Com o título ‘Jó e a pós-modernidade’, versão condensada deste primeiro ato foi publicada em O ESTADO DE S.PAULO – 03/03/2003
ATO I {3/3/2003}
Intróito
{cortinas ainda fechadas, ouve-se uma voz forte e pausada}
Segundo as Escrituras, um belo dia Satanás e Javé conversaram sobre as virtudes de Jó. Foi quando o Criador autorizou o Anjo da Luz a que tocasse em todos os bens de Seu servo, exceto nele, pessoalmente.
Nesse diálogo entre os dois Princípios Não-Criados, Lusbel ainda propõe, e Javé aceita, que, em lugar de sentenciar os homens, todos de uma vez, no dia do Juízo Final, julgamentos parcelados sejam feitos, à medida que as almas estejam prontas para enfrentar seu destino. Mera questão de O&M, o que não existia quando se escreveram as desventuras de Jó.
É preciso também saber que os ingleses seguidores de Isabel I, a Virgem, não gostavam dos santos católicos, em especial dos jesuítas. Lê-se em alguns autores, testemunhas dessa época, que, no Inferno, sentados à mesa, estavam Lúcifer e, à sua direita, Maquiavel. Quando a porta se abriu, adentrou Santo Inácio. A imediata reação do Secretário Florentino foi, dirigindo-se a Lúcifer, alertá-lo a que não recebesse Inácio no Inferno, sob risco de perder seu trono.
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Cena I
{No Purgatório. Sentados à mesa estão São Pedro, Guardião das Chaves do Reino dos Céus, Inácio e Maquiavel. Gabriel, o Arcanjo, faz as vezes de escriba. Ao fundo, uma fotografia de Luis Inácio Lula da Silva. A um canto, Lusbel, o Maligno, cuida para que o Juízo transcorra de acordo com as regras do “due process of law”. A sabedoria de Pedro é considerada bastante para discernir entre o erro e o acerto. Pedro a tudo assiste impassível, tão atento que aparenta cochilar. O Arcanjo afila a pena.}
INÁCIO — Peço vênia para escusar-me. Quando fidalgo espanhol, abandonei uma existência plena de encantos para fazer de minha vida uma dedicação exclusiva ao Papa. Não posso acusar nem defender, pois no Governo sob julgamento há alguém da Ordem dos Pregadores e os dominicanos sempre foram ferrenhos adversários dos jesuítas, muitas vezes criando obstáculos à sua ação. Prefiro, portanto, declarar-me impedido, não sem antes dizer algumas palavras de conforto àquele que aqui está em busca de justiça: não temo que venhas a se opor a que se faça uma república semelhante à que criamos governando a nação guarani. Se a Coroa Portuguesa a destruiu, o Governo brasileiro não o poderá fazer, pois cuida, com muita finura, de retirar a força do braço armado do Estado.
MAQUIAVEL {irritado} — Neste particular, o venerável cavalheiro espanhol incorreu em grave erro. Deveria ter aprendido, inclusive porque foi o Capitão-general de sua Companhia, que Príncipe algum se mantém no poder se não se apóia em boas leis e em boas armas. Quando se afastam as Armas do Príncipe, os tribunos da plebe (como se estivéssemos em Roma!) fazem dos soldados os responsáveis pela crise do Estado. Não só o fazem dos Soldados, mas também dos Juízes (e quem julgará, se eles se forem?) e dos Diplomatas (e quem impedirá as guerras injustas, no dizer dos Papas?). Calando-se, Inácio, o Espanhol, teria feito melhor. {amaciando a voz}—Devo louvar o cuidado com que se mascara a verdadeira essência do Partido dos Trabalhadores. Apenas os que me souberam ler podem avaliar o quão importante é que os basbaques acreditem ser o PT um partido apoiado no funcionalismo, sem atentar a que ele, no universo político brasileiro, é o único partido profissional, um partido que tem suas próprias receitas, cujos membros não necessitam cuidar de ganhar a vida labutando como todos os demais mortais, e unicamente se dedicam ao triunfo do partido über alles. Devo, portanto, exaltar a estratégia. Apenas os que souberam ler corretamente os meus escritos puderam ver que o Príncipe moderno é o partido — não um partido qualquer, e sim uma organização militante, profissional. Ulianov soube ver as vantagens do profissionalismo: conquistou um Estado e o submeteu ao partido.
