Palestra proferida na abertura do seminário “11 de setembro de 2001 – o mundo depois de uma década de guerra contra o terror” organizado pelo PETRI da PUC-SP com apoio do IPEA.
Os que cultuam raciocinar com base na grande idéia que se chama de “teoria conspirativa” deleitaram-se com o atentado contra o World Trade Center de 11 de setembro de 2001. Quantas teorias foram construídas, algumas mais, outras menos ou muito pouco verossímeis?
Enquanto as torres ardiam, uma TV brasileira, direto de Nova York, dizia do estranho movimento na Bolsa das ações da “American Airlines”. Outros não hesitaram em atribuir ao Mossad a autoria intelectual do ato, destinado a jogar os Estados Unidos contra os países árabes inimigos de Israel. Era uma forma de guerra por procuração.
A CIA não podia deixar de comparecer. O atentado contra o Pentágono demonstrava, a per b, que tudo fora orquestrado para defender o acesso ao petróleo árabe ou ao território onde construir oleodutos que libertassem a Europa Ocidental – e por extensão os Estados Unidos – da dependência do petróleo russo.
Como assim? Não se distinguiam, no fogo que lavrava no centro decisório da defesa dos Estados Unidos, destroços de um único avião. Se outra prova fosse necessária, havia a evidência do cartão da Previdência Social norte-americana, ou de crédito, de um dos alegados passageiros de um dos aviões que se abatera contra uma das torres. Estranho terrorista esse que deixa sua identidade num banco de jardim para que a Polícia saiba quem é e vá atrás de suas relações nos Estados Unidos, desmantelando a célula mater.
O que interessa, porém, não é saber se a teoria esta ou aquela é verdadeira, isto é, qual delas foi comprovada pelo evoluir dos acontecimentos. O que importa são os fatos que afetam a ordem internacional. É sobre eles que pretendo debruçar-me.
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Fixemos algumas premissas que ajudarão a construir o raciocínio.
A primeira é uma frase de Clausewitz: “Na Guerra, cada um faz a lei do outro”.
A segunda é que a política de defesa dos Estados Unidos (falei defesa e não segurança) tem, desde a Resolução da Não-Transferência de 1811, o território como fundamental. É tendo em vista a necessidade de manter a integridade do território que, desde meados dos anos 1930, o Estabelecimento Militar norte-americano fixou suas linhas de defesa considerando que esse território se estende ao Havaí, no Pacífico, por serem os Estados Unidos uma república continental.
Até o 11 de setembro de 2001, os atentados perpetrados pela Al Qaeda contra embaixadas na África e o destróier no Iêmen não foram considerados como um ataque a linha de defesa alguma, pela simples e boa razão de que os prédios e o navio de guerra, embora propriedades dos Estados Unidos e, tecnicamente, para efeitos diplomáticos, seu território, não eram de fato território nacional nem, o que é importante, representavam ameaças à república continental. Esses atentados foram vistos como atos terroristas e tratados como tais.
O terrorismo era visto, então, como fato político, sim, mas que se enfrentava da perspectiva policial-militar – o bombardeio de Trípoli por foguetes pode ser tomado como a prova do que afirmo –, mas não um fato militar em sentido estrito, pois não afetava o território nem ameaçava a defesa interna. Seus atores eram vistos como grupos políticos, ou um grupo político, perigoso sem dúvida, mas não um Inimigo – na medida em que um criminoso é um perigo para a sociedade, mas não pode ser considerado um Inimigo no sentido de Clausewitz ou mesmo de Schmitt.
O 11 de setembro mudou a perspectiva de análise, não tanto pelo efeito estrondoso, mas porque – a nos atermos à versão oficial – foi um ataque que foi visto como vindo de fora, ainda que executado por pessoas que viviam nos Estados Unidos.
Teorias conspirativas à parte, o primeiro atentado foi visto como ato terrorista, portanto objeto de investigação policial-militar, entrando para a mesma categoria do atentado anterior em Oklahoma. O de 11 de setembro, pelo contrário, foi visto de Washington como um ataque ao território nacional. É necessário ter em vista este pormenor, pois, se o desprezarmos, não entenderemos como o ataque anterior às torres não teve a repercussão daquele que, desferido contra o World Trade Center, eliminou mais de 3000 pessoas há 10 anos.
A ação do Presidente George W. Bush, declarando guerra ao terror, foi criticada por muitos que partiram do pressuposto, fixado desde a Paz de Vestefália, de que guerra é assunto de Estados. A Al Qaeda não sendo um Estado, declarar-lhe guerra, da mesma maneira que ao terrorismo, soou sem sentido, e foi a partir desse juízo político que foram examinadas todas as ações militares do Governo norte-americano.
