Às vezes, corremos o risco de enfadar os leitores pela insistência com que tentamos nos fazer compreender − o que nos leva a considerações que muitos classificarão como sendo de ordem teórica, ou como sendo redundantes, por ser já de seu conhecimento. É o risco que corro ao cuidar dos Estados-sipaios.
A Realpolitik não deve ser vista apenas como quadro em que se formula a política externa de um Estado – um modo de fazer política considerando o Outro no jogo internacional e privilegiando os interesses nacionais. Uma política responde ao princípio da Realpolitik quando leva em conta os interesses nacionais tendo como referência o quadro geoestratégico global, não apenas regional, e aqueles valores reputados inegociáveis pelos Governos todos que adotam esse padrão de política externa.
Deve-se ver, porém, que uma política que se inspira na Realpolitik atende não apenas aos interesses do Estado, mas também aos interesses do Governo que representa o Estado no cenário internacional. Ao traçar sua política externa, mais propriamente ao pô-la em prática, o Governo sempre leva em conta os interesses do Estado – a razão de Estado -, mas também os interesses políticos daqueles indivíduos que estão no Governo. Uma política externa fundada na Realpolitik, assim, não leva em conta apenas os interesses do Estado na “sociedade” internacional; considera igualmente o jogo político interno.
Para que uma política feita nesses moldes dê os resultados esperados pelos responsáveis pela formulação e condução da política externa é preciso que esses tenham como que um “radar” muito sensível para que possam captar as flutuações da opinião pública nacional e, simultaneamente, as reações do Outro no jogo internacional. Em outras palavras, talvez um tanto quanto cínicas, a Realpolitik deve produzir resultados políticos concretos, materiais, para quem a realiza.
Da perspectiva geoestratégica, não sendo a chamada “globalização” a negação da Realpolitik, mas uma sua decorrência em um processo em que decisões se ajustam e respondem às circunstâncias, não há como dissociá-la dessa política, e a globalização não deve ser vista apenas como a “mundialização do Capital”. Em virtude do desenvolvimento das comunicações e do avanço tecnológico no campo dos foguetes balísticos e da aviação estratégica, que são resultado da busca por projetar poder, as superpotências viram-se levadas a continuar buscando projetar poder globalmente para defender seus interesses e garantir sua segurança. O temor de uma guerra nuclear fez que as “guerras por procuração”, que caracterizaram o período que vai do término da Segunda Guerra Mundial ao fim das guerras de libertação nacional das antigas colônias, cedessem lugar a um estado de prontidão permanente das grandes potências. O declínio do poder do Estado na grande massa territorial que é a Eurásia soviética, hoje russa, em nada alterou o quadro geoestratégico, pois a Rússia continua armada e tem interesses em áreas digamos sensíveis como o Oriente Médio. E, nesta região, não nos esqueçamos, França, Inglaterra e Estados Unidos têm interesses seja econômicos, seja estratégicos e de segurança — afora a presença de um novo ator, que é o Irã, que busca projetar poder na Síria, no Iraque e nos países dirigidos por governantes sunitas, mas de grandes populações xiitas. Para não falar da China e seus interesses conflitantes, muitas vezes, com os da Rússia, da Índia e dos Estados Unidos.
Essa realidade não pode ser esquecida nem ser vista como se apenas alguns elementos dela fossem importantes. É ela que, em termos geoestratégicos, caracteriza globalização e faz necessária a existência dos Estados-sipaios.
O Estado-sipaio não é subordinado a nenhum outro; ele é soberano e seu governo pode, até, opor-se retoricamente às grandes potências. Todavia, com a disposição de uma ex-colônia ele se insere no contexto internacional em que hoje imperam a idéia de Direitos Humanos e aquela outra, a de que os Estados devem estar conectados, isto é, devem conviver na sociedade internacional segundo as normas fixadas pelo Direito Internacional ou, mais corretamente, pelas normas que as potências de maior peso relativo ditam às demais como sendo o Direito. Essa realidade política e geoestratégica internacional permitirá explicar, por exemplo, o Tratado de Não-proliferação Nuclear, assinado pelos Estados Unidos e pela União Soviética em 1968 e que, aceito pela ONU, congelou o poder mundial na feliz expressão do embaixador Araújo Castro.
A postura intelectual dos que dirigem um Estado-sipaio corresponde a uma ideologia entranhada no seu pensamento e se expressa na ação, ainda que sem a perfeita correspondência entre o pensar e o agir. Ela se caracteriza por não refletir um espírito estatal, espírito esse que poderíamos traduzir assim: “supero como Governo minhas circunstâncias e me afirmo como Estado”. Pelo contrário, reflete a expectativa do juízo que deles se fará na Europa ou nos Estados Unidos. Corresponde, por exemplo, a como pôde ser interpretada e incorporada, depois de 1823, a Doutrina Monroe. O caso da Colômbia, enviando tropas para combater na Coréia, é um exemplo da mentalidade sipaia levada ao extremo.