— No Governo Lula da Silva não apenas se procurou fazer do partido o Novo Príncipe, como se deu a um dos membros do círculo mais íntimo do Presidente algumas funções parecidas com as do Secretário-Geral Djugachvili. Ou, por acaso, não seria José Dirceu um novo Secretário-Geral, controlador da máquina partidária e do Estado, quem teve o poder de dizer sim ou não na nomeação de todos os secretários executivos dos Ministérios e os que vêm abaixo deles, todos os DAS-6 e DAS-5? E não teve ele poder suficiente para manobrar, com o objetivo de desestruturá-lo, um partido adversário que está ansioso por gozar das vantagens do poder porque nisso é viciado? {volta-se para a fotografia e prossegue em tom de quem adverte o suplicante}— Se queres gozar da paz que Pedro te pode oferecer, esquece-te daquela senadora Heloísa Helena! Pensa que ela tem mandato popular inviolável e que ninguém deve tocar em seus cabelos, porque ela se constitui, em si e sozinha, numa fração. Se, porém, desejas servir eternamente ao Príncipe da Luz que nos olha, reedita os Processos de Moscou, acusa-a de trotskista, de inimiga da revolução — a que o Secretário-Geral diz que irá fazer um dia — e a enquadra. Estou certo de que todos se regozijarão porque assim se elimina um radical, e porque nesses processos se comprovará que, de fato, existe no Brasil aquele partido que todos, à direita e à esquerda, políticos e mídia, afirmavam que era necessário existir para a democracia triunfar em sua perfeição, segundo um modelo europeu. O Governo militar, este, sim, cassava os dissidentes. Enquadrá-los, hoje, sem dúvida divertirá Lusbel.
{Inácio, o Santo, fez um gesto, significando que pretendia falar. E a palavra lhe foi concedida}
INÁCIO {voz suave, tão doce quanto a da repreensão que recebera, dirige-se ao Secretário Florentino} — Perdoai-me. Não sei, sinceramente, por que vos chamam de Il Nostro. Meu, não sois. Creio, mesmo, que nem àquele que de nosso juízo depende pertenceis, ou ele a vós pertence. Pois vos demonstrais incapaz de ver as coisas como de fato são. E pensar que fostes vós quem ensinou que o ‘parecer’ é diferente do ‘ser’! Acaso não percebeis que o verdadeiro Djugachvili não é aquele a quem chamais de Secretário-Geral? E que, ao verdadeiro, convém que todos vejam o falso como se verdadeiro fosse, e sejam incapazes de reconhecer que o verdadeiro Secretário-Geral é quem tem as chaves das Finanças, as do Diário Oficial, do Império da Pós-modernidade, aquele que se diverte com a direita e a esquerda do seu e de todos os partidos, e pensa em liquidar, primeiro, os radicais e seus inconvenientes simpatizantes e, em seguida, todos quantos sonham com a continuação do reinado de Dom Fernando, o Primeiro? Sinceramente, Messer Secretário, não fazeis jus aos títulos que a Academia vos concedeu. Pensai um minuto, Maquiavel, e depois me direis se não é melhor, para encantar o povo, que o mal seja feito por aquele que é visto como sendo o homem forte, enquanto o verdadeiro Djugachvili viaja e, recriando a imagem de Dom Fernando, compõe sua própria imagem de líder mundial dando a todos a nítida impressão de que tem preguiça de governar? Refleti, vos peço — e depois, talvez, sereis tentado a escrever de novo ‘O Príncipe’, não o ‘Moderno’, mas o ‘Eterno’. E mais não falarei, a menos que provocado por erros palmares de interpretação dos fatos.
{O Arcanjo segreda coisas ao ouvido esquerdo de Pedro}
PEDRO — Haveis ambos, vós, Inácio, e vós, ilustre filho de Florença, trazido valiosas contribuições para que Javé possa, em última instância, exarar sua sentença que, como sempre, será inspirada pela Justiça e guiada pela Misericórdia. Nada tenho a acrescentar ao que haveis dito — e estou certo de que estareis sempre à disposição do Senhor para continuarmos este julgamento. Gostaria, humildemente, de lembrar que não há mal que se revele tão irreparável, aos olhos de Javé, quanto enganar, com o firme propósito de enganar, os humildes que necessitam crer. Recolhei-vos e permanecei atentos ao desenrolar dos fatos. As Portas estarão sempre abertas para todos quantos desejarem trazer suas ponderações, suas críticas e seus louvores. {e, em latim, encerra a sessão} — Ite in pace. Dominus vobiscum.
{Cai o pano}
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Cena II {16/12/2003}
{O cenário é a entrada do Paraíso, podendo ver-se, na lateral, uma porta, encimada por um pequeno letreiro que indica, à direita, o Purgatório e, à esquerda, o Inferno. Ao centro, uma mesa e três cadeiras, uma delas com um grande espaldar. Algumas outras cadeiras diante delas. Entram as personagens do drama: São Pedro, que presidirá o julgamento, Maquiavel e Santo Inácio, cujo impedimento alegado não foi aceito por instância superior, que funcionarão como promotores. E os defensores vestidos diferentemente da Acusação}
UMA VOZ— A Defesa está a cargo de Talleyrand e de Vichinsky. O primeiro foi escolhido por sua habilidade: Bispo, eleito para os Estados Gerais, defendeu a abolição dos privilégios da Nobreza e do Clero, sobreviveu bem ao Terror, foi Ministro de Napoleão, traiu o Imperador, foi Ministro de Luís XVIII e participou do Congresso de Viena. O segundo foi o promotor nos processos de Moscou, condenando toda a velha guarda bolchevista. Ninguém melhor do que eles para defender o Governo de Luís Inácio Lula da Silva, cujo primeiro ano está sob julgamento.
