A CRISE NA PUC-SP

 

 

 

 

     Pertenço a um “quadro em extinção”, o que significa que sou mero espectador-participante da atual crise que sacode (esta a expressão correta) a Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Nesta condição, lanço-me à tentativa de compreender o sentido das manifestações, agitações, reflexões, inclusive de Sua Eminência Reverendíssima, o Cardeal Arcebispo Metropolitano de São Paulo.

 

     Não é fácil − embora muitos pensem o contrário – entender o que está em jogo. Publicamente (para não dizer oficialmente), a crise começou quando o Dom Odilo Scherer nomeou, apoiado nos estatutos, a Profa. Ana Cintra como Reitora, ainda que ela tivesse sido colocada em terceiro lugar na eleição que se realizou para que a comunidade (?!) se manifestasse.

 

     Nesse ponto começa a dificuldade de análise da situação. Para compreendê-la, o melhor método será dividir a reação da comunidade em fases.

 

     Na primeira fase, a que se seguiu imediatamente à nomeação da Profa. Ana Cintra, a motivação do protesto era o fato de não ter sido respeitada a tradição, que exigia que o primeiro colocado, Prof. Dirceu, fosse nomeado. É como se, para afirmar-se a tradição, o caminho fosse, digamos, o da revolução. É interessante observar que muitos que militaram, se não pretenderam conduzir o processo, estranharam que o Prof. Dirceu, que chegara em primeiro lugar na eleição, não participasse desses protestos, esquecendo-se de que ele era o único que não poderia falar, pois, se o fizesse, daria impressão de que tudo fora por ele mesmo orquestrado.

 

     A segunda fase é um momento apenas: o espetáculo no Pátio da Cruz em que se pretendeu demonstrar que a Igreja estava falida, tanto assim que se representou o banquete em que um Bispo fora “comido” no passado colonial. Apenas um momento, mas um momento significativo.

 

     O terceiro momento foi o impedimento a que a Profa. Ana Cintra entrasse no edifício da Reitoria. Era o triunfo do movimento: a Reitora não tomou posse! Fê-lo, no entanto, em outro Campo da PUC e começou a administrar. Teria sido, para alguns, o momento de parar com a greve, que atingia (e ainda assim não totalmente) o Campo de Perdizes. Tomou-se a nuvem por Juno e tudo continuou como antes.

 

     A partir daí, o protesto mudou de direção: reconheceu-se a legalidade da nomeação, mas passou-se a contestar a pessoa da nova Reitora. Ela não poderia tomar posse porque assinara um documento, comprometendo-se a só assumir a Reitoria caso fosse a primeira colocada na eleição. A essa altura, correu na rampa estranho rumor: o Cardeal reunira-se com os três votados nas eleições e lhes colocara uma interessante questão político-jurídica: na medida em que os três candidatos haviam assinado o documento de não aceitação do cargo caso não chegassem em primeiro lugar na votação, haviam retirado dele, Cardeal, o direito de escolha que os estatutos lhe conferem, do qual não abdicava. Pedira, então, aos três Professores, que assinassem um outro documento reconhecendo esse seu direito de nomear quem melhor lhe parecesse. E o rumor concluía: os três assinaram. Contrariamente, contudo, ao documento assinado em reunião pública, não se viu aquele solicitado pelo Cardeal. O rumor passou como folha levada pelo vento…

 

     É quando entramos na quarta fase, a mais delicada, que coloca situação nova sobre cujo desfecho pouco (?) se raciocinou: a posse da Profa. Ana Cintra seria contrária aos documentos que regem a vida da Universidade e – surpresa! – contra o Código do Direito Canônico. Em outras palavras, alegava-se que, tendo assinado o documento comprometendo-se a não tomar posse caso não fosse a primeira escolhida, a Profa. Ana Cintra não mais teria condições estatutárias, regimentais, canônicas, o que fosse, de assumir a Reitoria.

 

     Nessa fase, o movimento mudou de figura: era o Consun, discutindo moção dos estudantes, que se colocavam como parte legitima para contestar a nomeação. Mais ainda, os autores do documento enviado ao Conselho Universitário pediam a revogação de votação anterior, que ratificara o resultado da eleição e encaminhara a lista tríplice ao Cardeal. Solicitava-se, em outras palavras, que a decisão precedente, de encaminhar a lista tríplice ao Cardeal, fosse declarada nula, pois era contrária aos estatutos e ao Direito Canônico, já que a nomeação poderia atentar contra o patrimônio moral da PUC. A reunião do Consun realizou-se antes da posse − e um pedido de vista impediu que o Conselho tomasse decisão. E a Reitora nomeada foi empossada.