Para compreender o envolvimento do Brasil no Haiti é necessário ter em mente que o canal do Panamá continua sendo estrategicamente importante para a segurança do território norte-americano. Cuba não representa, hoje, de fato, problema estratégico maior algum para os Estados Unidos – e todos, seja lá, seja em Havana ou seja aqui, sabem disso. Pode representar um problema eleitoral interno para os candidatos ao Governo norte-americano, dado o peso da colônia cubana nos estados do Sul. Mais nada. Numa hipótese construída na extremidade lógica, a perda da América Central e das ilhas antilhanas, somente poderá representar ameaça direta ao território norte-americano desde que haja uma potência, como a antiga União Soviética, disposta a arcar com as responsabilidades e conseqüências de ameaçar o território norte-americano a partir de bases na região.
É preciso ter presente que o Haiti ainda tem relativa importância para o Governo norte-americano. Os Estados Unidos são uma potência com interesses (quaisquer que sejam) na área, mas, depois de todas as intervenções no século XX e do malogro da experiência Aristides, não desejavam envolver-se mais. A região era deles, Estados Unidos – e talvez, ou com certeza, melhor dizendo, continua sendo. Mas a relação custo/benefício de uma nova intervenção militar seguida de ocupação, como no passado, é negativa para os reais interesses do Governo norte-americano. O Haiti, hoje, não interessa ao Governo norte-americano, isto é, não comove a opinião pública.
É também preciso ver, contudo, que, como mapa, ele tem importância: é vizinho de São Domingos, que experimenta uma relativa tranqüilidade depois de tantas intervenções. E o Brasil participou da última delas, sem que bem fossem compreendidas as razões que levaram o Presidente Castelo Branco a decidir apoiar a ação do Presidente Johnson.
Este, tal qual descrito, é o Lado Norte do problema. Mas ele tem seu Lado Sul. Ora, quando a vontade do Norte de ir para casa, desde que alguém garanta sua retirada, coincide com a vontade do Sul de ir para o Norte, conquistando uma cadeira permanente no Conselho de Segurança da ONU, juntam-se a fome e a vontade de comer — e a ONU aí está para arranjar a mesa, oferecer o cardápio e a forma de pagar a conta. Se ela não existisse, haveria a OEA, o que dá no mesmo. Melhor a ONU, pois a ressonância internacional é maior e a responsabilidade acrescida se transmuta instantaneamente em prestígio internacional.
É aí que entram os Estados-sipaios
Não pretendo dizer que o Brasil ouviu o apelo ingente dos Estados Unidos e da França e resolveu fazer-lhes das vezes, tirando as castanhas do fogo para que Washington e Paris as saboreassem. Nada disso. Estou querendo dizer apenas uma coisa: por não levar em conta Política de Poder, Geopolítica e Interesse Nacional, principalmente o Governo Lula da Silva, encontrando uma situação interna favorável, fez da necessidade virtude e se meteu num atoleiro do qual a busca de prestígio e reconhecimento internacional nos impede de sair. Se no Haiti nossa presença contribui para poupar aos Estados Unidos uma decisão contrária aos interesses do Governo norte-americano, no Líbano ajudamos, chefiando a “Marinha da ONU”, a evitar novo conflito Israel-Líbano que poderia levar a uma conflagração geral no Oriente Médio. O envio de um Almirante para comandar a força da ONU que vigia as fronteiras marítimas do Líbano – mesmo que ele não tenha uma fragata brasileira para instalar seu posto de comando, ou, se tiver, ela será inferior – foi, igualmente, um ato buscando firmar posição.
Qual a necessidade que se transformou em virtude e abriu o caminho para que o Brasil se tornasse um Estado-sipaio da globalização? Esta é a questão. Mas antes de buscar responder, cabe lembrar que uma das lições da História e dessa arte conhecida como Relações Internacionais é que não há poder sem responsabilidade. Querer ter responsabilidades sem ter poder é fazer o papel de coadjuvante na peça que os que têm poder costumam encenar. Pretender demonstrar poder sem o ter de fato e sem se preocupar com tê-lo, predispondo-se a assumir as responsabilidades decorrentes dessa pretensão será mentir para dentro, fazer política externa olhando apenas para o próprio umbigo.
A menos que se conforme à triste posição de Estado-sipaio da globalização, o Brasil, convenhamos, assumiu no Governo Lula da Silva responsabilidades que excedem de muito seu poder real – econômico, social, político e militar. Não é que seja “interdependente”, pois de tudo o Brasil depende.
