A quem aproveitou a República?
Antes de responder a essa pergunta, que orientou nosso exame das crises no Império, devemos atentar para outro critério de exame de transformações institucionais de vulto: que resultados a deposição do Imperador produziu, de imediato, no campo do Direito positivo? É no Direito que por assim dizer ganham corpo os objetivos dos grupos que disputam o poder no Estado. É para ele que devemos voltar, pois, nossa atenção. Antes, porém, convém dizer alguma coisa sobre o clima político que permitiu que a República fosse proclamada sem qualquer resistência na sociedade.
Três fatos − aparentemente sem ligação − marcam o alheamento da Coroa dos grupos socialmente dirigentes e dominantes: a Questão Religiosa, a abolição dos escravos e a sucessão de Dom Pedro II por sua filha, a Princesa Isabel.
A “Questão Religiosa” resumiu-se, em poucas palavras, na prisão de dois Bispos que, baseados em ordenações papais, haviam interditado irmandades religiosas por terem recebido entre seus membros alguns maçons. As determinações de Roma não foram acolhidas pelo Governo, que determinou o levantamento da ordem episcopal. Desobedecida a determinação, e fundado na Constituição que estabelecera o regime de padroado, o Governo determinou a prisão dos eclesiásticos. É possível que a decisão do Governo Imperial tivesse refletido a importância da Maçonaria. O que nos interessa não é este aspecto da questão, mas sim a repercussão da prisão dos antístites na população em geral, especialmente em grupos social e economicamente dirigentes.
Não temos notícia dessa repercussão. Não custa, porém, tendo em vista a enorme influência – para não dizer a direção moral – que a Igreja Católica tinha sobre a população em geral, inclusive sobre grupos social e politicamente importantes, afirmar que a prisão dos Bispos permitiu que o sentido de lealdade às instituições e a crença na legitimidade da Coroa fossem colocados em xeque. A observação pode ser tida como marginal, mas a reputamos importante: um Poder começa a perder sua legitimidade quando seus mandados, seus atos de império, ferem, como diria Durkheim, estados fortes da consciência coletiva. A infalibilidade papal e o carisma de que são dotados os Bispos a partir de sua consagração faziam parte desses estados fortes. Ao prender os Bispos, o Governo − vale dizer a Coroa − viu seus atos colocados em dúvida. Seus mandados passaram a ser objeto de restrições e a defesa do Estado não se colocou mais em termos de lealdade à Coroa.
A Lei Áurea teria afastado definitivamente os proprietários e seus dependentes da Monarquia. Essa é uma afirmação que deve ser tomada cum grano salis. Esse afastamento não levou à organização de um “partido” antimonárquico que defendesse a revogação da lei. Simplesmente retirou, dos proprietários, qualquer motivação para formar na defesa − se fosse o caso − de um sistema político que os expropriara. Se a prisão dos Bispos alienara simpatias e permitira que se duvidasse da legitimidade da Coroa, a abolição aumentou a distância política entre a família imperial (e o sistema de governo) e os proprietários de Norte a Sul.
A sucessão de Dom Pedro II, pelo contrário, deu origem ao que se poderia chamar de um “partido” contrário à assunção de Dona Isabel ao trono. A Imprensa desempenhou importante papel na condenação daquilo que, à época, dizia-se ser o “golpe do Terceiro Reinado” − e os editoriais de Rui Barbosa muito contribuíram para formar uma corrente de opinião que temia a influência do Conde D’Eu sobre aquela que viria a ser Imperatriz. No fundo, a campanha contra o “golpe” foi buscar suas razões no sentimento, mais do que numa idéia trabalhada racionalmente, de que a Princesa, por ser mulher, estaria sujeita à influência do Príncipe, que era estrangeiro.
Esses três acontecimentos − a Questão religiosa, a abolição dos escravos e o “golpe do Terceiro Reinado” − influíram pouco na decisão de depor o Imperador.
Questão religiosa − Por mais que o Exército estivesse marcado pelo ideário da Igreja Católica e por mais que a prisão dos Bispos abalasse o sentimento de lealdade ao Imperador, a deposição de Pedro II não se colocava como necessidade para o corpo de Oficiais superiores, impelindo-o à ação.
Abolição − O Exército já dera demonstrações de que não serviria de Polícia para capturar escravos fugitivos. Não formaria com os proprietários para que se voltasse ao status quo ante. Pelo contrário, formaria com os que defendessem a Coroa caso os ex-proprietários de escravos se mobilizassem para desautorizá-la.
