecessem aulas que estivessem sendo dadas a meus alunos na Universidade. Marcando uma posição, sem dúvida, sempre desejei apenas que motivassem reflexões sobre os fatos.
Hoje, sou obrigado a quebrar esta regra, em decorrência da crise em Honduras. Se o faço, é porque considero que a prática política de nossos dias, no Brasil e no mundo (!), está a exigir que se raciocine sobre ela com base na História − única forma capaz a que se compreendam os fatos e as atitudes dos que deles são protagonistas.
Posto isto tudo, vamos à História.
A história das relações entre os países da América ibérica − o conjunto de Estados que resultaram das colonizações portuguesa e espanhola – e os Estados Unidos está marcada, desde o fim do século XIX, mas com maior vigor na primeira metade do século XX, pela luta dos Estados ibero-americanos por reconhecimento de que são Estados soberanos. Quem se der ao trabalho de estudar as muitas outras Conferências interamericanas que se realizaram depois da primeira, a de 1889, convocada pelo Congresso dos Estados Unidos, verá que os Governos norte-americanos, fossem quais fossem, sempre resistiram a que se adotasse resolução defendendo o princípio da não-intervenção de um Estado nos assuntos internos e na política externa de outro.
As intervenções norte-americanas na América Central e nas Antilhas − a mais gritante delas terá sido o apoio dado à “revolução autonomista”, da qual resultou a separação do Panamá da Grã-Colômbia, em 1903 − sempre foram o pano de fundo contra o qual os ibero-americanos discutiram juridicamente os limites do poder dos grandes Estados e procuraram assentar as bases jurídicas que garantissem o exercício de sua soberania.
Até que se formassem nuvens negras na Europa e o Governo de Washington decidisse que a América ibérica era sua retaguarda e, como tal, deveria ser defendida ou neutralizada, os Estados Unidos sempre se recusaram a reconhecer que os Estados deste Hemisfério eram soberanos e que, nesta condição, deveriam ser respeitados. Em 1933, na conferência de Montevidéu, finalmente Washington reconheceu que nenhum Estado poderia intervir nos assuntos internos e na política externa de outro − ainda que uma interpretação de inspiração expansionista e nacionalista insistisse em que a Doutrina Monroe deveria balizar a política do Departamento de Estado, e os Estados Unidos se reservassem o direito de ir em socorro de seus súditos em caso de ameaça à sua segurança e propriedades.
As decisões das Conferências interamericanas, que culminaram, em 1948, com a criação da Organização dos Estados Americanos (OEA), foram sempre marcadas mais pelo Direito que pela Força − que todos reconheciam estar no Norte –, não apenas pela invocação dos princípios do Direito Internacional; também pela referência sempre constante à Democracia como forma de governo. Assinale-se que, afora as referências ao Direito Internacional, tudo o mais era cercado de hipocrisia bastante para afirmar que os Estados “de là bas”, como os franceses a nós outros se referiam, estavam em dia com os progressos que se verificavam na Inglaterra, na França e nos Estados Unidos em matéria de regime político.
Na verdade, com poucas exceções, ditaduras imperavam no continente − e eram poucos os Governos que se importavam com a sorte dos que sofriam os “erros dos opressores e os atrasos da Justiça”. Se, nas relações entre os Estados, fazia-se apelo ao Direito, na prática cotidiana deste e daquele Estado o que valia eram as regras do Poder nu, para sermos explícitos, ou, se quisermos, a força bruta. Mascarada, embora, convém dizer, por constituições que fariam inveja a qualquer liberal inglês.
As ditaduras hispano-americanas sempre sobreviveram ao amparo do princípio da não-intervenção. O fato de serem Governos ditatoriais não significava que não houvesse oposição interna a eles. Muitas vezes, se não na maioria dos casos, as oposições nada mais eram do que movimentos de grupos sociais que haviam sido afastados do Governo e de seus benefícios por facções rivais. Algumas vezes, eram movimentos políticos que reivindicavam o direito de participar da partilha desse poder, tentando trilhar caminhos abertos pelas constituições não respeitadas pelos que haviam se apoderado do aparelho de Estado. Raramente eram organizações que se poderia dizer estarem dispostas a romper a ordem social estabelecida há anos.
