Dentro de poucos dias, veremos levantar-se o pano para que se inicie o penúltimo ato da grande peça que fez de Honduras um palco bem maior que o território que o pequeno Estado da América Central ocupa. Bem maior, grandioso palco, porque é toda a idéia de América que foi posta em causa durante um drama de dimensões jamais vistas na história deste triste hemisfério. Será o penúltimo ato, porque, no seu decorrer, assistiremos a como se comportará a população de Honduras. Ela irá às urnas ou não? Terá tido Zelaya, de seu abrigo na Embaixada do Brasil, condições e forças suficientes para criar uma situação que permitirá que Chávez, Ortega, o Palácio no Planalto Central brasileiro e o Itamaraty continuem insistindo em isolar Honduras da comunidade americana? Ou a população hondurenha, votando em quem votar, até mesmo se votar nas esquerdas que apóiam Zelaya, dirá aos Governos da América e do mundo que um pequeno Estado, até meses atrás desconhecido de muitos, soube preservar sua dignidade soberana e proclamar que não admite intervenções daqueles que se julgam grandes e mais democráticos que todos, e, talvez por isso mesmo, resolvam violar o princípio da autodeterminação dos povos?
Só nos resta esperar que, após esse ato, que é o penúltimo, o pano desça e se erga, em seguida, para o ato final, o do reconhecimento das eleições − quando então poderemos ver com clareza como a “questão hondurenha” dividiu a América. Mais que isto, permitiu que as máscaras caíssem e nos fosse possível vislumbrar, afastados os antolhos, o futuro de uma organização internacional que pretende ditar normas a seus membros. Aguardemos, pois, os acontecimentos.
Voltemos agora nossa atenção para o grande país que pretendia liderar a “América Latina” e que se chama Brasil.
O drama a que assistimos evidenciou que em Brasília foram plantadas sementes de espécies diferentes. Uma germinou cercada daqueles que insistem em que uma política externa será reconhecida como independente caso limite-se a colocar o Brasil em posição discordante, quando não antagônica, à dos Estados Unidos. Deixada à Natureza, à força das coisas (idéia cara a Saint-Just enquanto procurava, com Robespierre, governar o mundo pela razão), transformou-se em árvore frondosa, a dar sombra aos que desconsideram a importância dos fatores geográficos nas relações entre os Estados, que devem manter-se altivas. Outra semente foi regada por um Gênio do Mal, que fez que a húbris, como os antigos gregos chamavam o excesso de orgulho e arrogância que atrai sobre os homens a vingança dos deuses, pervertesse a consciência dos que governam. Dessa forma, eles puderam se esquecer de que há normas a serem seguidas nas relações internacionais. Qualquer Governo que queira fazer o que bem quer corre o risco de que suas ações passem a ser vistas pelos demais com cautela, ainda que essa reserva não se expresse em atos diplomáticos formais.
Dois fatos, entre muitos, bem parecem caracterizar a possessão do Governo brasileiro pela paixão com que os deuses gregos permitiam que aqueles que desejavam ver desgraçados se alimentassem. O primeiro, o processo de concorrência para a compra dos aviões para a FAB; o segundo, a franquia da Embaixada em Tegucigalpa permitindo que Zelaya dali enviasse carta ao Presidente dos Estados Unidos em papel timbrado da “Presidencia de la República” – “Gabinete del Presidente”, e fizesse sua campanha política contra o Governo instalado pelo Congresso Nacional depois de uma decisão da Suprema Corte de Justiça de Honduras.
A abertura das portas da Embaixada foi um claro ato de intervenção nos assuntos internos de Honduras. Qualquer Ministro das Relações Exteriores que se preze nesta sofrida América terá anotado o feito e dele retirado as conseqüências: os tratados, declarações, documentos que cuidam do assunto já não valerão, para Brasília, sempre que for necessário dar realidade às idéias que o Coronel Chávez tiver de alguma questão política, enquanto posições ideológicas comandarem a política externa brasileira.
O outro fato é mais grave, embora poucos dele se tenham apercebido. A posição brasileira nesta concorrência de bilhões de dólares estará sendo examinada − se as conclusões já não foram tiradas − por dois tipos de pessoas: os funcionários diplomáticos e os fabricantes e vendedores de armas, que têm estreitas ligações com os Ministérios da Defesa de seus países. Que terão essas pessoas visto até agora?
O Governo brasileiro abriu uma licitação internacional para a compra de aviões de caça para reequipar a Força Aérea Brasileira. As regras do negócio foram conhecidas de todos: avaliação inicial das propostas, fixação em algumas delas e, depois de acurado exame técnico-financeiro por parte do Comando da Aeronáutica, escolha (política) pelo Presidente da República, que adequaria as recomendações do Comando da FAB à END e à exigência de transferência de tecnologia. Atendendo a essas regras, algumas ofertas foram rejeitadas de início, qualquer que fosse a alegada superioridade dos aviões oferecidos. Passou-se, então, à segunda fase, técnico-financeira, ainda não concluída (estamos a 24 de novembro).
Um dos concorrentes é a França. Enquanto o Comando da FAB examinava as propostas que haviam vencido a primeira fase, o Presidente desse país veio ao Brasil. Aproveitando a presença de Sarkozy, o Presidente Lula da Silva tornou pública sua preferência pela oferta francesa, sendo nisso seguido, dias depois e diversas vezes, pelo seu Ministro da Defesa.
Diplomatas, fabricantes e vendedores de armas devem ter-se sentido logrados e ter também suposto, com justas razões, concordemos, que a licitação era um jogo de cena, pois a escolha já estava feita, ou tinha sido definida já ao fim da primeira fase, quando algumas ofertas foram postas de lado.
Em licitações e concorrências que os Governos brasileiros (seja o federal, sejam os estaduais e municipais) abram e o resultado seja anunciado antes do fim do processo, os Tribunais de Contas determinarão a sustação do negócio, e os que concorreram e foram afastados politicamente recorrerão aos tribunais, alegando razões inclusive de ordem moral. Numa licitação como esta da FAB, a decisão é soberana e não há tribunal a que recorrer. Diplomatas, fabricantes e vendedores de armas só podem fazer juízos morais, que terão peso nas relações dos demais Estados com o Brasil, na medida em que um negócio de armas desse montante é como se fosse um negócio de Estado com Estado. Esses juízos morais atingirão o Presidente, seu Ministro da Defesa e, por via de conseqüência, o Estado brasileiro.
Húbris ou busca, mesmo que ingênua, de independência na política internacional de compra de armamentos? Sendo húbris, falarão os tempos. Sendo desejo de independência (ou o que seja), as Chancelarias não só dos países cujas empresas entraram no “jogo soma zero” (versão brasiliense, isto é, zero dólares para os que não são franceses), mas todas, absolutamente todas, abrirão uma pasta em seus computadores e nela passarão a arquivar anotações sobre as coisas estranhas que acontecem nos negócios referentes ao Brasil − nas relações do Brasil com todo o mundo − para que possam saber com quem lidam e como devem lidar.
Tudo isto − Honduras e aviões − aconteceu ao mesmo tempo. Os computadores estão conectados. Trabalhando.
xxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxx