O empenho que se coloca em revogar a lei da anistia deve ser analisado à luz de critérios diversos daqueles sob os quais muitos o vêem.
A análise corrente tende a fixar-se nos aspectos propriamente penais do problema que se criou e conclui que o objetivo das ações seria julgar e condenar Oficiais do Exército que, a juízo dos que dirigem a campanha, cometeram atentados contra os direitos humanos no período 1964-1985. O Plano Nacional dos Direitos Humanos, em sua terceira versão agora conhecida sob forma de decreto presidencial assinado por Lula da Silva — já publicado no DOU, portanto, em pleno vigor — seria disto a prova.
A batalha de usura que vem sendo travada em torno da validade e eficácia da lei da anistia tem-nos feito esquecer de um dos princípios que orienta qualquer bom General ao fazer seu plano de guerra, ofensiva ou defensiva: nunca desprezar o adversário. Minha impressão, hoje, é que aqueles que lutam com floretes, preocupados com defender-se das cargas da cavalaria adversária, a esse princípio não atentam. Com a distração, correm o risco de perder a batalha principal, ainda que venham a imaginar ter vencido a guerra, caso aqueles que chamo de sabreurs venham a dar por perdida a batalha secundária quando a questão da anistia for submetida ao Supremo Tribunal Federal.
Dessa perspectiva − a questão se decidirá no STF − é fazer pouco dos conhecimentos jurídicos do adversário caso partamos do suposto de que ele desconhece que a lei penal não retroage a não ser para beneficiar o réu. É igualmente um erro crasso menosprezar o entendimento que esse adversário tenha das coisas, e supormos que ele não saiba que as leis, a Constituição e os tratados internacionais, pelas quais pretende que os Oficiais do Exército sejam julgados, são todos posteriores aos fatos hoje apontados como ilícitos penais.
Conseguir a anulação da lei da anistia é o objetivo secundário de toda esta campanha. O objetivo principal − e para ele tenho chamado, de quando em quando, a atenção de todos − é fazer do Exército um instrumento da política do Governo e não do Estado.
O presente é o presente, o passado é o passado, bem sei; e, a muitos, parecerá desagradável relembrar fatos que supõem estar sepultos há muito tempo e remexer neles. Mas fatos do presente somente podem ser compreendidos caso saibamos como puderam acontecer, e soubermos quais fatos do passado os provocaram ou os tornaram possíveis. Reflitamos, pois:
1. Em 1936, na sucessão da Intentona de 1935, o Presidente Vargas (governo constitucional, convém ressaltar) conseguiu que o Congresso aprovasse duas emendas à Constituição, uma das quais dava ao Governo a faculdade de afastar dos quadros da Ativa do Exército e da Marinha quantos Oficiais considerasse que constituíam perigo para as instituições. Num famoso voto em reunião de Generais do Exército, Góes Monteiro firmou a posição de que o Exército cuidaria de seus problemas e de que o Governo não tinha por que arrogar-se o direito de julgar a conduta política dos Oficiais da Força de Terra. Góes concluía seu voto dizendo que, se o Governo pretendia de fato afastar da Ativa os Oficiais que considerasse menos leais às instituições, estaria transformando o Exército numa gendarmaria. Com o que ficava claro que, para ele, Comandante militar da Revolução de 1930, o Exército não poderia estar sujeito às variações de humor político dos governantes, sobretudo porque, além de ter uma função constitucional bem clara, definida pela Constituição de 1934, o Exército era o instrumento de uma política externa, portanto, um instrumento do Estado.
2. Conforme seja a concepção político-ideológica que se tenha da função do Exército (e das Forças Armadas em geral), tal será sua colocação no organograma do Estado, que é a Constituição. Mais do que a “folha de papel” reescrita tantas vezes ao sabor das conveniências do Executivo e de Congressistas, é a prática constitucional o que conta: que posição os militares ocupam no organograma constitucional? Têm assento entre aqueles que decidem ou deste círculo restrito são afastadas?
3. Em 1934, seguramente por sugestão ou pressão de Góes, o que era mero decreto − creio que de 1926 − incorporou-se à Constituição, com a criação do Conselho de Segurança Nacional desde sempre chefiado pelo Chefe da Casa Militar. A composição do Conselho evidenciou, durante todos estes anos, que os Ministros militares participavam das graves decisões de Estado, além de terem acesso direto ao Presidente da República na sua condição de Ministros e, convém lembrar, pela figura do Chefe da Casa Militar, de status igual à do Chefe da Casa Civil.
4. A Constituição de 1988 mudou o organograma do Estado no que se refere às Forças Armadas, extinguindo o Conselho de Segurança Nacional e criando em seu lugar um outro órgão, o Conselho de Defesa, que nem tem as mesmas características do CSN, nem tem as mesmas funções. Mudou sem que na campanha eleitoral para a Constituinte, em 1986, o assunto tivesse vindo à baila. Foi o primeiro sinal do afastamento dos militares dos centros de decisão, que pouca reação provocou, afastamento este confirmado anos depois com a criação do Ministério da Defesa e a subordinação das Forças aos civis. Aqueles que se dedicarem a estudar o porquê dessa mudança deverão lembrar-se de que o Brasil era um dos poucos, se não o único País da América do Sul que ainda não tinha, a exemplo dos Estados Unidos, criado um Ministério da Defesa.
5. Subordinadas a um Ministro civil nessas novas condições (lembremo-nos que o antigo Ministério da Guerra pôde ser ocupado, eventualmente, por um civil, um civil de fibra, Pandiá Calógeras, que, sem representar qualquer prejuízo para as funções militares, foi e é até hoje considerado um dos melhores Ministros que o Exército já pôde ter), as Forças Armadas deixaram de ter acesso direto ao Presidente da República e às decisões de Estado. Foram assim, como hoje se diz, “blindadas” as decisões civis a respeito das questões militares e de Segurança e Defesa nacionais. Pela força da inércia político-institucional que regeu o processo brasileiro até a escolha do Sr. Nelson Jobim para o Ministério da Defesa e que agia a favor da presença militar no Estado — fato evidenciado claramente com a nomeação do Vice-Presidente da República para ocupar o cargo depois de uma sucessão de civis na Pasta da Defesa sem condições de vencê-la — as Forças Armadas conservaram parte de seu poder de pressão nos assuntos administrativos.
Voltemos então ao tema principal deste artigo.
A batalha que tem por objetivo alcançar o objetivo secundário é uma batalha frontal − de usura, convém sempre repetir. Para ela, mobilizam-se as ditas “organizações da chamada sociedade civil” que, por seus porta-vozes, reclamam “justiça” para que se possa conhecer — este o grande argumento usado na arregimentação dos recrutas a quem chamo de sipaios — a “verdadeira” história do Brasil. Não apenas estas organizações foram mobilizadas. Agora, a notícia é de que há mais de 10 mil assinaturas em documento na internet reclamando que a “justiça” se faça contra os militares. Assinaturas de dez mil indivíduos (ou mais) que serão encaminhadas ao STF para que os Ministros possam decidir e julgar em consonância com a “vontade geral da sociedade civil”.
Os que comandam esta batalha sabem como travá-la, inspirados não nas lições de um cavalheiro chamado Antonio Gramsci (que alguns insistem em apontar como máximo denominador comum de todas as pragas), mas na doutrina político-militar da guerra subversiva. Nesse tipo de confronto, o importante é conquistar corações e mentes. Essa conquista sempre se deu pela propaganda e pelo terror, fosse quem fosse o interessado nela. A propaganda pode resumir-se à repetição diuturna de uma palavra de ordem que faça apelo aos corações, isto é, aos sentimentos mais profundos de Justiça de intelectuais ou simples homens do povo. Se os primeiros, em grande número, reclamarem Justiça, a batalha está ganha. E o poder garantido.
Assim acontece porque, pelo processo de circulação social das idéias, cada intelectual conquistado por aqueles que dirigem a luta pela “justiça” significa, a médio prazo, a conquista da confiança de cem homens do povo.
A mente (dos intelectuais ou dos simples, sempre preocupados com as questões da vida e da morte) conquista-se por um tipo especial de “terror”, que consiste em fazer que os indecisos saibam que sua adesão ao partido contrário ou à proposta contrária implicará, para todo o sempre, o seu isolamento social, na medida em que serão rotulados de “reacionários”, quando não de “defensores da injustiça”, quando não “defensores da tortura”.
Os que viveram os anos que se seguiram à posse do Sr. João Goulart no sistema parlamentarista, e antecederam março de 1964, lembrar-se-ão de que todos aqueles que se manifestaram a favor da posição assumida pelos Ministros militares, que eram contrários à posse de Goulart, foram acoimados de “reacionários” e “gorilas”. A pecha tinha tamanho impacto que o próprio Sr. José Bonifácio, candidato da UDN às eleições para Governador de São Paulo em 1962, fez questão, em comício, de condenar os “gorilas” e afastar-se dos Ministros Denys, Heck e Moss.
Para um intelectual, mais do que para o homem do povo, o isolamento social com base numa acusação deste tipo é como uma sentença de morte.
A reação não tardou. Na ocasião, um Capitão da Reserva do Exército procurou, na Bahia e na área de atuação do que era então o IV Exército, reverter o processo: lançou, juntamente com seus companheiros da “Frente Patriótica Sete” (pois essa “frente” era composta de apenas sete Capitães) um jornal chamado “O Gorila”, apontando, no primeiro número, aquilo que seriam as virtudes do animal: força, inteligência e fidelidade ao grupo.
Para a conquista dos corações e das mentes, na guerra subversiva, é necessário seguir uma das lições de MaoTsé-tung: o guerrilheiro deve ser como um peixe fora d’água, isto é, deve confundir-se com a população. Confundir-se de tal maneira que ninguém dele suspeite, o que lhe permitirá agir quando necessário, encoberto por sua condição de pacífico cidadão.
Na batalha de usura, os sipaios são aqueles que foram conquistados pela propaganda e em boa medida também pelo “terror”. Eles não são uma coorte, “parte de uma legião”. São uma legião inteira, composta por tantos quantos temem o isolamento social a que estarão sujeitos caso não formem entre os que simplesmente querem que se faça “JUSTIÇA”, assim mesmo, com maiúsculas e com aspas.
Os “peixes de Mao” são de outro tipo. Eles são aqueles que travam a batalha principal como se fossem Forças Especiais, as que os ingleses e os norte-americanos empregam para destruir alvos inimigos no meio da noite. Sua missão não é reclamar “JUSTIÇA”; é destruir a solidariedade do Exército que têm como inimigo. Sua estratégia não é a da usura. É a da aproximação indireta.
A batalha principal é esta. Nela, as armas são a propaganda que visa a constranger os intelectuais, colocando-os diante de um problema que nada tem a ver com os ideais de Justiça: para que servem as Forças Armadas? Elas devem ter o poder que tinham antes da criação do Ministério da Defesa ou devem ser estritamente profissionais, subordinadas ao Poder Civil como o são nos países do Primeiro Mundo, especialmente nos Estados Unidos?
É em torno destas questões que se trava a batalha principal sem que haja quem, nas estruturas militares, atente para a gravidade delas.
E estas reflexões vão longe. Eu as retomarei em breve.
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