Quando me refiro a necessidades, penso naquilo que o Estado deve fazer no campo da política externa para afirmar-se tal no cenário internacional. É uma visão da política externa da perspectiva da Política do Poder. Por sua vez, Política de Poder pressupõe uma visão geopolítica da inserção do país no mundo. E essa perspectiva geopolítica, queira-se ou não, coloca como objetivo primordial da política externa brasileira as relações com a América do Sul. Com o que voltamos, queiramos ou não, à teoria dos círculos concêntricos do Presidente Castelo Branco, a qual privilegiava as relações com os vizinhos.
Para o Governo Lula, a necessidade não era esta. Era projetar poder, ainda que sabendo que o País não tinha, como não tem, capacidade militar para fazê-lo e que o BNDES não poderia sustentar países africanos ou continuar a financiar, indefinidamente, o avanço de empresas (sobretudo empreiteiras) sobre mercados internacionais, na América ou na África. A única maneira de, conforme o pensamento do Governo Lula da Silva, o Brasil afirmar-se grande, como sempre pretendeu, seria obter um lugar permanente no Conselho da Segurança da ONU, nisso seguindo políticas velhas de quase um século (que o diga Arthur Bernardes com a insistência de ocupar um lugar permanente no Conselho da Liga das Nações).
A participação nas forças da ONU no Haiti e no Líbano foi a maneira matreira de dizer estar pronto a assumir responsabilidades no Conselho de Segurança. Matreira, digo, porque a manobra tem dois objetivos: chegar ao Conselho de Segurança e desmobilizar as Forças Armadas internamente. Se as Forças Armadas brasileiras sempre exerceram, quando necessário, funções de defesa civil, que continuem a ser o recurso último de que se lança mão para mascarar o descaso com que os Governos estaduais e municipais tratam a população. Empregadas nesta tarefa humanitária, as Forças Armadas não protestarão porque serão bem vistas pela população.
Haverá quem possa dizer que abuso das teorias conspirativas. Que seja. Mas que elas iluminam o quadro, iluminam.
Deixando de lado a intervenção de 1969 (a defenestração, pelos Ministros militares, do Vice-Presidente da República, Pedro Aleixo), as Forças Armadas sempre intervieram para manter a ordem pública com apoio da população − fossem os fuzileiros navais garantindo o funcionamento dos portos, fosse o Exército dizendo “presente!” para impedir graves perturbações da ordem pública quando as PMs eram ultrapassadas, ou fazendo as vezes delas quando declaravam greve. Nada mais simples, pois, que institucionalizar as funções de defensoras da lei e da ordem, transformando unidades militares em unidades limitadas a garantir a lei e a ordem. A população recebeu bem e nas próprias Forças Armadas houve também quem nada de mais visse nisso, pois elas estavam servindo à população. O ponto de inflexão, de não-retorno, nessa política foi a ocupação do Morro do Alemão e a decisão de que o Exército nele permaneceria.
O Marechal Castelo Branco passará à História como o Presidente que lançou as bases de uma política, depois reforçada pelos Ministros militares durante o impedimento físico de Costa e Silva, destinada a afastar as Forças Armadas dos assuntos de Estado. Os Governos presididos por civis que vieram depois do General Figueiredo nada mais fizeram do que dar continuidade a esta política. No Governo Sarney, quando se elaborava a Constituição, o Ministro do Exército empenhou-se para que a Carta Magna deixasse claro que as Forças Armadas continuavam tendo a função de manter a lei e a ordem. No que foi atendido − e em troca, aqueles que desejam a desmobilização das Forças Armadas desfecharam, sem que se percebesse, o golpe de morte na participação delas nas grandes decisões de Estado, extinguindo o Conselho de Segurança Nacional. A criação do Ministério da Defesa − iniciada no Governo Fernando Henrique Cardoso e concluída no Governo Lula da Silva − foi a última pá de terra lançada sobre as pretensões das Forças Armadas de voltarem a ter papel importante na política de Estado.
A operação de desmobilizar as Forças Armadas foi a frio. Por isso, apenas incomodou alguns setores que foram chamados, manhosamente, de radicais. O remédio ministrado para acalmar os nervos e minorar a dor foi a participação nas Forças de Paz da ONU. Mataram-se, assim dois coelhos com uma só cajadada: 1. as Forças Armadas passaram a ter uma obrigação, a de treinar, no Exterior, para bem executar uma única função: conter a agitação nas favelas – a experiência policial no Haiti não foi um dos motivos que levaram a destacar os que dela participaram para ocupar o Morro do Alemão? —, e 2. o Brasil se qualificava para ser membro permanente do Conselho de Segurança, assumindo desde agora as tarefas de Estado defensor do sistema global, um Estado-sipaio.
Foram, assim, lançadas as bases para a construção do Estado-Partido – projeto político que as Forças Armadas sempre procuraram impedir fosse realizado quando tinham poder político. A prova de que esse projeto está em execução pode ser vista no aumento desmesurável da burocracia civil sem que quase ninguém proteste e quase ninguém se preocupe com mostrar à população o risco que a democracia (?) corre. Ou se preocupe com explicar por que esse risco existe.
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