Tendo Clausewitz em mente, podemos ir mais a fundo na análise do que se seguiu e do que pode estar por vir.
Se, de fato, na Guerra, cada um faz a lei do outro, é preciso ver, nas ações concretas dos dois contendores – os EUA e a Al Qaeda –, que tipo de guerra travaram e quais os objetivos políticos que perseguiam.
Para a Al Qaeda, parece claro que a guerra que ela move (ou será que já podemos dizer movia?) contra os Estados Unidos era uma guerra absoluta, que tem objetivo político correspondente, qual seja expulsar os Estados Unidos do Oriente Médio. Numa interpretação mais lata, refundar o Califado e lutar contra os infiéis – vale dizer os cristãos – em todo o mundo, luta que a História ocidental caracterizou, em certo momento, como travada sob a bandeira “Crê ou morre”. Objetivo político absoluto igual a guerra absoluta.
Para os Estados Unidos, o objetivo político da guerra contra o terror passou a ser absoluto. Tanto é assim que o Ato Patriótico, votado sob a pressão da dor e do temor permanente da ameaça ao território, alterou as instituições políticas internas em extensão social e profundidade política talvez observada na Primeira Guerra Mundial, mas não na Segunda – exceto, talvez, no que se refere aos japoneses e cidadãos norte-americanos de origem japonesa na Califórnia e toda a costa Oeste.
Mas é preciso ver que, possivelmente, a Administração Bush tenha sido influenciada por quantos proclamaram “We are all Americans,”, como a dizer que as vítimas do atentado de 11 de setembro e dos demais atentados que se pudessem a este seguir não moravam todas nas fronteiras dos Estados Unidos, mas eram “irmãos”.
O objetivo político da guerra contra o terror declarada por Bush era absoluto e as ações militares com que se pretendia e se pretendeu alcançá-lo eram reais, contra um inimigo que era real, embora não houvesse Estado ou Civilização a destruir. Portanto, objetivo político absoluto e guerra real, esta imposta pela realidade.
A guerra ao Governo do Afeganistão que se seguiu ao atentado de 11 de setembro poderia ser vista como não obedecendo a esse padrão e apenas se conformando à lógica intrínseca da guerra na medida em que havia um objetivo claro e definido, que era destruir as bases do Taleban e capturar Bin Laden e seus auxiliares diretos.
O Presidente Obama caracterizou bem a situação que se criou: “Lembramos que, nas semanas seguintes ao 11 de setembro, agimos como uma comunidade internacional. Como parte de uma ampla coalizão, tiramos a Al Qaeda de seus campos de treinamento no Afeganistão, desestabilizamos o Taleban e demos ao povo afegão uma chance de viver livre do terror. Entretanto, os anos que se seguiram foram difíceis e o espírito de parceria global que sentimos depois do 11 de setembro arrefeceu” (Folha de S. Paulo, 9/11/2011, pág. 3).
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Cabe, então, a pergunta: por que arrefeceu o espírito de parceria global e os anos se tornaram difíceis?
A resposta pode ser encontrada na guerra contra o Iraque – não aquela feita sob a égide da ONU para libertar o Kuwait, mas a segunda, decretada por Bush à revelia das Nações Unidas.
Na guerra contra Sadam Hussein – pois foi disso que se tratou – pode-se observar a grande discrepância entre o objetivo e o tipo ou a natureza da guerra. E a realidade da guerra não perdoa discrepância entre o tipo de guerra e o seu objetivo político; não perdoa um erro desta natureza, que se reflete na esfera da política externa como um todo.
A segunda guerra contra o Iraque tornou patente a desorientação de setores decisórios no Governo Bush – especialmente a Casa Branca e o Departamento de Estado – na avaliação do que estava em jogo. Iniciada a pretexto de que o Iraque possuía armas de destruição em massa e que poderia entregar algumas delas a grupos terroristas, mudou de objetivo assim que se comprovou que a informação da CIA sobre a existência destas armas era falsa. Da necessidade de impedir que a Al Qaeda ou outro grupo terrorista entrasse na posse delas, passou-se a fazer a guerra e a orientar a ocupação com o objetivo político de reconstruir a democracia no Iraque.
Esse novo objetivo – a rigor absoluto, dadas as condições histórico-sociais em que se encontrava o Iraque – poderia encontrar amparo no que se chamaria de interesses nacionais permanentes definidos por administrações anteriores. Poderia, sim, exceto num ponto: o Governo Bush levou em consideração a proposição de que é interesse nacional permanente dos Estados Unidos, ao lado da paz, da segurança internacional e a liberdade de comércio, a vigência de um sistema democrático de governo, seja lá o que isso possa significar, em todos os Estados na ordem internacional. Levou a vigência da democracia na ordem internacional à sua extremidade lógica − e o que era interesse passou a ser obrigação a cumprir. E obrigação de punir.
A guerra/ocupação no Iraque e, agora, a guerra no Afeganistão obedeceram a esse objetivo de construir a democracia em moldes ocidentais independentemente de que a história e a organização social desses países apontassem as dificuldades de estabelecer a nova ordem “nacional” da qual se seguiria a manutenção da paz e da democracia na ordem internacional. A transformação do “interesse” em “obrigação de” transfigurou – esta a expressão – o papel mundial dos Estados Unidos na comunidade internacional. E a essa mudança radical correspondeu uma mudança, sutil talvez, no relacionamento da comunidade internacional com os Estados Unidos, levando ao arrefecimento do “espírito de parceria global”.
Tal transfiguração nada tem a ver com a bela peça de Richard Strauss, “Morte e transfiguração”.
Embora possamos dizer que a morte da tradicional política externa norte-americana se deu no momento em que, abalado pelo ataque ao World Trade Center, e sob a pressão dos acontecimentos e de muitos daqueles que o cercavam, o Presidente George W. Bush declarou guerra ao terrorismo, e a transfiguração pôde ser registrada no instante em que o mesmo Presidente George W. Bush anunciou que havia ordenado o ataque ao Iraque, declarando que, incapaz a ONU de agir, os Estados Unidos, na sua soberania, iriam acabar com o arsenal de armas de destruição em massa que sua Administração dizia existirem no Iraque.
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Foram poucos os que viram nesta frase a morte da sociedade internacional. Um bom teórico diria que a causa mortis fora estabelecer a supremacia do rebus sic stantibus como princípio, sobre aquele sólido alicerce da ordem internacional: pacta sunt servanda.
Com toda certeza, nem Bush nem seus auxiliares diretos tinham em mente a defesa que o historiador alemão Treitschke fez da invasão da Bélgica pela Alemanha em agosto de 1914.
Que razões invocava este para sustentar a legalidade se não a legitimidade da ação que precipitou a entrada da Grã-Bretanha na guerra? Ele ia direto ao ponto – e me perdoem a extensão da citação: “Um Estado deve ter um sentimento de honra desenvolvido ao mais alto ponto se não quer ser infiel a sua própria essência. O Estado não pode ser uma violeta que só floresce quando escondida; sua potência deve erguer-se altivamente e em plena luz; ele não deve deixar que se a discuta ainda que seja sob forma simbólica. A bandeira foi ofendida? Seu dever é reclamar satisfação e, se não a obtém, declarar guerra, por minúscula que seja a razão. As únicas limitações possíveis à soberania do Estado são aquelas que ele próprio consente quando se compromete por contrato com outros Estados. Então, ao menos, poder-se-á pensar que ele se conduz pelos compromissos que assumiu. (…) A validade dos contratos que [o Estado] subscreveu depende unicamente da maneira pela qual aprecia, a cada momento, as circunstâncias e seus interesses. Os contratos internacionais só são consentidos com esta cláusula: rebus sic stantibus. Um Estado não pode comprometer sua vontade a outro Estado no futuro. O Estado não tem Juiz acima de si e, por conseqüência, todos seus contratos são concluídos com esta reserva tácita. É isto que confirma esta verdade que será reconhecida por quanto tempo existir um direito internacional: desde que se desencadeou uma guerra, os contratos entre os Estados beligerantes deixam de existir. Ora, todo Estado, enquanto é soberano, tem todo o direito de declarar a guerra quando lhe aprouver. Por conseqüência, todo Estado está em situação de denunciar, quando quiser, os contratos que concluiu…”
A partir do 11 de setembro de 2001, mais corretamente a partir da declaração de George W. Bush ordenando o ataque ao Iraque, a comunidade internacional sabe que assenta sobre bases muito frágeis. Não que os chamados “grandes”, os que têm assento permanente no Conselho de Segurança, não tenham antes violado tratados ou a soberania de terceiros países. Sempre o fizeram sem que houvesse protestos de maior repercussão: as intervenções da França em antigas colônias na África e, sobretudo, a invasão da Geórgia pela Rússia. Por mais que pareça um raciocínio feito pensando na Realpolitik, a reação da comunidade internacional a esses atos contrários à boa ordem internacional foi essencialmente retórica. Afinal, a África é a África e sempre será ela mesma (a menos que a China controle seus recursos naturais), e a Geórgia – onde fica? Além do mais, nem a França nem a Rússia desrespeitaram decisões do Conselho de Segurança nem invocaram, para justificar-se, a sua soberania.
