Alguns intelectuais e jornalistas discutiram, há dias, em São Paulo, os riscos que um futuro Governo Dilma poderia representar para a democracia; e fizeram um apelo para que a Imprensa tomasse partido nas eleições a fim de evitar maiores ameaças para o País.
Na análise que eu possa fazer dessa iniciativa haverá, seguramente, muito do que aprendi − e depois lecionei − na Faculdade de Filosofia da USP. Ainda que esteja afastado das lides jornalísticas há pelo menos dez anos, a experiência que acumulei ao longo de longa carreira em jornal e na Universidade permite-me dizer alguma coisa sobre a influência que a Imprensa possa ter na formação da opinião pública, orientando-a para essa ou aquela posição política.
Em primeiro lugar, devemos considerar o avanço tecnológico e o predomínio de uma visão econômica na condução das empresas de comunicação. Na campanha contra a Imprensa, setores que poderíamos classificar como integrantes da esquerda tupiniquim insistem em que se faz necessário evitar que os meios de comunicação continuem sofrendo a influência dos seus proprietários e na necessidade de que haja um controle social desses meios. Os que perfilam esta tese não escondem seu viés ideológico e, nele insistindo, demonstram dar pouca atenção ao fato de que o progresso tecnológico retirou, dos proprietários, a condição de controlar aquilo que se publica, diz ou exibe.
Se, antes da informatização da produção jornalística e audiovisual (rádio e televisão), era possível aos proprietários − diretamente ou por seus delegados de confiança − controlar a priori o que seria levado ao público, a informatização lhes retirou esse poder. Podem, quando muito, controlar as informações depois de publicadas, cuidando de que não se repita aquilo que atente não apenas contra sua especial visão política das coisas, mas também contra os interesses da empresa. Isso, caso estejam, de fato, interessados em exercer esse poder que é, sem dúvida, controle, mas, quando existe, é um controle que se exerce, repito, depois que a notícia ou opinião foi veiculada e produziu (admite-se) efeito. Com o que a tecnologia deu aos jornalistas uma liberdade de ação (para não dizer um poder) que antes não possuíam.
É de ver que o controle posterior ao fato da publicação muitas vezes se faz tendo-se em vista apenas os interesses econômicos. Veja-se, igualmente, que o controle econômico tanto visa a manter anunciantes privados, evitando desagradá-los, pois poderiam retirar a publicidade, quanto visa a manter a propaganda do Governo, qualquer que seja ele, considerando-se que os anúncios institucionais são importantes para equilibrar ou tornar positivo o balanço da empresa. Note-se ainda que, mesmo havendo esse propósito, existe a possibilidade − real em muitos casos − de as notícias ou os comentários continuarem sendo feitos em linha contrária à do Governo. Prova disto é o ataque sistemático do Presidente Lula da Silva aos meios de comunicação, equiparando-os a partidos políticos, e o empenho dos setores ligados à esquerda tupiniquim em que se estabeleça o seu “controle social”.
A preocupação de intelectuais e jornalistas a que me referi no início vai no sentido de que os jornais e outros meios de comunicação assumam posição partidária no pleito de outubro, esquecendo-se de que, assim, acabam dando razão ao Presidente Lula da Silva no que ele não tem… Todos, inclusive os que, dentre eles, pertenceram ao Partido Comunista e hoje não apóiam o Presidente, dão prova de que pouco sabem a respeito de como se trava aquilo que se chama de guerra subversiva, a que, tempos idos, chamou-se, num texto legal, de “guerra psicológica adversa”. Os que se dedicam à difusão das idéias de Gramsci poderão dizer que tanto a guerra subversiva quanto a psicológica adversa se inserem no quadro da conquista da hegemonia política, esquecendo-se também de que seu autor preferido falava em direção intelectual e moral do processo.
Creio que é necessário estabelecer uma clara distinção entre a luta que se trava na guerra psicológica adversa e aquela que visa à conquista do que se chamaria de hegemonia. A primeira tem como objetivo destruir uma dada visão de mundo sem necessariamente impor uma outra qualquer que a substitua; a segunda pretende alterar quaisquer visões de mundo existentes para que seja imposta uma nova maneira geral de ver o mundo, de ver todas as coisas e, sobretudo, de ver as relações entre o Estado e os setores dominantes da sociedade e as pessoas comuns que no mundo vivem e das coisas se servem.
Preocupados com a possível derrota de seu candidato e os amargos frutos que se colherão da vitória de Dilma, quase todos os críticos do PT e partidos aliados emprestam muito pouca importância à tarefa de destruição que vem sendo realizada há tempos; ou ninguém atenta a essa tarefa, com o que colabora com a destruição em curso. Da mesma maneira, poucos dão importância ao que, no afã de destruir, muitos fazem hoje, conscientemente ou não.
Fiquemos, por ora, na destruição.
