A estrutura militar foi abalada em 1963 – e com tal força que se acreditou, em muitos círculos contrários a Goulart ou não, que a fenda era grande o suficiente para que se pudesse duvidar da possibilidade de reconstituição do edifício inteiro. A bem da verdade, o Governo Goulart foi tomado de surpresa, embora o clima − dir-se-ia de desgoverno, pelo qual o Presidente era tido como responsável − tivesse contribuído para desencadear o que ficou conhecido como a Revolta dos Sargentos. Esse desgoverno − sentido por parcelas cada vez maiores da população, dos empresários e proprietários rurais à classe média − sem dúvida alguma levou a que Cabos e Sargentos decidissem contrariar a Constituição e apresentar-se como candidatos à deputação federal, certos de que o regime legal era frágil o suficiente para que pudesse ser testado afrontando-se não só a hierarquia militar como a Lei Maior.
No dia 12 de Maio, Sargentos da Marinha e da Aeronáutica reuniram-se no Rio e, no calor dos debates e dos discursos, houve quem proclamasse que os graduados deveriam “lançar mão de seus instrumentos de trabalho… para exigir as reformas de base do governo federal”. No dia 12 de Setembro, cerca de 600 homens da Aeronáutica e da Marinha ocuparam, em Brasília, o edifício da Rádio Nacional e os prédios dos Ministérios da Marinha e da Aeronáutica.
A Constituição proibia os Sargentos das Forças Armadas de candidatarem-se, embora houvesse quem interpretasse diferentemente o texto constitucional. Sargentos foram lançados candidatos, registrados e eleitos. O Supremo Tribunal Federal dirimiu as dúvidas que haviam sido levantadas durante o processo de registro e concluiu pela inelegibilidade dos Sargentos eleitos. A essa decisão seguiu-se a revolta. A rebelião foi debelada. Houve mortos e feridos. Goulart encontrava-se fora de Brasília, havendo quem afirmasse que fora avisado do movimento, que seria apenas de pressão sobre o Supremo, o Congresso e as Forças Armadas…
Nas Forças Armadas, talvez pela lembrança do que ocorrera em 1935, o choque foi maior do que a revolta em si. Nos quartéis, todos os dias, as armas rotineiramente distribuídas passaram a ser recolhidas e conferidas uma a uma antes de serem guardadas sob vigilância de um Oficial. O receio de que o motim em Brasília tivesse ramificações levou Oficiais a dormir com suas pistolas sob o travesseiro. Muitos dos que pensavam que seria possível a derrubada de Goulart passaram a rever seus cálculos, já que a adesão dos Sargentos era tida como improvável, quando não fossem eles contrários ao movimento antigovernista.
No dia 13 de Setembro, o General Castelo Branco foi transferido do Comando do IV Exército e nomeado Chefe do Estado Maior do Exército.
No dia 4 de Outubro, Goulart encaminhava ao Congresso mensagem solicitando a decretação do estado de sítio. O Governador Arraes envia emissário a Lacerda com a seguinte mensagem: “O estado de sítio começa na Guanabara e acaba em Pernambuco”. No dia seguinte, malogrou tentativa de prender Lacerda. O Chefe do DOPS carioca, Cecil Borer, posto a par da situação, alertou-o: “A situação é grave, o senhor está sendo procurado pela cidade, por tropa do Exército encarregado de prendê-lo”.
A 7 de Outubro, vendo a relutância do Congresso em aprovar o Estado de Sitio nos termos em que solicitara, Goulart retira a mensagem. E, em 20 de Novembro, em entrevista ao Jornal do Brasil, queixa-se da morosidade em ser votada a reforma agrária e declara: “Perdi a paciência com o Congresso”.
No dia 30 de Dezembro, tropa do Exército impede Lacerda de entrar no auditório da Faculdade Nacional de Filosofia, onde seria homenageado pelos formandos no Curso de Jornalismo.