No caso do Iraque, a tomada de consciência de que um elemento novo se introduzira na ordem internacional foi imediata – e, por sê-lo, provocou a reação do Secretário de Defesa os Estados Unidos, que dividiu o mundo em dois: o “velho” (França, Alemanha e Rússia) e o “novo” (a Grã-Bretanha e todos os outros países, mais de duas dezenas, que aceitaram o repto norte-americano).
Seria mais do que natural que a solidariedade internacional arrefecesse: afinal, a soberania dos Estados Unidos, interpretada por seus dirigentes, pode justificar outros atos da mesma natureza. A partir da inovação in petto do princípio rebus sic stantibus, o mundo não é mais o mesmo.
Não estamos diante da ordem internacional que ambicionava o Presidente Bush (pai), mas sim de uma nova ordem em que a superpotência age sem dar atenção ao que se convencionou chamar de primazia do Direito Internacional.
Este é o quadro internacional, hoje. A Guerra, deusa, como Palas Atena, é quem decide.
E não imaginemos que a culpa pelo desrespeito ao Direito Internacional consagrado seja apenas dos Estados Unidos. A crise vem desde a morte de Dag Hammarskjöld e da guerra civil que acompanhou a libertação do Congo (belga). Ele sucedera a Trygve Lie na Secretaria Geral da ONU e foi, segundo alguns, o último secretário-geral que, de fato, quis fazer valer sua condição de reitor da nova ordem internacional estabelecida em 1945, quando se criou a ONU. Hammarskjöld e Lie foram os primeiros e últimos a desejar que as Nações Unidas assumissem de fato a condição de instância primeira e última dos conflitos que pudessem afetar a segurança internacional, tendo, para tanto, poderes reais e não meramente simbólicos.
Depois deles, os Estados Unidos e a União Soviética, após 1991, China e França também deram sua contribuição para que a ONU perdesse a condição de reitora da ordem mundial.
Da morte de Hammarskjöld para cá, a ONU, que recusa encarnar a Palas Atena contida por Péricles, defrontou-se com um deus menor, que o Olimpo jamais abrigara: Direitos Humanos, cuja objetivo de batalha era impedir crimes contra a humanidade e genocídio.
Sem instrumentos próprios capazes de impor Lei e Ordem, a ONU contentou-se em criar Tribunais Especiais para julgar os responsáveis (como que procurando reeditar a condenação de Guilherme II pelo Tratado de Versalhes) por crimes hediondos que ofendiam a civilização.
Ruanda pôde acontecer – julgaremos depois – porque nenhuma das potências atômicas com assento o Conselho de Segurança tinha interesses geopolíticos ou vitais na questão. A Iugoslávia, no entanto, foi um caso diferente – não na apoteose final, com o Tribunal Especial de Haia, mas no desenrolar do grande drama. Incapaz de tomar decisões que envolvessem uma ação militar para deter o genocídio, a ONU foi substituída pela OTAN, cuja ação foi, após encerrada a campanha, ratificada pelo Conselho de Segurança, assinalando, assim, sua condição de instituição em estado terminal. O representante brasileiro, reconheça-se, foi um dos poucos membros não-permanentes, se não o único, a votar contra, alegando, com razão, que a OTAN não é uma organização regional como prevê a Carta da ONU.
Depois da Iugoslávia, agora a Líbia. Apesar das restrições da Rússia, da Alemanha (estranho tandem a ser observado), do Brasil e da China, a organização militar decidiu ler com seus olhos a autorização que lhe foi dada para defender os civis, com a criação da zona de exclusão aérea.
O Brasil, sem forças capazes de intervir no processo, pretende, agora, que, além de autorizar ações, ao Conselho de Segurança cabe estabelecer como elas deverão ser conduzidas. Valha a intenção…
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Haveria bem mais a dizer.
O importante, porém, é assinalar a grave conseqüência do atentado de 11 de setembro de 2001, idealizado por quem quer que tenha sido, que subverteu a ordem internacional. É sobre este quadro, muito parecido com o que se poderia pintar a partir de Hobbes, que devemos concentrar nossa atenção.
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