Durante os Governos Figueiredo e Sarney, criei para uso meu e de um colega igualmente preocupado com estas coisas, uma figura misteriosa que estaria por trás de muitas notícias que eram publicadas em diferentes jornais e revistas semanais, que nos pareciam ter o único propósito de desmoralizar o Presidente da República. A ela dei o nome de “Jaguar”.
Não nos preocupavam, então, os efeitos que as novelas exibidas nos diferentes canais de televisão causavam na mentalidade dos homens do povo, que continuo chamando de simples, colocando em xeque os valores referentes à Família e aos problemas da vida sexual a ela correlatos e, também, é preciso dizer, mostrando com evidente exagero o desregramento do comportamento moral − moral à luz da moralidade católica então vigente − dos que nelas apareciam retratados como sendo “os ricos”. Ricos, simplesmente, não burgueses nem proprietários. Apenas ricos. Essa influência continua a ser exercida até hoje, abalando o império da Santa Madre sobre os simples.
Não é isto que está em pauta agora. Nem foi esse o tipo de informação que me levou a criar a figura do Jaguar. O que provocou sua criação foi repetirem-se notícias e comentários, com conteúdo sempre idêntico, em diferentes jornais e revistas: um meio de comunicação qualquer publicava um fato como notícia, ou um deles inseria um comentário à notícia que, à primeira vista, tinha a aparência de verdade. Dias depois, em outro veículo, aparecia idêntica informação ou comentário, redigido de modo diverso − os autores eram sempre diferentes. E assim sucessivamente.
Hoje, algo muito semelhante se vê, e a razão será a mesma. Observe-se, por exemplo, que, no julgamento (ou apenas na menção dele) que, desde 1985, faz-se do regime dos Presidentes militares e dos próprios militares, insiste-se em dizer que o regime terminou em 1985, com a eleição de Tancredo Neves, quando os documentos provam que, a partir de 1º de janeiro de 1979, o Presidente da República, fosse civil ou militar, não mais teria poderes discricionários e que o habeas corpus voltara a ser a arma contra os erros da Justiça ou da Polícia. A insistência em retardar tudo isso em 6 anos apenas nos diz que a História ou a Justiça já pouco valiam e ambas deveriam ser desmoralizadas, e apenas as eleições diretas especificamente para a Presidência da República deveriam ser supervalorizadas.
No atual confronto de posições, Serra é sempre apontado como um político “de direita”, ainda que seu passado e seu Partido isso reneguem, e ainda que sejam muitos os que, no campo que dir-se-ia conservador, reclamem a ausência de uma Direita no País. Houve tempo em que se distinguia, por gentileza para com algumas pessoas, a “direita civilizada” da “truculenta”. Hoje isso não é mais necessário: basta apontar que Serra é “de direita”, na certeza de que a lembrança, imprecisa e tênue, mas sempre ativada e estimulada, do período de Presidentes militares levará tanto os simples como os bem-pensantes a acreditar que seu Governo repetiria aqueles de exceção, que se extinguiram em 31 de dezembro de 1978.
Mas não foi este, tampouco, o fato que me fez me lembrar do Jaguar. Ele me veio à lembrança quando, ao ler artigo de cientista político com alguma experiência da prática política, observei que − repetindo o que eu já havia lido em outra publicação sob outra assinatura – ele fazia referência à UDN para afirmar que a reação de Serra − e a de todos os que consideram que uma violação reiterada do sigilo legal na Receita Federal e no INSS é fato grave para a prática democrática – seria inspirada pelo “moralismo udenista”.
Quantos, no corpo eleitoral, recordar-se-ão de que houve, até ser dissolvido juntamente com outros pelo Ato Institucional nº 2, um partido cujo nome era União Democrática Nacional? Os que têm pálida memória do que aconteceu 30 anos atrás associarão a UDN ao nome de Carlos Lacerda ¯ aquele que (de acordo com os muitos propagandistas da “nova história” inclusive nas Universidades) foi um “destruidor de Presidentes”, o que “levou Getúlio ao suicídio e tramou a derrubada de Jânio Quadros e João Goulart”. Mais não será preciso para colocar entre os “inimigos de Lula” − estigmatizando-os como “udenistas” − os que vêem em muitos atos e políticas do atual Presidente indícios sérios de que poderemos trilhar caminhos danosos para todos nós e para a democracia. O importante, tudo nos leva a crer, será rotular de “direitista” e “golpista” quem possa tentar impedir a realização de um plano de poder absoluto, seja pessoal ou partidário − evidência que nos é oferecida por Dilma Rousseff ao acusar um Senador da República de “sistematicamente atrapalhar” as próximas eleições; o importante será impedir que a idéia, ainda pálida e difundida apenas em círculos muito restritos, de que esse plano de poder está em plena marcha ganhe força e extensão política, mantendo alertas amplas camadas da sociedade, tal como a pregação de Lacerda, desde 1945 até ser ele cassado pelo Governo militar, conseguiu.