O General Mourão Filho havia sido transferido do Rio Grande do Sul para o Comando da 2ª Região Militar em São Paulo. De passagem pelo Rio, fez questão de encontrar-se com o Almirante Sílvio Heck e discutir com ele a situação. Dessa conversa nasceu estreita solidariedade entre os dois. Mourão então já estava decidido a conquistar apoio não mais apenas para defender as instituições de um golpe de Goulart, mas para afastá-lo do poder. O encontro permitiu, também, que se vislumbrasse um traço da personalidade daquele que tomaria a iniciativa no movimento de Março de 1964. Não conhecia Heck. Telefonou-lhe e, apesar de o Almirante dizer-lhe que seu telefone estava censurado, fez pouco da advertência e disse que gostaria de conversar com ele. Essa mesma desconsideração por quaisquer normas de segurança marcou sua presença em São Paulo. Ficou logo conhecido como o General que pretendia derrubar Goulart − e talvez por isso mesmo não encontrou apoio em grupos maiores dispostos a conspirar e a financiar qualquer movimento.
Apesar de seu passado numa organização de estrutura forte, como a Ação Integralista (foi Chefe de sua 2ª seção), Mourão não cuidou de organizar; limitou-se a marcar presença nos contatos que manteve com pequenos grupos civis. Os Oficiais que, em pequeno número, conspiravam no QG do General Kruel, Comandante do II Exército ou serviam no QG da Quarta Zona Aérea não tiveram contato com ele que, no entanto, a muitos dizia que Goulart não terminaria seu mandato.
Para melhor conhecer o Comandante revolucionário de 31 de março, nada melhor do que relatar episódio ocorrido a 9 de Julho de 1963 na Assembléia Legislativa de São Paulo. A sessão comemorativa da Revolução de 1932 fora convocada como parte da propaganda para sensibilizar grupos civis e, por meio deles, o Exército. Convidado, Mourão compareceu com Oficiais de seu Estado Maior. A certa altura, o orador principal fez pesadas acusações ao Presidente da República. Mourão levantou-se, fez sinal aos Oficiais que o acompanhavam e retirou-se. Foi o pânico nos grupos que com ele tinham contato. Pânico maior quando se soube que fora transferido do Comando da 2ª RM para o da 4ª Região Militar em Juiz de Fora, Comando militarmente mais importante do que o de São Paulo. O conspirador passou, então, a ser conhecido como “General de Jango” e, para muitos, pouco serviram suas explicações de que se retirara da Assembléia porque, se não o tivesse feito, estaria marcando ostensivamente sua hostilidade ao Presidente da República. A transferência de Mourão para a 4ª RM, sabendo-se, como se soube depois de Março de 1964, que o Conselho Nacional de Segurança tinha gravado todas as conversações dos conspiradores, decorreu da pouca ou nenhuma compreensão, pelo Governo de Jango, da atitude militar do General.
Só se compreenderá o que veio depois de 31 de Março se atentarmos para o fato de que a conspiração que levou à destituição de Goulart deu-se naquilo que um jornalista brilhante chamou de “arquipélago” depois de entrevistar-se com os principais Chefes militares do movimento, não os que, depois, surgiram como seus Chefes. Em “A mobilização da audácia”, série de reportagens que publicou a partir de abril de 1965 no jornal “O Estado de S. Paulo” (depois reunidas em livro sob igual título), José Stacchini mostra como eram vários, e sem organização nacional, os grupos militares opositores ao Governo, que só juntaram esforços depois que o General Mourão Filho saiu de Juiz de Fora.
O General Mourão, em Juiz de Fora, respirando a atmosfera de Minas Gerais, formulou seu plano de ação e pôde, pelo fato de ter o Comando da 4ª RM, contar com o apoio do Marechal Odílio Denys, o qual se revelou de grande para não dizer fundamental valia, na noite de 30 para 31 de Março, e do Governador Magalhães Pinto. Não apenas teve o apoio de Denys e Magalhães Pinto − também o do General Carlos Luís Guedes, que já no dia 30 levantara a IV Divisão de Infantaria com QG em Belo Horizonte e a Polícia Militar mineira. Mas não organizou um grupo seu.