O “golpe do Terceiro Reinado” − A quanto sabemos, a propaganda contra que se cumprisse a Constituição de 1824 originou-se no meio civil − que, convenhamos, pouco teria a ganhar ou a perder com a ida da Princesa Isabel ao trono. Não há referências à repercussão dos artigos de Rui no meio militar − ainda que se deva aceitar como válida a hipótese de que encontrava seguidores neste ou naquele setor do Exército. Muito menos repercussão teria na Marinha, acusada por Oficiais do Exército de ser a “menina dos olhos” da família imperial.
Se é possível afirmar, pois, que as transformações que se deram na compreensão que o meio civil tinha de suas relações com a Coroa pouco influenciaram o Exército para que Deodoro se dispusesse a depor o Imperador, a conclusão é óbvia: a “necessidade levando ao impulso revolucionário” deve ser buscada no próprio Exército, independentemente das ligações que estes ou aqueles Oficiais Generais tinham com grupos civis.
Há um fato a que se tem emprestado pouca importância quando se analisa a crise que conduziu ao 15 de Novembro: as denúncias de corrupção no Governo. Rui foi o grande panfletário a denunciar a ação de empreiteiros ligados à família de um Presidente do Conselho. Nomeou-os, apontou as ligações familiares e a ação do Presidente do Conselho anulando concorrências para favorecer a família Loyo. E os corruptores, para ele, passaram a ser chamados “os Loyos”. As denúncias, sem resposta, sensibilizaram o meio militar. Há uma carta de Floriano Peixoto a colega de Armas, verberando a corrupção e apontando “a espada” como único remédio para a situação.
As denúncias de Rui e sua repercussão na oficialidade são fatos que não dizem diretamente respeito à instituição militar. Mas a idéia de que o Exército estaria servindo a um Estado cujo Governo abrigava a corrupção atingia fundo os valores em torno dos quais formou sua especial visão do mundo. Em outras palavras, a corrupção feria os estados fortes da consciência coletiva do Exército.
Cabe acrescentar dois outros fatos que motivaram Deodoro e ajudam a explicar a atitude de Floriano, que servia diretamente subordinado a Ouro Preto, no momento em que o velho Marechal destitui o Presidente do Conselho e em seguida o Imperador. Um, é a propaganda positivista e a influência que Benjamin Constant exercia sobre os Oficiais, inclusive Generais. Não nos esqueçamos, foi ele quem procurou Deodoro, que estava acamado, e insistiu em que o Marechal deveria conduzir a ação contra o Governo, já que a defesa da Lei e da Ordem (palavras suas, conforme a História registra) era função do Exército e a Lei e a Ordem estavam sendo subvertidas pela Monarquia. O outro fato é sobremodo corporativo: a transferência de uma unidade do Exército do Rio de Janeiro para Mato Grosso, decisão de Ouro Preto que muito desagradara a Força de Terra. A esses fatos, acrescente-se, segundo alguns historiadores, o sentimento do Exército que, depois da Guerra do Paraguai, sentia-se isolado, enquanto a Marinha merecia todas as atenções do Paço.
É preciso ter sempre presente que Deodoro não saiu de sua casa para depor o Imperador. Todos os relatos dão conta de que, encontrando Ouro Preto, que deixava o edifício da Presidência do Conselho, o Marechal comunicou-lhe, simplesmente, que estava destituído. A deposição do Imperador veio a seguir.
Quem se aproveitou da proclamação da República? A que “interesses vis” (como diria um filósofo) serviu o Exército sob o comando de Deodoro (e de Floriano!)? Aos interesses dos proprietários de escravos, despojados de sua propriedade, não foi. Deodoro agiu por pressão de Benjamin Constant e também por motivos corporativos, já que discordava da transferência da unidade do Exército para Mato Grosso − e também para fazer que se respeitassem a Lei e a Ordem! Floriano, seguramente, agiu para que a Espada acabasse com a corrupção.
Se assim foi, e se considerarmos que o Exército, na República que se instalava, não viu melhorada sua posição estamental face à Marinha, quem se beneficiou do 15 de Novembro?
É no Direito, conforme foi dito de início, que vamos encontrar uma resposta plausível – a que nos levaria a dizer que o 15 de Novembro foi a grande jornada de decepções para o Exército, enquanto organização nacional. Leia-se com atenção o decreto nº 1 do Governo Provisório e lá se encontrará a resposta: as províncias passam a denominar-se estados e “em sua soberania” elaborarão suas constituições. A Constituição de 1891, consagrando a Federação, embora sem mais fazer menção à “soberania dos estados” recém-criados, é a evidência jurídica e documental de que o Exército, organização nacional por excelência, desconhecendo o peso político das oligarquias das províncias, abriu o caminho para o triunfo dos localismos − e para a grande crise que abala o Brasil até hoje.
– segue –
xxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxx