O MMC
Podemos dizer que, a partir da proclamação da eleição de Juscelino Kubitschek e João Goulart para a Presidência e a Vice-Presidência da República, as Fúrias dominaram o processo político.
Tão apenas conhecido o resultado das urnas, a UDN, Lacerda e jornais contrários à candidatura vitoriosa lançaram-se em campanha para anulá-lo, usando argumento juridicamente pouco válido, dada a legislação em vigor: Juscelino não poderia tomar posse, diziam, pois não obtivera maioria absoluta nas eleições. Aos poucos, sendo impossível anular o pleito, mudou-se a tática: não é possível dar posse a corruptos e comunistas. Essa foi, digamos, a palavra de ordem com que se procurou mobilizar a opinião pública e, também, os militares.
Lacerda, com a Tribuna da Imprensa, não media a força dos adversários nem calculava contra quantos lutava. Dia após dia, seus editoriais sacudiam a passividade dos que, tendo votado em Juarez, permaneciam calados. Aos poucos, formaram com Lacerda ou com os que, mesmo não sendo lacerdistas, pretendiam que Juscelino não tomasse posse, entrevendo a possibilidade de o getulismo (com suas mazelas apontadas na República do Galeão), a ameaça da República Sindicalista de Goulart e o comunismo poderem destruir a democracia pela qual haviam lutado.
O Presidente Café Filho a tudo assistia, impassível ou impossibilitado de agir. Seu Ministério militar tivera uma composição curiosa: para os Ministérios da Marinha e da Aeronáutica, fora buscar o Almirante Amorim do Valle e o Brigadeiro Eduardo Gomes, que haviam assumido, em suas Forças, a liderança do protesto contra Getúlio. Para o Ministério da Guerra, não encontrava no Exército uma figura que se distinguisse das demais e pudesse conduzir, sem problemas de ordem pessoal, a dura caminhada até as eleições de 1955. Foi buscar no Almanaque do Exército um nome: Henrique Duffles Batista de Teixeira Lott, General que se distinguira pela correção e pelo empenho em que não apenas seus subordinados (de qualquer patente), mas também ele próprio não se afastassem do rigidamente disposto no Regulamento Disciplinar do Exército. Era, por formação, um defensor da Constituição e da Lei e da Ordem.
À medida que a campanha contra a posse de Juscelino ganhava pressão, os que a faziam começaram a voltar-se para as Forças Amadas e a cada pronunciamento de General em Comando que defendesse a pureza do regime democrático − como foi o caso do discurso do General Comandante do II Exército − acreditavam poder somar adesões de peso à sua tese. Foi nesse clima, que o General Canrobert Pereira da Costa fez conferência, aproveitada depois, que detonou o processo de Novembro de 1955. Que dissera ele? Nada que fosse claramente contra a posse de Juscelino. Nas entrelinhas, no entanto, deixava subentendido que não considerava democrático que um Presidente da República fosse eleito por maioria simples de votos.
Pouco depois de seu pronunciamento, veio a falecer. O Ministro da Guerra compareceu ao enterro. Sob chuva, teve oportunidade de ouvir o Coronel Bizarria Mamede fazer o elogio do morto. Foi o famoso “discurso do Coronel Mamede” como ficou conhecido. Em declarações posteriores, o General Lott disse que o ouvira com espanto, na medida em que Mamede violara o RDE. Do cemitério foi para o Ministério e determinou a prisão do Coronel. O trem da crise político-militar iniciou sua descida sem maquinista que o pudesse controlar.
Que dissera Mamede em seu discurso? Pautou-se pelo que dissera o General Canrobert, carregando, porém, nas tintas e deixando claro que Juscelino e Goulart não poderiam ser empossados.
Contra a decisão de Lott, Mamede invocou a Constituição e os Regulamentos: o Ministro da Guerra não tinha jurisdição sobre ele, pois era aluno da Escola Superior de Guerra e ela estava subordinada ao Ministro-Chefe do Estado-Maior das Forças Amadas (EMFA). O Ministro do EMFA, por esta ou aquela razão, por estar de acordo com o que Mamede dissera ou porque não admitia a intromissão de Lott num assunto que era de sua competência, não puniu Mamede como o Ministro da Guerra desejava. Era uma disputa de prestígio de Ministros e uma questão jurídica, a um só tempo. Fosse o que fosse, era uma questão política em torno da qual os grupos políticos se engalfinharam no Congresso e na Imprensa. E Lacerda, em artigo de tom provocador, escrevia que Juscelino e Jango não podiam e não tomariam posse.