O Almirante Sílvio Heck tinha seu grupo − pequeno, embora pudesse contar com o apoio de Capitães da 6ª Região Militar, os que editaram “O Gorila”. Organizou a Frente Patriótica Civil-Militar, pequeno grupo de civis e militares sem relevância política ou militar e sem extensão organizatória. Stacchini refere-se à Frente como o grupo “à esquerda” entre os que pretendiam a queda de Goulart.
O Marechal Denys, segundo depoimento seu, começara em 1962 ou início de 1963 com “elementos de confiança”, “uma articulação militar, metodicamente abrangendo as guarnições para um levante de Norte a Sul”. Ligou-se a Heck e Moss, que, tal como ele, foram Ministros do Governo Jânio e se haviam oposto à posse de Goulart, e passou a contar com os Generais Cordeiro de Farias e Nelson de Mello”. No início de 1964, procurou Ademar de Barros, pois seu planejamento previa que o movimento deveria começar por um grande Estado. O Governador de São Paulo ponderou que temia que, como em 1932, São Paulo ficasse sozinho apesar das garantias dadas por outros Governadores. Por intermédio do General Carlos Luís Guedes, Denys entrou em contato com Magalhães Pinto e acertaram os ponteiros.
Num dos grupos conspiradores, contou-se curiosa história sobre a participação de Costa e Silva no movimento. Em fins de 1963 ou início de 1964, o Coronel Jayme Portela, correndo todos os riscos, fez pesquisa na Vila Militar, procurando conhecer a opinião dos Oficiais: “A favor ou contra o Governo Goulart?”. De posse das respostas, majoritariamente contra Goulart, procurou o General Nelson de Mello, a quem as ofereceu. Nelson de Mello teria desconversado. Portela, então, procurou Costa e Silva que, embora tendo-se recusado a assumir a chefia de qualquer movimento quando convidado por alguns jovens Oficiais, guardou cuidadosamente aquelas respostas.
Denys foi logo esquecido, sendo hoje lembrado apenas por sua participação na “novembrada” de 1955. Heck não conseguiu realizar seu sonho, que era voltar à Ativa e integrar o Conselho do Almirantado. Mourão, como Chefe militar do 31 de Março, foi promovido por ato do Congresso a General-de-Exército, assumiu o Comando do IV Exército e pouco depois foi nomeado Ministro do Superior Tribunal Militar.
O General Humberto de Alencar Castelo Branco era, no dizer de alguém que apoiou ardentemente seu Governo, um Chefe, não um líder. Na história dos dias convulsionados que antecederam o 31 de Março, destacou-se pelo documento que, como Chefe do Estado-Maior do Exército, dirigiu a todos os Generais, no qual diz: “Os meios militares são permanentes e não existem para defender programas de governo, nem fazer sua propaganda, mas para garantir os poderes constitucionais, o seu funcionamento e a aplicação da lei. (…) Não sendo milícias, as Forças Armadas não são armas para empreendimentos antidemocráticos”. Mais adiante, pergunta: “O povo brasileiro estará pedindo ditadura militar ou civil e Constituinte? Parece que não. Muito menos que as Forças Armadas entrem numa revolução para entregar o poder a um grupo que quer dominá-lo para mandar, desmandar e usufruí-lo. Nem para submeter a nação ao comunismo de Moscou”. Castelo Branco surge nos primeiros dias de Março como o General-de-Exército que assumiria o Comando do movimento que depôs Goulart.
O General Arthur da Costa e Silva será tido por aqueles que o acompanharam, a exemplo do então Coronel Jayme Portela, como o Chefe indiscutível da conspiração, quando mais não fosse porque, no dizer de Portela, organizava. Por sua postura nos primeiros dias de Abril de 1964, poder-se-ia dizer que era dos poucos que sabiam que estava em curso um processo revolucionário − de amplo espectro, mas limitado no tempo, como ficou estabelecido no Ato Institucional depois chamado de Número 1.
A Revolução, qual figura mitológica, lembrando o que escreveu depois um jornalista francês, devorou seus primeiros homens, como Costa e Silva. A morte, em 1968, afastou Castelo do processo. Dos homens de Março de 1964 resta, hoje, apenas a memória.
– segue –
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