O objetivo da esquerda tupiniquim está sendo alcançado pouco a pouco. A continuar lendo “UDN” e “udenismo” nos meios de comunicação, poderemos ter a certeza de que o Jaguar − que não existe e nunca deve ter existido como uma pessoa física, que é uma imagem que se refere a um “comitê diretivo”, conforme nos ensinava Dom Antonio Gramsci − voltou, está entre nós, circula livremente e domina a informação política…
Fixemo-nos agora em como é possível construir a hegemonia.
Os jornalistas e intelectuais que desejam uma posição mais firme dos meios de comunicação sabem, tão bem quanto sei eu, que o peso da influência de quem escreve um artigo ou crônica uma vez por semana é menor, bem menor, do que o peso do número dos leitores do jornal em que escrevem ou que o do número dos ouvintes da rádio ou TV em que fazem comentários. Não estarão, assim espero, confundindo a nuvem com Juno e contabilizando num Ativo sólido e politicamente influente a correspondência que recebem pelos Correios ou pela Internet.
O Lacerda que o Jaguar temia foi um tipo raro no cenário jornalístico e político brasileiro porque escolheu, desde sua primeira colaboração no “Correio da Manhã”, um Inimigo: o Partido Comunista. Em 1945, demoliu o candidato do PCB à Presidência na seção que então se chamava “Tribuna da Imprensa”. Depois, no jornal de mesmo nome, o Inimigo continuou sendo o PCB a que associou o getulismo e todas suas criações: o próprio Getúlio Vargas, João Goulart, Juscelino, Jânio − este último denunciado como candidato a ditador.
Se há lições a aprender com a História, uma delas é a de que não se faz política a não ser pela escolha do Inimigo. Mas não basta escolher o Inimigo: é preciso manter um ataque constante, um bombardeio que se repita com insistência (não apenas semanal) e com a autoridade do veículo de informação no que se chamaria de “guerra de usura”, destinada a vencer batalhas e não embates de patrulhas; é mister fazer que o Inimigo seja sentido como tal por grupos sociais com influência (se social, política ou eleitoral, não importa) e que tenham algo a perder com a vitória do adversário. Desta perspectiva − ainda voltando a Gramsci − Lacerda foi o Benedetto Croce de 1945: um comitê de propaganda, ele sozinho, sensibilizando setores sociais e uma boa parcela das Forças Armadas, especialmente na Aeronáutica.
A experiência me ensinou que amplos setores das chamadas Classes Produtoras tomaram posição contra Goulart e, depois, contra as manobras da esquerda na Constituinte de 1986 porque temiam o assalto “à mão armada legislativa” à Propriedade. Passado o perigo e instituído o regime do “enriqueçam e não pensem”, não tiveram mais com que se preocupar e deixaram à míngua todos aqueles que pretendiam, pela Autoridade de seu conhecimento, contrapor-se às insidiosas manobras contra o sistema vigente. Por outro lado, o controle social dos meios de comunicação, defendido pela esquerda tupiniquim, sem dúvida alguma ajudará a criar clima para que desapareçam todos quantos pensarem de modo diferente do Governo, que não encontrará oposição. Os simples não temem que, ao estabelecer tal controle com a cumplicidade de boa parte dos representantes da sociedade no Congresso, muitos deles eleitos graças às generosas contribuições de quem pôde fazê-las, o País caminhe para um regime em que também eles não poderão ter opiniões contrárias à daqueles que mandam. A classe média, que inspirou tantos movimentos para a construção da democracia, não percebe o perigo a que se expõe. E os meios de comunicação, que alguns pretendem engajar na campanha contra Dilma, não são “comitês de propaganda” porque não crêem ter um Inimigo que os ameace e ameace amplos setores sociais.
Serão poucos os que se lembrarão de que, em 1945, no Brasil, o lema com que o Partido Comunista procurava conquistar consciências nada tinha de sofisticado, mas entrava pelos ouvidos como música. Era um singelo “o mundo marcha para o socialismo!”. Hoje não mais se fala em “socialismo”: apregoa-se um “governo popular” e a “democracia participativa”, ideais contra os quais é muito difícil travar batalha. Haverá “vinheta” capaz de contrapor-se a essas, comovendo e mobilizando forças para impedir que o “governo popular” transforme o Brasil, “democraticamente”, por ato e vontade do Congresso, em uma “democracia popular” ao estilo de quantas vigoraram na Europa Oriental durante o domínio de Stalin e, depois, de Brezhnev?
Mais importante ainda: perdidas, já, as referências da época em que viveram e independentemente de críticas que possam ser feitas às suas opiniões e posturas, haverá, hoje, quem possa transformar-se em uma figura com estatura semelhante à de Lacerda e possa revelar-se como um novo Benedetto Croce?
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