UMA VISÃO HETERODOXA DO PROCESSO – 19

 

 

 

 

     O Governo de João Batista de Oliveira Figueiredo foi o mais longo do período iniciado em 1964: seis anos. Foi, também, o que teve de fazer frente a manifestações populares de grande vulto visando a alterar a Constituição, a uma crise no balanço de pagamentos e a atos de membros isolados do aparelho repressivo inconformados com a plena vigência de um regime democrático regido pela Constituição de 1967. Muitos diriam, depois, que foi durante esse longo mandato que a Autoridade sofreu sérios abalos que persistem até hoje.

 

     Comecemos pelo fim. Escolhido pelo Presidente Geisel para sucedê-lo − numa imposição de vontade, sem consulta, fosse ao Partido que sempre apoiou o Governo, fosse ao Estabelecimento Militar representado pelo Alto Comando das Forças Armadas − Figueiredo não tinha vocação para o poder conforme se demonstrou ao longo dos seis anos. Sua frase “prefiro o cheiro de cavalo ao cheiro de povo”, repetida à exaustão pela oposição para desmoralizá-lo, simboliza o afastamento que sempre manteve da pequena política e a sua repulsa por quantos se dedicavam às intrigas de campanário.

 

     Para que possamos compreender por que a Autoridade se apagou como uma vela que se consome, é preciso dar atenção ao fato de que as oposições não foram capazes de ver que, a partir de Janeiro de 1979, o País passara a viver em um regime democrático, com todas as opções abertas a quem de fato desejasse continuar a obra iniciada em 1964 com Castelo Branco na Presidência, cujo sentido último sempre foi a salvação do Estado.

 

     Podemos dizer que Figueiredo e as oposições dividem a responsabilidade pelo desandar da situação: ele, por não ter vocação para o exercício do Poder num regime democrático e por acreditar que seu Governo seria uma “transição”; elas, por enxergarem esse Governo não como aquele em que a democracia deveria mostrar ser capaz de atender aos reclamos de diferentes setores da sociedade, mas, pelo contrário, como apenas a continuação, sem rupturas, do período, longo, de 1965 – com a edição do Ato Institucional Nº 2, quando o Presidente da República podia editar Atos que punham o Congresso em recesso, cassava mandatos e direitos políticos e editava decretos-lei que alteravam os sistemas tributário e eleitoral – até Janeiro de 1979. Figueiredo pecou por falta de disposição; as oposições, por terem feito uma análise errada da situação que se criara com o fim da vigência dos Atos Institucionais e a volta a um regime regido por uma Constituição votada pelo Congresso. A isso se somou, na opinião de um General que servira com Médici, a ausência de uma assessoria que compreendesse o sentido da abertura propiciada pelo Presidente Geisel.

 

     O período Figueiredo foi marcado por manifestações de vulto em que, a partir das agressões verbais, por pouco não se consumou uma agressão física ao Presidente da República. Os estudantes foram, novamente, a grande massa de manobra de que se serviram as oposições. A lei da anistia não foi vista como a tentativa de resolver o passado, mas sim, por um lado, como o triunfo da pressão popular para que os proscritos retornassem ao País e, por outro lado, como também uma manobra dos militares para que os alegados crimes cometidos contra os direitos humanos fossem esquecidos. Os fatos desmentindo o primeiro desses entendimentos, o último persiste até hoje, com o que o País corre o risco, triunfante que venha a ser essa visão estreita do que seja “anistia”, de voltar a uma situação que os militares, em sua enorme maioria, se não todos eles, não desejam que se repita.

 

     A reestruturação dos Partidos políticos foi um dos elementos que contribuíram com o atabalhoamento em que o País viveu durante o Governo Figueiredo. O fim dos Atos e a volta do pluripartidarismo deixaram o Executivo à mercê de composições das mais estranhas no Congresso. Mais ainda, levaram ao triunfo irreversível da política de campanário tal como a estamos assistindo, cada Partido e cada Deputado ou Senador buscando, por arranjos nem sempre corretos, garantir seus redutos eleitorais, sem que qualquer idéia da grande política voltasse a permear os debates e pronunciamentos. Todos, em 1979, voltaram-se “contra a ditadura militar” e mesmo o Partido que dizia sustentar o Governo evitava aparecer como vinculado ao passado. Eram os políticos todos de “centro-esquerda”, termo usado como sinônimo de “progressista”. Muitos deles, que eram da Arena, não migraram para o PDS, esquecendo-se até mesmo de que só haviam conquistado seus mandatos graças ao prestígio de Ministros e do apoio da máquina governamental – e, assim que lhes foi possível, passaram para a oposição.