Nesse ínterim, o Presidente Café Filho é acometido de crise cardíaca relativamente séria e passa o Governo, como determinava a Constituição, ao Deputado Carlos Luz, Presidente da Câmara. O problema que o esperava não era de pequeno porte. Para resolvê-lo, o Presidente em exercício encontrou a saída institucional: solicitou parecer do Procurador-Geral da República, que concluiu pela incompetência do General Teixeira Lott, Ministro da Guerra, para prender um Oficial subordinado ao EMFA. Seu parecer foi conhecido na tarde do dia 10 de novembro.
Ciente, o General Lott foi ao Catete para entrevistar-se com Carlos Luz. E o Destino fez das suas. Atarefado com os problemas menores da Presidência ou desejoso de mostrar ao Ministro da Guerra que o Presidente era ele, o fato é que Carlos Luz fez o General Lott esperar. Ao fim de duas horas sem ser atendido, Lott deixou o Palácio, dirigiu-se ao Ministério e pediu demissão. Imediatamente, Carlos Luz nomeou o General Fiúza de Castro como Ministro da Guerra. A posse do novo Ministro foi marcada para o dia seguinte. Os adversários de Juscelino e Goulart exultaram, certos de que o General Fiúza de Castro partilhava de suas opiniões políticas. A noite caiu, tudo parecia bem resolvido. Na madrugada, tanques ocuparam as ruas do Rio de Janeiro e cercaram o Congresso. Forças do Exército, em ação coordenada, ocuparam portos e cercaram as bases da FAB em todo o País.
O Congresso reuniu-se pela manhã – a intenção era debater um projeto de resolução, declarando vago o cargo de Presidente da República em virtude de o Presidente (em exercício) Carlos Luz estar conspirando contra a Constituição para impedir a posse de Juscelino e Goulart, legitimamente eleitos – e foi, então, possível assistir a um debate que se imaginaria ter sido travado na Câmara dos Comuns, como se a realidade não fosse a que se via nas ruas. Durante cerca de quatro horas, os líderes e expoentes da UDN, do PSD e do PTB discutiram um problema constitucional: pode o Congresso Nacional, em sistema presidencialista, declarar vago o cargo de Presidente da República sem que se tenham cumprido as formalidades previstas em lei?
Não se falou da movimentação militar.
Para a UDN, o importante era resguardar na sua pureza a Constituição presidencialista. Havia leis que regulavam o processo de impeachment e era para elas que o Congresso deveria atentar. O Congresso só poderia declarar vago o cargo de Presidente da República e, por conseguinte, afastar seu ocupante num sistema parlamentarista. Para o PSD e o PTB, a soberania popular se impunha e o Congresso, como seu depositário e representante, a tanto poderia proceder. Essa última tese venceu. O Deputado Carlos Luz foi afastado da Presidência da República e, em seu lugar, assumiu o Senador Nereu Ramos, Presidente do Senado. Cumprira-se a Constituição.
Enquanto se discutia britanicamente como ficaria o País, o golpe (pois disso se tratou) prosseguia nas ruas do Rio. Carlos Luz, alguns Ministros, Lacerda e outros políticos refugiaram-se no cruzador Tamandaré que zarpou para Santos, onde o Governo deposto esperava encontrar apoio, certo de que o Governador Jânio Quadros não formaria com os golpistas. O Brigadeiro Eduardo conseguiu voar para São Paulo, onde esperava encontrar apoio militar.
O “episódio Tamandaré” foi-me relatado por seu então Comandante, o Capitão de Mar-e-Guerra Silvio Heck, que, no Governo Kubitschek, passou à reserva como Vice-Almirante, vindo a ser figura importante em 1961 e 1964.
Tão logo tomou conhecimento da movimentação da tropa, Heck deixou sua residência e dirigiu-se para o cais. O Barroso, irmão gêmeo do Tamandaré, estava em reparos. O próprio Tamandaré, que ele comandava, só navegaria a meia-máquina. Ainda assim, Heck tomou a iniciativa de mandar chamar o Presidente e quem fosse possível. Todos embarcados, o cruzador fez-se ao mar. Antes de deixar a baía da Guanabara, foi alvo de tiros de canhão de uma das fortalezas, os quais, felizmente, não o atingiram. Sob bombardeio, Heck dirigiu-se ao Almirante Penna Botto, Comandante-em-Chefe da Esquadra, que embarcara com Carlos Luz. Penna Botto, impassível, assestara seu binóculo para terra e observava os tiros. Heck comunicou-lhe que os canhões do Tamandaré estavam “prontos” e pediu autorização para responder ao fogo. Impassível, Penna Botto negou a ordem e apenas disse: “Maus artilheiros”. Manobrando por trás de um cargueiro, o Tamandaré alcançou mar largo e fez-se rumo a Santos, onde a tropa de Lott já tomara o porto. No dia seguinte, o cruzador regressava ao Rio. Anos depois, um Oficial de Marinha, rememorando os fatos e lamentando a trajetória política de Penna Botto, que passara a liderar movimento anticomunista, lembrou-se de que, ao voltarem ao Rio, o Almirante fora levado em escaler até o cais, sendo esse escaler remado por Oficiais do Tamandaré − “homenagem que nem Nelson chegou a receber”.
Tendo o Senado também aprovado o afastamento de Carlos Luz, as duas Casas do Congresso votaram o estado de sítio, a censura à Imprensa e outras medidas repressivas para garantir a ordem. Lacerda embarcou para o Exterior, temendo represálias. O ato não terminara, porém: Café Filho ainda era o Presidente constitucional, embora recolhido a hospital.
No dia 20 de novembro, Café Filho fez chegar a Nereu Ramos sua decisão de assumir o Governo no dia seguinte. Na manhã de 21, o hospital em que estava amanheceu cercado e as cenas do dia 11 se repetiram: o Congresso discutiu e acabou votando a vacância da Presidência da República.
A oposição definiu o movimento como “a novembrada”, dois golpes de Estado em dez dias. A reação ao movimento de Novembro ficou na vontade de jovens Oficiais. Capitães alunos da Escola de Aperfeiçoamento de Oficiais (ESAO) foram em busca do General Juarez Távora, instando-o a assumir o comando da resistência. Juarez recusou, alegando impedimento moral, pois fora derrotado nas eleições. Pilotos da FAB juntaram-se ao Brigadeiro Eduardo em São Paulo, pedindo autorização para, pelo menos, jogar sacos de farinha na tropa do Exército que vinha do Vale do Paraíba para São Paulo, convencidos que estavam de que ela debandaria. De um deles, ouvi meses depois a resposta de Eduardo: “Meu filho, você levanta vôo, mas vai pousar onde?” E negou a ordem. Nada mais.
O movimento de 1955 foi imediatamente qualificado pelos que apoiavam Lott − que subscreveu manifesto nesse sentido − como “movimento de retorno aos quadros constitucionais vigentes”. Até hoje, no Google, é definido como o único golpe militar em favor da legalidade, apesar de que, em virtude dele, um Presidente legítimo, Carlos Luz, pôde ser defenestrado.
Lott passou a ser, no Governo Nereu Ramos e, depois, no de Juscelino, o Condestável da República. Sua posição dependia, no entanto, da lealdade do Comandante do I Exército, General Odílio Denys, que deveria ir para a Reserva ainda durante o mandato de Juscelino ao completar 64 anos. O Governo não se preocupou. O Congresso votou lei esticando para 66 anos a idade limite de permanência na Ativa no posto de General-de-Exército ou equivalente.
Anos depois, houve quem cuidasse de estudar o 11 de Novembro e ver quem fora o responsável pela pronta movimentação da tropa. Duas pessoas assumiram a responsabilidade: os Generais Lott e Denys, cada um reclamando para si o terem planejado a reação na hipótese de a posse de Juscelino, constitucionalmente eleito, ser impedida. Para que se possa tentar fazer uma idéia correta do que aconteceu, gostaria de apresentar uma terceira versão, a do General José Alberto Bitencourt. Antes, porém, é necessário lembrar que o então Coronel José Alberto mereceu especial atenção de Lacerda quando voltou do exílio voluntário.