PEDRO — Está aberta a sessão. Lembro que, na anterior, ficou em suspenso qualquer juízo sobre o Governo do Partido dos Trabalhadores, embora Inácio e Maquiavel tivessem, cada um a seu modo, apresentado argumentos que o poderiam tanto inocentar quanto condenar. Desta feita, já um ano decorrido, devemos rever o que passou e ver como proceder.
INÁCIO {com voz mansa} — O compromisso de que a pobreza seria eliminada foi negligenciado. Apesar de o assessor especial da Presidência ter, pelos votos que prestou na sua Ordem, a obrigação de zelar para que o Programa Fome Zero fosse uma realidade, pouco fez. Isso permitiu que o Governo sofresse críticas, justas, e passasse muitas vezes como um artesão de mentiras.
MAQUIAVEL — O Santo espanhol me faz lembrar a famosa Aldeia Potiemkin no tempo de Catarina, a Grande.
VICHINSKY — Protesto! Maquiavel está trazendo assuntos não pertinentes à colação.
PEDRO — Protesto aceito. Maquiavel, explicai como a Aldeia Potiemkin entra nesta discussão.
MAQUIAVEL — Nos tempos de Catarina, dizia-se que os camponeses passavam fome, não tinham com o que iluminar seus casebres e estavam sujeitos a toda sorte de misérias. Catarina não podia suportar aquilo, pois, afinal, Voltaire era seu amigo e vivia dizendo que déspotas esclarecidos não podiam admitir uma situação como aquela. Chamou, então, seu Primeiro Ministro, Potiemkin, e disse-lhe que queria visitar uma aldeia de mujiques. O Ministro abaixou a cabeça e, saindo do gabinete imperial, chamou o Chefe da Okhrana e lhe deu ordens precisas: quero uma aldeia que deixe a Czarina satisfeita. Dito e feito. Um mês depois, Catarina visitou uma aldeia camponesa no interior, bem longe de São Petersburgo. Que beleza! Camponeses sorrindo e cantando. Mesa farta. Campo florescente. Panorama que nem em França havia igual. Atrás das portas, os agentes da Okhrana vigiavam para que a peça fosse bem representada. Catarina foi embora, escreveu a Voltaire, e a Okhrana mandou os mujiques de volta para suas aldeias verdadeiras.
PEDRO — Que tem isto a ver com o nosso caso?
INÁCIO — Vossa Santidade deve lembrar-se da propaganda: as televisões filmando gente feliz, luz nas casas, todo mundo comprando eletrodomésticos etc.
PEDRO — Bem! Que Maquiavel continue sua intervenção.
MAQUIAVEL — As verbas para os programas sociais não foram liberadas com a rapidez necessária. Há notícia de que os programas estão atrasados porque Palocci reteve o dinheiro, mancomunado com Mantega. Tudo para fazer um superávit, que dizem primário. É de fato primária essa mania de economizar em cima dos pobres. Tudo contrário ao que o Senhor sempre pregou. E houve os acordos com o FMI, a pretexto de garantir um ano próspero em 2004.
TALLEYRAND — Protesto! Peço a palavra!
PEDRO — Permito a palavra. Embora contra o regimento.
MAQUIAVEL — Protesto! Cassou-me a palavra. É o conluio da Igreja com os poderosos!
PEDRO — Protesto negado. Tem a palavra Talleyrand.
TALLEYRAND {ajustando a peruca nos cabelos já ralos, solta uma voz estridente. Vichinsky dá mostras de estar incomodado}—Este é meu protesto e será longo. A Acusação está sendo parcial ao incorporar as teses da esquerda do PT, que foi devidamente castigada. O superávit primário é uma exigência do bom governo. Sempre defendeu o Bem Comum, doutrina da Igreja sustentada pelo assessor especial {à socapa, acrescenta: ¡ª “… dominicano…”, e prossegue}. Se Palocci, com o apoio do Presidente, não tivesse feito a política que fez, teríamos tido o caos social no Brasil, o desemprego seria bem maior, não haveria investimentos e, sobretudo, como o Presidente disse aos militares, o risco Brasil não teria caído de mais de 2000 pontos para menos de 500. É preciso que a Acusação não se esqueça de que cada ponto no risco pode significar um ponto percentual nos juros dos empréstimos, acima da taxa norte-americana de curto prazo. Que pretendia a esquerda do PT? Que vivêssemos no caos? Sem contar, ainda, com o apoio das Forças Armadas? De que nos acusa Inácio? Só ingênuos podem pensar que um Governo qualquer se sustente por cima do caos.
