UMA VISÃO HETERODOXA DO PROCESSO – 26

 

 

 

 

     A Constituição de 1934 é o ápice, digamos, de um processo social e político relativamente longo e perturbado, iniciado na Abolição, em que o Brasil conhece o Governo forte de Floriano Peixoto, a revolta da Esquadra, a Revolução Federalista, a Política dos Governadores, o predomínio de São Paulo e Minas Gerais na República, os “18 do Forte”, os primeiros passos da industrialização, o estímulo à urbanização e o surgimento de movimentos sociais, a revolução de 1924 em São Paulo, a Coluna Prestes e a Revolução de 1930. Para que tenhamos um quadro mais ou menos completo do que ocorrera nas relações sociais e políticas, entre a Sociedade ou partes dela com o Estado republicano, será necessário não nos esquecer da cisão no Partido Republicano Paulista em 1924 e a Revolução de 1932 em São Paulo. Uma das conquistas que a Carta de 1934 inscreveu foi o voto feminino, fato que tem merecido pouca atenção, apesar de sua extraordinária importância para o processo de mudança social.

 

     Voltemos ao nosso problema − a Burocracia. Releve, o leitor, a extensão das citações do texto constitucional de 1934.

 

     “Art. 113 / 35) A lei assegurará o rápido andamento dos processos nas repartições públicas, a comunicação aos interessados dos despachos proferidos, assim como das informações a que estes se refiram, e a expedição das certidões requeridas para a defesa de direitos individuais, ou para esclarecimento dos cidadãos acerca dos negócios públicos, ressalvados, quanto às últimas, os casos em que o interesse público imponha segredo, ou reserva.

 

     “Art. 169 − Os funcionários públicos, depois de dois anos, quando nomeados em virtude de concurso de provas, e, em geral, depois de dez anos de efetivo exercício, só poderão ser destituídos em virtude de sentença judiciária ou mediante processo administrativo, regulado por lei, e, no qual lhes será assegurada plena defesa.

 

     “Art. 170 − O Poder Legislativo votará o Estatuto dos Funcionários Públicos, obedecendo às seguintes normas, desde já em vigor:

 

     1º) o quadro dos funcionários públicos compreenderá todos os que exerçam cargos públicos, seja qual for a forma do pagamento;

 

     3º) salvo os casos previstos na Constituição, serão aposentados, compulsoriamente os funcionários que atingirem 68 anos de idade;

 

     7º) os proventos da aposentadoria ou jubilação não poderão exceder os vencimentos da atividade;

 

     9º) o funcionário que se valer da sua autoridade em favor de Partido Político, ou exercer pressão partidária sobre os seus subordinados, será punido com a perda do cargo, quando provado o abuso, em processo judiciário;

 

     10) os funcionários terão direito a férias anuais, sem descontos; e a funcionária gestante, três meses de licença com vencimentos integrais.

 

     “Art. 171 − Os funcionários públicos são responsáveis solidariamente com a Fazenda nacional, estadual ou municipal, por quaisquer prejuízos decorrentes de negligência, omissão ou abuso no exercício dos seus cargos”.

 

      Observemos duas coisas antes de prosseguir: uma, é que a Burocracia de fato se tornara “burocrática” no sentido negativo da palavra, como se deduz da leitura do artigo 113, inciso 35. Outra, mais importante, é que os funcionários públicos, da mesma forma que a Força Armada em 1824, passam a fazer parte a Constituição, ganhando um Título (o VII) específico. O que significa, lembrando-nos do que se inscrevera em 1824 – “Art. 178. E’ só Constitucional o que diz respeito aos limites, e atribuições respectivas dos Poderes Políticos, e aos Direitos Políticos e individuais dos Cidadãos” – , que a Burocracia passa a fazer parte dos Poderes Políticos. Há mais um aspecto a observar: o funcionário público, pela garantia de estabilidade depois de dois anos, torna-se imune às flutuações do humor dos governantes, o que poderia ser interpretado como um esforço no sentido de se ter uma administração racional não sujeita às mudanças de Governo.

 

      Na verdade, a partir do momento em que a Constituição dedica um Título ao Funcionalismo Público, estamos diante do surgimento de um novo grupo social com interesses próprios que, à semelhança dos direitos individuais, deve − ele, grupo, e seus membros −, serem protegidos inclusive dos atos de governo. O artigo 170 nada mais é, pois, que a carta de alforria do funcionalismo. O que indica que o Político cedeu lugar ao Burocrático. Mais ainda, é a evidência de que os funcionários públicos têm poder suficiente − poder eleitoral, que seja – para impor essa carta de alforria aos constituintes. O funcionalismo, podemos dizer, passa a ser praticamente um poder no organograma do Estado e vê consagrado, na Constituição de 1934, aquilo que se diria ser a diferenciação funcional do poder. Em um sistema de governo em que o voto decide da sorte pessoal de cada candidato ou representante, esse poder eleitoral será bastante para alterar a relação do Estado com o Governo.

 

      A Carta de 1937, outorgada e não votada por uma Assembléia Constituinte, repetirá a de 1934 no tocante ao funcionalismo, com uma pequena alteração: a idade para a aposentadoria compulsória passa de 68 para 70 anos. Esse aumento do limite de idade pode indicar que os autores da Carta de 1937 se deram conta da existência de uma pressão de parte do funcionalismo e não desejaram encontrar oposição de parte de velhos funcionários, senhores dos meandros da máquina administrativa; ou tinham consciência de que o Governo não possuía quadros funcionais suficientes para realizar as tarefas que o Estado Novo pretendia realizar. Qualquer que seja a hipótese, indicará que o funcionalismo viu reforçada a sua posição diante do Governo e, em decorrência, diante do Estado.

 

     Restabelecido em outubro/dezembro de 1945 o que se chamou de ordem democrática, a Constituição de 1946 voltou a consagrar o poder do funcionalismo. Há de notar-se que o constituinte de 1946 defrontou-se com novo problema: os funcionários que não tinham sido admitidos por concurso e que, por serem em grande número, necessitavam do amparo constitucional. O problema foi resolvido com um artigo: “Art. 188 – São estáveis: I – depois de dois anos de exercício, os funcionários efetivos nomeados por concurso; II – depois de cinco anos de exercício, os funcionários efetivos nomeados sem concurso”.

 

      A Constituição de 1967 − votada, sempre é bom lembrar, pelo Congresso Nacional − não se afastará das anteriores no que se refere ao status do funcionalismo. Apresenta, porém, duas novidades: uma, permitir que os cargos em comissão, de livre nomeação e exoneração, possam ser preenchidos por concurso; outra, que a “legislação trabalhista [aplica-se] aos servidores admitidos temporariamente para obras, ou contratados para funções de natureza técnica ou especializada” (artigo 104).

 

      Se a menção aos cargos em comissão indica que eles se tornaram muitos nos três Poderes do Estado, a extensão da legislação trabalhista aos contratados para “obras e funções de natureza técnica ou especializada” mostra claramente que o Governo não está aparelhado para a realização das obras que realiza diretamente ou por companhias estatais, e que carece de pessoal técnico ou especializado que poderia, pela especialização, dispensar o concurso público. Não se trata, a rigor, de uma carreira, mas de um “emprego” garantido pela legislação trabalhista inclusive no que respeita à permanência no emprego.

 

      A Constituição “cidadã” alterou o prazo de carência para a estabilidade: “Art. 41. São estáveis após três anos de efetivo exercício os servidores nomeados para cargo de provimento efetivo em virtude de concurso público”. Mas é nela que a Burocracia se afirma de fato como poder diferenciado do Estado e também distinta do Governo, equiparando-se os funcionários a simples trabalhadores sem compromisso algum com o Público. Vejam-se o artigo 9º e o 37, incisos VI e VII:

 

     “Art. 9º − “É assegurado o direito de greve, competindo aos trabalhadores decidir sobre a oportunidade de exercê-lo e sobre os interesses que devam por meio dele defender.

 

     “Art. 37 − A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência e, também, ao seguinte:

 

     “VI − é garantido ao servidor público civil o direito à livre associação sindical;

 

     “VII – o direito de greve será exercido nos termos e nos limites definidos em lei específica”.

 

      Tomando sempre como referência de análise o disposto no artigo 178 da Constituição de 1824 sobre o que é “constitucional”, podemos dizer que a partir de 1988 o funcionalismo público não apenas é um Poder Político, mas um poder político corporativo, pois tem assegurados os direitos específicos das associações sindicais, corporativas à luz da CLT de 1943. Se a Constituição de 1988, em seu artigo 6º, garante como “direitos sociais a educação, a saúde (…), o trabalho (…), a segurança (…), a proteção à maternidade e à infância (…)”, a greve do funcionalismo, em qualquer categoria, priva os cidadãos do gozo desses direitos − sem que o Governo se veja prejudicado em seus interesses. Como ”corporação” e não mais como integrantes do Governo e seus agentes enquanto executores da vontade do Estado, é que os funcionários públicos poderão deixar à míngua os cidadãos na defesa de seus direitos constitucionais. Note-se que o funcionalismo é uma corporação que não se confunde com o estamento militar, também chamado “corporação” em virtude do “espírito de corpo”, e tem como adversário na luta reivindicatória não uma organização privada, cujos interesses poderão ser afetados pela greve, mas o Público em geral – ou seja, o Estado.

 

      Não apenas a transformação da Burocracia em Corporação responderá pela crise do Estado. Ela decorre de outros fatores que convém examinar. Mas, a partir da promulgação da Constituição de 1988, o Estado brasileiro estará à mercê de uma corporação com interesses privados − além de que, pelo parágrafo único do artigo 4º dessa Carta Magna, abdica da Independência e Soberania solenemente afirmada como inegociáveis em 1824.

 – segue –

 

 

 

 

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