 

     Entramos, assim, na quinta fase: os estudantes encaminharam ao Poder Judiciário a moção, que o Consun não chegara a pôr em votação, pedindo a suspensão da nomeação por contrariar as normas vigentes. Decisão liminar suspendeu os efeitos da nomeação até que o Conselho Universitário se pronunciasse sobre a moção dos estudantes. Com o que, por decisão judicial (ainda que liminar), a PUC não tinha Reitor!

 

     A sexta fase – que não será a última! − é aquela em que o Consun, reunido extraordinariamente conforme decisão aprovada na reunião anterior, aprovou a moção dos estudantes e nomeou um Reitor ad hoc. Decisão que foi imediatamente contestada pela Fundação, ratificando a nomeação da Profa. Ana Cintra. A decisão liminar da Justiça será examinada por estes dias.

 

     Partindo de um velho adágio – os grupos mais radicais comandam o processo, mesmo não sabendo como ele se concluirá –, procuremos encontrar o sentido profundo dessa crise que, espero, não se venha a traduzir num confronto entre a Fundação e a Justiça do Estado.

 

     A primeira e mais grave conclusão que se pode tirar disso tudo é que a Política, compreendida como a relação Amigo-Inimigo, arrombou as portas da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e entrou, queira-se ou não, no rol das preocupações de todos.

 

     Sua Eminência, em artigos publicados pela “Folha de S. Paulo” e “O Estado de S. Paulo”, reiterou os termos dos estatutos da Universidade no afã de reafirmar que sua decisão não fora arbitrária, já que respaldada por aquilo que esses estatutos rezam. Houve quem lesse os artigos de Dom Odilo como indicativos de que a batalha está por vir. O que cabe assinalar é que, se esta premonição tem fundamentos na realidade, seria conveniente que todos lessem a Carta Pastoral de João Paulo II sobre as Universidades Católicas, citada pelo Cardeal no artigo publicado pelo “Estado”. Aos Professores, ela há muito foi distribuída. Poucos a leram.

 

     A questão que se coloca é saber até que ponto o “sacrifício do Bispo” é a tradução em fatos de sentimento anti-Igreja na consciência coletiva de alguns grupos, por pequenos que sejam.

 

     O “sacrifício do Bispo” indicou claramente que há, na Pontifícia Universidade Católica, quem aceita (ou deseja?) que a Igreja Católica (responsável pelos negócios ordinários e pela dívida acumulada no passado) não mais tenha qualquer poder de intervenção nessa instituição que a ela, Igreja, pertence.

 

     O importante, porém, é notar que o “sacrifício do Bispo” significa bem mais do que simplesmente o desejo de que a Igreja não interfira nos assuntos acadêmicos. Ainda que seja fato vindo à luz apenas no Campo das Perdizes, é sinal de que, em nome da autonomia e do ensino laico, pretende-se afastar qualquer interferência da Igreja na Universidade.

 

     Ao simbolismo do ”sacrifício” deve acrescentar-se a preocupação de muitos (mesmo que discordando do radicalismo da “pajelança”) de que a nomeação da Profa. Ana Cintra indique que os Professores que manifestem idéias contrárias à Doutrina da Igreja, especialmente no tocante ao aborto, sejam afastados da Universidade. Temor que começou a manifestar-se, mesmo que timidamente, desde a entrevista da Profa. Ana Cintra ao lançar sua candidatura e aquela outra, pouco depois de sua nomeação, quando falou, abertamente, da questão − deixando claro que o Professor que fosse favorável ao aborto poderia continuar mantendo suas idéias, embora não as pudesse manifestar de maneira a influenciar os alunos. O simples fato de haver mencionado assunto que nada tinha a ver com a campanha eleitoral e, depois, reiterado seu pensamento, indica com clareza que o problema existe.

 

     Há outro fato a assinalar. A crise determinou tomada de consciência de parte da Hierarquia de que estaria perdendo a batalha das consciências. Despertar, a meu ver, tardio, embora significativo. A Hierarquia despertou para o fato de que tem seu defensor na pessoa do Cardeal e cuidou de arregimentar em torno dele quantos desejam fortalecer a presença da Igreja numa Universidade Católica e, ademais, Pontifícia. Não apenas a Hierarquia se sentiu escudada na pessoa de Dom Odilo; são muitos os católicos e não católicos que aplaudiram os artigos e os tomaram como início de uma reação. Com o que, concluo, a Política das ruas invadiu a PUC e a batalha, agora, ainda que revestida de aspectos legais e estatutários, será entre Amigos e Inimigos.

 

 

 

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