Na seqüência do 11 e 21 de Novembro, José Alberto foi nomeado Chefe do Departamento de Correios e Telégrafos. A partir daí, Lacerda e muitos outros montaram uma teoria conspirativa para explicar o 11 de novembro. Em poucas palavras, é a seguinte:
A nomeação do Coronel José Alberto Bitencourt para a chefia do Departamento de Correios e Telégrafos era a prova de que o Movimento Militar Constitucionalista, do qual era um dos líderes, seria comunista. Por quê? Era só observar a história da Revolução Russa e verificar que uma das primeiras providências de Lenin e Trotsky foi ocupar o sistema de comunicações. Havia outra evidência de que os comunistas do MMC cercam o General Lott, Ministro da Guerra, totalmente alheio a essas coisas: o Coronel José Alberto deixou a Diretoria do DCT para comandar um dos mais importantes regimentos do Exército em São Paulo, no Vale do Paraíba. Era o cerco do Governador Jânio Quadros, único que poderia opor-se ao plano de conquista do poder pelos comunistas.
O fato de que o Coronel José Alberto Bitencourt tenha pedido passagem para a Reserva antes de ser nomeado para o Comando do Regimento em questão não foi noticiado e foi para sempre esquecido.
Vamos ao relato de José Alberto.
Em agosto de 1954, Coronéis sentiram-se totalmente marginalizados das decisões, embora tivessem consciência de que, em caso de conflito amado, seriam eles, e não os Generais, que correriam os maiores riscos. Fazia-se mister, assim, organizar-se para que os Generais não tivessem a única voz num processo político tumultuado que exigisse a intervenção Exército. José Alberto, o irmão José Alexínio e outros, organizaram, então, o Movimento Militar Constitucionalista. No MMC havia comunistas, sem dúvida. Um deles era o Coronel Werneck Sodré, deixado com seus livros enquanto os irmãos Bitencourt cuidavam da organização. José Alberto e o irmão estavam lotados em serviço sob o Comando do General Zenóbio da Costa, e tinham muita liberdade de ação, aproveitando-se, inclusive, das viagens a serviço para difundir suas idéias. O objetivo maior do MMC era garantir, a qualquer custo, “a posse do candidato honesto − o General Juarez Távora; do candidato supostamente desonesto − Juscelino, ou do candidato desonesto, Ademar de Barros”, qualquer que fosse o eleito. O MMC editava um boletim − “o azulzinho”. Seu último número circulou em junho de 1955 e transmitia a palavra de ordem: “O movimento será iniciado se e quando o General Lott for substituído no Ministério da Guerra por um dos seguintes cinco Generais…”. Como disse José Alberto, “Tivemos sorte. O primeiro da lista era Fiúza de Castro”.
O mais interessante no relato é o que segue. Na noite de 10 ou na madrugada de 11 (não me recordo com precisão da data referida por José Alberto), ele e José Alexínio procuraram o General Lott e lhe ofereceram a chefia do movimento. Lott recusou, alegando que, tendo-se demitido, não poderia moralmente assumir a chefia de um movimento para derrubar Carlos Luz. Os dois foram, então, ao General Denys, que igualmente se recusou. Diante da recusa dos dois Generais, os irmãos Bitencourt comunicaram a Denys que iriam convidar o General Zenóbio, desafeto pessoal de Denys. Ao que o Comandante do I Exército telefonou a Lott, narrando a disposição dos dois. Foi então que Lott assumiu o comando.
Na diretoria do DCT, José Alberto defrontou-se com a realidade: desorganização, material obsoleto, atrasos e perdas constantes − uma situação que só seria resolvida com um enorme aumento das tarifas defasadas. Mas não era o DCT o cargo que desejava. O importante, para ele, era construir um sistema que permitisse a um Coronel entrar no gabinete do Ministro sem pedir audiência e dizer-lhe as coisas tais como eram e tais como deveriam ser. Para montar esse sistema, era necessário ter o Comando de uma grande unidade. Ela era, no dizer de José Alberto, a Brigada Pára-quedista. Assim pensou e assim quis realizar. Foi ter ao Gabinete do Ministro e comunicou a Lott sua vontade de comandar a Brigada. Ao que Lott lhe respondeu que já o havia designado para comandar o Regimento no Vale do Paraíba. José Alberto bateu continência e, conforme me disse, desceu ao 8º andar e pediu sua transferência para a reserva.
Quer o desabafo − pois foi assim − de José Alberto Bitencourt corresponda ou não à verdade dos fatos ocorridos a 11 de novembro de 1955, há nele elementos importantes para a compreensão da posição dos militares diante das crises políticas e de porque intervieram. Tentaremos acompanhar a evolução dos fatos no próximo artigo.
– segue –
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