Mantenhamos como pano de fundo a advertência papal: “Tanto os intelectuais como os jornalistas caem, frequentemente, em generalizações grosseiras…” O que nos diz que comentar a “Evangelii Gaudium” é tarefa sumamente delicada, antes de tudo, porque os quadros mentais de Papa Francisco e os dos “intelectuais e jornalistas” são muito diferentes. Os referenciais de Francisco são as Escrituras e a Moral; os nossos, uma pretensa Razão, preocupada com a possível influência política dos textos provindos do Vaticano. Será caso de, aqui, destacarmos a reiterada opção pelos pobres, parte da Doutrina Social de Igreja, quando não inscrita no próprio Evangelho, como Francisco faz questão de assinalar aqui e ali.
João Paulo II afirmara, em uma de suas últimas encíclicas, que a questão social é, para a Igreja, uma questão moral – é, portanto, uma daquelas questões sobre as quais o Papa fala ex catedra. Francisco vai mais longe, lembrando que “Deriva da nossa fé em Cristo, que Se fez pobre e sempre Se aproximou dos pobres e marginalizados, a preocupação pelo desenvolvimento integral dos mais abandonados da sociedade”. E insiste: “Mas, a quem deveria [a Igreja] privilegiar? Quando se lê o Evangelho, encontramos uma orientação muito clara… Não devem subsistir dúvidas nem explicações que debilitem esta mensagem claríssima. Hoje e sempre, ‘os pobres são os destinatários privilegiados do Evangelho’”.
Sempre que examinam os textos papais, intelectuais e jornalistas se defrontam com uma dificuldade: a qual universo Sua Santidade estará se referindo? Ao real, da práxis cotidiana, ou ao espiritual? Diz dos pobres de meios ou dos pobres de espírito? Sem dúvida, para o Papa Francisco, a Igreja Católica tem a missão de levar a mensagem de Cristo a todos. Haverá ainda, porém, outra missão: “A Igreja não cresce por proselitismo, mas ‘por atração’… Repito aqui… prefiro uma Igreja acidentada, ferida e enlameada por ter saído pelas estradas, a uma Igreja enferma pelo fechamento e a comodidade de se agarrar às próprias seguranças… enquanto lá fora há uma multidão faminta e Jesus repete-nos sem cessar: ‘Dai-lhes vós mesmos de comer’… Não deixemos que nos roubem o Evangelho!”.
A Igreja é, pois, militante. Isto estará explicitado em diferentes momentos da “Evangelii Gaudium”, sem ambages: “Embora ‘a justa ordem da sociedade e do Estado seja dever central da política’, a Igreja ‘não pode nem deve ficar à margem na luta pela justiça’”. Francisco e sua Igreja defenderão a propriedade, justificada por um ”direito” que lhe é anterior: “A solidariedade é uma reação espontânea de quem reconhece a função social da propriedade e o destino universal dos bens como realidades anteriores à propriedade privada”.
A esta altura, um intelectual presunçoso e prepotente lembrar-se-á do “Discurso sobre a desigualdade” e de que “aquele que cercou um pedaço de terra e disse ‘isto é meu’ foi o verdadeiro fundador da sociedade civil”. Os demais lhe perguntaram em nome de que direito a propriedade era reivindicada: o do primeiro ocupante ou o do mais forte? Como a resposta nada lhes dizia, seguiu-se a guerra de todos contra todos, que cessou quando os ricos e fortes puderam convencer os pobres e fracos a que aceitassem o Governo.
Para Francisco, nem o direito do mais forte, nem o direito do primeiro ocupante, nem um contrato social justifica a propriedade. Ela se justifica por “realidades” anteriores e terá uma “função social”: a “posse privada dos bens justifica-se para cuidar deles e aumentá-los de modo a servirem melhor o bem comum, pelo que a solidariedade deve ser vivida como a decisão de devolver ao pobre o que lhe corresponde”. É como se voltássemos ao poeta romano e à era primeva, a de ouro, em que os homens viviam sem lei e sem juiz. Ou ao Éden, em que tudo foi de todos, até que se cometeu o Pecado…
Enganar-se-ão os que pretenderem ver na Exortação a “anistia” papal à Teologia da Libertação. A defesa dos pobres faz-se em nome de Cristo, cujo caráter salvífico é constantemente afirmado sem qualquer referência ao seu suposto caráter revolucionário. A missão, hoje, não é pôr-se em armas contra ricos, poderosos e opressores. Nem dar fim à desigualdade pela expropriação da propriedade pelo Estado eliminando a mais-valia. A leitura da Exortação só permite uma conclusão: a sociedade não se divide entre proprietários dos meios de produção e operários, mas sim entre o rico e o pobre, o primeiro devendo “devolver” ao segundo “o que lhe corresponde”…
O cerne da questão não está na propriedade – está na alienação que se dá no dinheiro. Convém lembrar que São Paulo já condenava não o dinheiro, mas a cobiça por ele. Francisco dirá: “Não à nova idolatria do dinheiro”; e “Uma das causas desta situação está na relação estabelecida com o dinheiro, porque aceitamos pacificamente o seu domínio sobre nós e as nossas sociedades… O dinheiro deve servir e não governar! A adoração do antigo bezerro de ouro… encontrou uma nova e cruel versão no fetichismo do dinheiro e na ditadura duma economia sem rosto e sem um objetivo verdadeiramente humano… O Papa ama a todos, ricos e pobres, mas tem a obrigação, em nome de Cristo, de lembrar que os ricos devem ajudar os pobres, respeitá-los e promovê-los”.
Nesse ponto, Francisco avança contra “ideologias que defendem a autonomia absoluta dos mercados e a especulação financeira. Por isso, negam o direito de controle dos Estados, encarregados de velar pela tutela do bem comum” e de preservar a Natureza e o Homem indefesos “face aos interesses do mercado divinizado, transformados em regra absoluta”.
A Igreja militante terá seus soldados, sua disciplina e também sua hierarquia. Na Exortação, Francisco cuida desse problema.
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(publicado nesta data em “O Estado de S.Paulo”)
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