VICHINSKY{sotto voce}—E se a Acusação se refere ao caos provocado pela criminalidade?
TALLEYRAND — Pensai, Maquiavel, pensai, Santo Inácio, que o Governo Castelo Branco fez a mesma política: a recessão de 1965/6 foi dura, mas depois foi possível ao Delfim realizar o milagre brasileiro. Por que o Governo Lula da Silva não repetiria a mesma política? Ademais, pensai no seguinte: o Governo seguiu estritamente os conselhos de Vossa Excelência, Maquiavel: fez todo o mal de uma só vez e se reserva, agora, para fazer o bem aos poucos.
VICHINSKY {a meia voz} — Idiota! É o bem de uma só vez!
INÁCIO {para Maquiavel} — Devagar, devagar. As eleições estão próximas e, do pouco bem que fará, será imensa a propaganda.
MAQUIAVEL — Vejo que o Reverendo Arcebispo terminou seu protesto. O nobre representante do Clero — Napoleão tinha razão ao dizer que era um cínico — deveria atentar para o fato de que Messer Palocci poderia ter agido de maneira diferente se fosse fiel a seu passado político e não se sujeitasse aos caprichos do Presidente. {volta-se para Pedro} — Vossa Santidade deve atentar para o fato de que o sistema político brasileiro é presidencialista e se algum Ministro faz uma coisa é porque o Presidente consente, ou manda. Olhando as coisas com isenção, não posso me furtar de chamar a atenção de Vossa Santidade para o fato de que o Presidente Lula já se encontrou várias vezes com o Presidente Bush, que dizem que manda no FMI. É também o homem que decidiu invadir o Iraque. Não é demais pensar que…
VICHINSKY — Protesto! Não se pode julgar alguém na base do ‘não é demais pensar’. A Acusação deve apresentar fatos.
PEDRO — Aceito o protesto.
MAQUIAVEL — Esqueçamos a amizade que parece existir…
VICHINSKY — Protesto!
MAQUIAVEL — … esqueçamos as relações entre Bush e o Presidente. Fiquemos na política de Messer Palocci. Seu passado — a menos que as privatizações em Ribeirão Preto o tenham convencido do contrário — deveria recomendar, tão logo assumiu, que fizesse apelo ao povo, à burguesia industrial e aos banqueiros. Afinal, a eleição fora consagradora. Feito o apelo, teria uma oportunidade única, sendo o Presidente o grande comunicador que é: lançaria um empréstimo público, a ser subscrito por bancos, empresas, pessoas físicas, para pagar as primeiras contas a vencer e a ajudar a modificar o perfil da dívida interna.
TALLEYRAND — Questão de ordem!
PEDRO — Mais uma vez, o nobre defensor está contra o regimento. Concedo-lhe dois minutos.
TALLEYRAND — Serei breve. Lembraria ao nobre Secretário que Trotsky, que dizem ser mentor intelectual de Palocci, preconizava o respeito às leis da economia mundial.
MAQUIAVEL — Lamento discordar da intenção do nobre Bispo, mas o que Leão dizia era que o Partido estava no poder fazendo sua política — e não a de Kerensky — e chamando o capital estrangeiro. O prestígio de Lula permitiria que o empréstimo fosse subscrito. E então seria possível atender ao problema externo.
VICHINSKY {sotto voce}— Maquiavel está com Florença na cabeça e se esqueceu de como os banqueiros, até mesmo os florentinos, gostam de dinheiro.
MAQUIAVEL {forçando um pigarro} — Gostaria de entrar agora em um assunto muito delicado. Lembro-me de que observei certa vez que o Príncipe deve governar com boas leis e boas armas. Ora, que boas leis o Presidente fez? A da Previdência? Pode ter ajudado o Tesouro, se é que ajudou…
VICHINSKY — Protesto!
MAQUIAVEL — … mas comprometeu o desempenho do Estado. A reforma tributária? Aumentou impostos nas costas dos empresários e do povo. E as boas armas? Onde estão?
PEDRO — O Senhor me comunicou que temos um assunto urgente a tratar. O número de soldados americanos mortos no Iraque está aumentando. Precisamos decidir que fazer com eles, pois o Céu está lotado pelos brasileiros que morrem nas mãos do chamado crime organizado. Em breve vos comunicarei a data da próxima sessão.
{Levanta-se Pedro e, depois dele, todos. Cai o pano}
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