Mesmo antes que a Guerra Fria batesse às portas das Américas, a Revolução procurou mudar as relações de poder em diferentes países. O Anarquismo do fim do século XIX não pode ser enquadrado na categoria “revolução” pela simples e boa razão de que não se apresentou, jamais, como movimento organizado para a tomada do Estado. Os anarquistas daquele período constituíam-se de pequenos grupos, portadores de um sentido ético da luta social que rara e esparsamente se viu nestas plagas. O bolchevismo da III Internacional, este chegou com o leninismo-stalinismo, e se sua ação e sua doutrina serviram de pretexto para que as oligarquias dominantes arrochassem ainda mais os controles sobre um proletariado nascente e uma classe média (os intelectuais em sua maioria) insatisfeita com a estreiteza dos horizontes culturais e políticos, ele, bolchevismo, embora ameaçasse os grupos no poder, nunca chegou a constituir ameaça real à velha ordem oligárquica.
Foram os movimentos que pretenderam fazer a Revolução dentro da Ordem que mais preocuparam os defensores do status quo. Não foram muitos, entretanto, esses movimentos, entre eles, a APRA peruana e a Ação Democrática na Venezuela. A APRA tinha uma característica: reivindicava o Índio, excluído da Cidade, da Polis, enquanto Índio. Como dizia Haya de la Torre, o Índio era marginalizado não por ser pobre, mas por ser Índio.
Para os fins que tenho em vista, fixemo-nos um instante na figura de Haya de la Torre.
Adversário das oligarquias e perseguido pela ditadura, mas também adversário dos comunistas peruanos, foi obrigado, no final da década de 1940, a refugiar-se na embaixada da Colômbia em Lima para evitar sua prisão pela polícia do General Odria. Seu asilo político durou cinco anos e ele só obteve o salvo-conduto (que era assegurado por convenções interamericanas) depois de sentença da Corte Internacional de Justiça de Haya. Nesse longo período de exílio, meditou longamente sobre a sorte dos que combatiam as ditaduras e as oligarquias, e não hesitou em romper o círculo que tem início no ponto da Soberania e termina no mesmo ponto, com a Não-Intervenção − círculo que lhe parecia comprimir os que pretendiam conquistar um lugar ao sol rompendo com as velhas práticas oligárquicas e ditatoriais dos Governos de seu e de muitos países da América. Daí ter escrito que a intervenção nos negócios internos de um país poderia ser realizada, desde que fosse para fazer que se respeitassem os direitos dos povos, entre os quais o direito a participar de eleições e chegar ao poder pela via democrático-formal. Era uma voz isolada, ademais, adversária da Internacional e das oligarquias, que contavam com apoio de empresas e políticos norte-americanos. Isolada e desconhecida permaneceu.
A Ação Democrática venezuelana, liderada por Rómulo Betancourt, chegou ao poder pela via insurrecional, apoiada por um vasto segmento do Exército que se levantava contra uma situação política que perpetuava as velhas oligarquias no poder. Em 1948, Rómulo Gallegos, figura proeminente da Ação Democrática e escritor de nomeada na América hispânica, foi eleito Presidente. Sua posse foi uma festa em que as elites intelectuais e políticas da América Ibérica confraternizaram em Caracas. O Major Pérez Jimenez, que compusera o grupo insurrecional de Betancourt, comandou o golpe de Estado que apeou Gallegos do poder pouco tempo depois.
Em 1956 ou 1957, juntamente com Haya de la Torre e José Figueres, de Costa Rica, Betancourt apoiou a guerrilha de Fidel Castro em Sierra Maestra. Figueres havia liderado uma revolução em Costa Rica contra um Governo que tinha o apoio do Partido Comunista. Uma das decisões do Governo que se seguiu à tomada do poder, foi extinguir o Exército desse país.
Em 1958, a Marinha venezuelana se subleva contra Jimenez e o destitui. Nas eleições que se seguiram, Betancourt foi eleito Presidente e tomou posse em 1959.
A APRA não chegou ao poder enquanto vivo Haya de la Torre.
Em 1959, Castro entrou em Havana. Pouco depois, a Guerra Fria arrombou as portas das Américas — a de tradição espanhola e a de tradição lusitana, que somos nós.
Em 1964, Betancourt não reconheceu o Governo Castelo Branco por não haver sido eleito pelo processo democrático.
Voltarei ao assunto.
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