A ROUQUIDÃO DAS RUAS

 

 

 

      A convocação − pois é disso que se trata − de plebiscito tomou a todos de surpresa e teve, como conseqüência imediata, que não se procurasse mais, com o empenho necessário, compreender as razões que motivaram os movimentos de rua. É como se todos − menos os que, pelas diferentes redes sociais organizaram os diferentes protestos − desejassem, de fato, opinar sobre a solução que deveria ser proposta para resolver a crise. Esses movimentos, no entanto, contribuem, ainda que sem saber e mesmo que sem querer, para que a crise se perpetue, caminhando para onde não se sabe; a passos de gigante ou de cágado, tanto faz; o importante é que os fatores que a determinaram continuam atuantes.

 

      Há fato para o qual poucos prestaram atenção: Dilma assumiu o controle da situação na medida em que as discussões, agora, giram em torno da forma que deve assumir a consulta popular que ela convocou: plebiscito ou referendo. Pouco importa a forma que a consulta popular poderá vir a ter: da Presidente da República partiu a voz de comando. Sutil, na medida em que, tendo afastado as atenções dos analistas e da mídia de si e do que era fundamental, deixou ao Congresso a tarefa de propor aos eleitores aquilo que eles, representantes, imaginam ser a fórmula capaz de resolver todos os problemas brasileiros. Dilma levará todos os louros da vitória seja o que for que o Congresso propuser ao povo; a classe política (da qual ela se afastou com grande ardileza) pagará pelo malogro em médio prazo.

 

      Ainda que o Vice-presidente da República possa sorrir – ao constatar que a idéia de uma Assembléia Constituinte foi repudiada 24 horas depois de ter sido proposta sem que ele fosse consultado em sua dupla condição de Vice-presidente e de constitucionalista -, nem ele nem ninguém se deu ao trabalho de refletir porque o Estado-Maior da Presidente da República tomou a iniciativa de fazer jogada de tal magnitude. Empenhados, a partir de sábado, 29, em mostrar a reação do MDB a Mercadante em seu novo papel de conselheiro-mór, não atentaram à figura do Ministro da Justiça que, a certa altura, deixou claro que referendo define as coisas pelo sim e ou pelo não, enquanto o plebiscito é diferente. Diferente como, talvez tenha sido fácil explicar. Diferente em quê… ficou no ar.

 

      Pelo que me recordo do que vi na TV e em flagrantes desta ou daquela rede social, nenhum cartaz pedia “reforma política”. Isso era coisa que não se agitava, talvez porque dormisse há meses no Congresso (- a rigor, há anos. Recordo-me que, há muito tempo, na Federação das Indústrias de São Paulo, os presidentes dos Partidos que, juntos, formavam a maioria esmagadora da Câmara, concordaram em colocar como primeiro ponto da pauta a “reforma política” − sobre a qual não conseguiram chegar a acordo na reunião). O que se pedia nas ruas não era a reforma, mas a solução de problemas administrativos, problemas de Governo.

 

      Certo, muitos Prefeitos diminuíram as tarifas do transporte coletivo, dando a vitória ao Passe Livre. O quanto vai custar aos cofres públicos, portanto a nós, contribuintes, não importou, e ninguém questionou, embora importe, e muito. Se necessário, aumentar-se-ão impostos e taxas que todos pagaremos. As demais reivindicações expostas às claras, essas não foram atendidas, porque não podem ser satisfeitas de imediato − embora tenham sido elas que contribuíram, e muito, para que a insatisfação e o desassossego de cada um, transformado pelo fenômeno da causação circular, levassem multidões às ruas.

 

      Dilma e seu Estado-Maior sabem disso. Sabem, também, que a parte da União na solução desses problemas não é das maiores (ainda que a remuneração dos serviços do SUS seja e a Escola devesse ser de responsabilidade federal). Observe-se, porém, que, da mesma maneira que se propôs a Constituinte exclusiva, insistiu-se na contratação de médicos estrangeiros de qualificação duvidosa − e que os médicos reunidos em sua corporação esbravejem e cuidem de fazer que a proposta não seja aprovada. Haverá outras propostas das quais não me recordo agora.

 

      O importante a assinalar é que essas propostas foram feitas, e a “classe política”, os médicos e os demais que protestam responderão pelo fato de não serem aprovadas. O corte, a separação entre o Governo (que aparenta buscar atender à sociedade) e os políticos profissionais ou amadores, é hoje um fato que poucos querem ver − e as medidas sugeridas pela Presidente foram adotadas no calor da hora, como o são as decisões de Estado-Maior no fragor da batalha.

 

      Uma observação: quando a voz se torna rouca, tem-se o sintoma de um mal, não se sabe qual, se grave ou não. Nada, nos cartazes exibidos nas ruas, dizia que a “voz rouca” reclamava coisas desse tipo. Mas todas as atenções voltam-se agora para a disjuntiva: “plebiscito” ou “referendo”. O Estado-Maior da Presidente da República, acertadamente, concluiu que não podia fazer um diagnóstico correto − então jogou a  responsabilidade da recuperação ou agonia das instituições para o Congresso. E o Congresso, este, colocado entre a cruz e a espada, decidiu que deve decidir sobre a reforma política e submetê-la a referendo ou convocar um plebiscito para que o povo estabeleça as linhas gerais da reforma − que ele, Congresso, na sua “soberania” como representante do povo, dirigirá para o Norte que desejar.

 

      Os mais cautos mostram a necessidade de qualquer deles, plebiscito ou referendo; necessitará, para que tenha alguma legitimidade (?), ser precedido de um longo debate, inviabilizando a entrada em vigor das medidas a tempo de as eleições de 2014 serem feitas de acordo com as novas formas. Preocupação que, diga-se de passagem, dá a impressão de que a “voz rouca das ruas” está preocupada apenas com a próxima eleição presidencial.

 

      Para exemplificar a dificuldade de uma decisão “esclarecida”, analistas e especialistas alinham as dificuldades na escolha do que será proposto para que o Congresso decida, ou para que os eleitores aprovem o que o Congresso decidir. Como um Czar de todas as Rússias baixando ukazes, dizem em torno do que deverá girar a votação: voto proporcional, distrital ou distrital misto; lista aberta ou fechada de candidatos; financiamento público ou privado de candidaturas e tutti quanti. A “elite esclarecida” já decidiu que assim deve ser. E o presidente do Senado resolveu o problema de 2014: reforme-se a Constituição para que as reformas político-eleitorais possam vigorar mesmo se forem aprovadas um dia antes das eleições…

 

      A “voz rouca” nas ruas, que é um sintoma, indica que o organismo político está doente. O problema é que não há médico que faça o diagnóstico correto e indique a cura. Do que se extrai, por sua vez, que a crise continuará até que haja uma falência generalizada das Instituições. Mesmo que nos bata à porta um curandeiro na figura de um Partido que dê sua “impressão” e nos iluda com uma mezinha que permita resolver, não a moléstia, sim seus sintomas, com um mínimo de racionalidade ou com um máximo de irracionalidade, uma extrema irracionalidade. 

      

 

 

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