 

     Já no Governo Sarney, a Constituinte de 1986, por sua composição, refletirá essa nova realidade − e a Constituição de 1988 a consagrará. Por um lado, fará dos Municípios elementos constitutivos da Federação (União + Estados + Municípios); por outro, cederá a quantos labutavam para que se realizasse a unidade latino-americana, fazendo que o Brasil abdicasse, constitucionalmente, não só de sua cultura e sua identidade como de parte de sua soberania, se não de toda ela no futuro. Basta ler o artigo 4º: “A República Federativa do Brasil reger-se-á nas suas relações internacionais pelos seguintes princípios” e seu parágrafo único: “… buscará a integração econômica, política, social e cultural dos povos da América Latina, visando à formação de uma comunidade latino-americana de nações” (negritos nossos).

 

     A crise no balanço de pagamentos foi a conclusão necessária da política econômica de Geisel e teve como conseqüência a necessidade de que Figueiredo, para que fosse possível fechá-lo, apelasse ao Presidente dos Estados Unidos solicitando que fosse feito um empréstimo ao Brasil de 500 milhões de dólares. O auxílio foi concedido e pago em seguida, aliviando a crise – que, no entanto, voltou a crescer no Governo Sarney, levando o País à moratória.

 

     Crise maior – maior, sim, pois envolvia militares que desafiavam a democracia sob Figueiredo − foi provocada por elementos dos aparelhos repressivos que não concordavam com a fragilidade demonstrada pelo Presidente no trato com os políticos e a oposição. Foi, por assim dizer, uma manifestação “individual”, e não “institucional”, de parte dos aparelhos repressivos que haviam deixado de existir formalmente. Teve, no entanto, apesar de seu caráter “individual”, repercussões de monta seja na Imprensa, seja no próprio Governo, levando o General Golbery a desligar-se da Casa Civil num ato que foi de protesto mas também foi para marcar que nada tinha a ver com os fatos nem tinha poder para investigar quais seriam seus responsáveis.

 

     Alguns atentados contra a ordem foram cometidos, resultando em algumas vítimas. Se os primeiros atos terroristas (pois hoje se classificariam como tal) não permitiram identificar seus autores, o de maior projeção, o do Rio Centro, deixou marcas, para não dizer impressões digitais. Vitimou dois militares.

 

     A quanto se pôde reconstituir os fatos, realizava-se no Rio Centro um festival de música popular com grande público presente. A certa altura, uma explosão. Uma bomba explodiu dentro de um carro estacionado perto de onde se concentrava a massa. Um Sargento morreu porque a tinha sobre as pernas, e um Capitão ficou gravemente ferido – ambos do Exército.

 

     O episódio, por suas circunstâncias e pela repercussão que teve, colocou o Presidente Figueiredo em xeque. A versão oficial, difundida pouco depois, foi a de que a bomba fora arremessada para dentro do carro por terroristas da esquerda. Ninguém acreditou nisso e insistiu-se em que fosse aberto um Inquérito Policial Militar para apurar os fatos. A grita que se fez não foi apenas da Imprensa; também ergueu-se no meio político, todos reclamando a abertura de um inquérito para apurar o ocorrido, muitos jornais afirmando que a bomba explodiria no meio do festival e que o Sargento e o Capitão eram os responsáveis pelo atentado frustrado.

 

     O Presidente Figueiredo nada fez. O General Golbery demitiu-se. Um Almirante requereu ao Superior Tribunal Militar que instaurasse inquérito, visto que as vítimas tinham sido dois militares, que um deles fora morto, e que se fazia mister conhecer os verdadeiros autores do atentado. Não foi atendido em sua petição. O Capitão foi hospitalizado, o Sargento foi enterrado, e o assunto morreu com o passar dos dias. Ficou no ar, no entanto, a sensação de que o Presidente da República não tivera condições institucionais para determinar a apuração dos fatos.

 

     E assim o Governo de João Batista Figueiredo chegou a seu nadir. Dali para frente, a oposição só cresceu e estudantes e populares formaram multidões reclamando a eleição direta para Presidente da República. Eleitos Tancredo Neves e José Sarney (o primeiro sempre formara na oposição, o segundo sempre apoiara os Presidentes militares), Figueiredo recolheu-se à vida privada contando com poucos amigos até sua morte.

 

     A crédito de seu Governo, deve registrar-se que Figueiredo insistiu em pôr fim à crise diplomática com a Argentina (Corpus-Itaipu), conseguindo, finalmente, que a construção da represa brasileiro-paraguaia pudesse ser completada sem maiores complicações.

 

– segue – 

 

 

 

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