Uma das crises que vivemos hoje — a dos índios, que não se sabe ao certo a que Estado pertencem, sendo membros de diferentes “nações” — exemplifica e marca com ferro em brasa a crise do Estado, isto é, o fato de não haver, na maioria da população, a idéia de que o Território é o alicerce sobre o qual se ergue o Estado. Sem que o Território faça parte do imaginário de cada um de nós, o Estado nada vale: limita-se ao Governo e como tal cede às injunções pessoais ou institucionais internas e externas.
Raciocinemos.
A Constituição de 1824 não dedica Título, Capítulo ou Secção aos Índios. Eles são considerados, pelo artigo 6º, cidadãos brasileiros.
“Artigo 6º − São cidadãos brasileiros:
“I − Os que no Brasil tiverem nascido, quer sejam ingênuos ou libertos, ainda que o pai seja estrangeiro, uma vez que este não resida por serviço de sua Nação.”
A Constituição de 1891, a primeira republicana, desconhece os índios: não são cidadãos.
“Artigo 69 − São cidadãos brasileiros:
“1º − Os nascidos no Brasil, ainda que de pai estrangeiro, não residindo este a serviço de sua nação.”
Os demais incisos nada dizem sobre os índios ou os “cidadãos ingênuos” da Carta de 1824.
Mas não nos interessa, para os fins deste artigo, saber quando a Constituição brasileira decidiu cuidar dos índios, depois de 1889, ano em que se proclamou a República. Interessa-nos ver como, em 1988, os constituintes eleitos em 1986 resolveram a questão, complicando-a a tal ponto que, hoje, ela nos parece insolúvel e destinada a fazer que o Território não seja mais o fundamento do Estado, sua condição de realidade.
A Constituição de 1988, ao contrário do que dizia o deputado Ulysses Guimarães, não é a “constituição cidadã”. Ela é, sim, a constituição da contradição em termos e, até certo ponto, é “anticidadã”, na medida em que a um tempo garante a liberdade de associar-se e obriga quem não se associou a contribuir para o sustento da associação à qual não se filiou. Veja-se, por exemplo, o que dispõem os artigos 5º nos incisos XVII e XX, e o artigo 8º, incisos I e II.
“Artigo 5º −
“XVII − é plena a liberdade de associação para fins lícitos, vedada a de caráter paramilitar;
“XX − ninguém poderá ser compelido a associar-se ou a permanecer associado”.
“Artigo 8º − É livre a associação profissional ou sindical, observado o seguinte:
“I − a lei não poderá exigir autorização do Estado para a fundação de sindicato, ressalvado o registro no órgão competente…” (portanto, o Governo, que, depois de 1988, negou vários registros);
“II − é vedada a criação de mais de uma organização sindical, em qualquer grau, representativa de categoria profissional ou econômica, na mesma base territorial (…) não podendo ser inferior à área de um Município”.
A contradição maior entre o artigo 5º e o 8º evidencia-se no inciso IV do artigo 8º. Ninguém é obrigado a associar-se. Mas todos são obrigados a pagar a contribuição fixada pelo sindicato da categoria para custear um sistema confederativo criado pela Constituição, além da contribuição fixada anteriormente em lei:
“Artigo 8º −
“Inciso IV – a assembléia geral fixará a contribuição que, em se tratando de categoria profissional, será descontada em folha, para custeio do sistema confederativo da representação sindical respectiva, independentemente da contribuição fixada em lei” (ou seja, o Imposto Sindical, correspondente a um dia do salário de cada trabalhador por ano. As “categorias econômicas”, isto é, os empresários, não estão contemplados neste inciso).
Este é um dos exemplos possíveis de como a Constituição é contraditória num campo da vida social da maior importância, pois é na relação de trabalho e na associação dela decorrente que se moldam muitas das representações coletivas.
No tocante aos índios, que é o que agora nos interessa de perto, o caso é mais grave.
Como na Constituição de 1891, a de 1988 não considera os índios cidadãos brasileiros:
“Artigo 12 − São brasileiros
“I − natos
“a) os nascidos na República Federativa do Brasil, ainda que de pais estrangeiros, desde que estes não estejam a serviço de seu país…”.
A Constituição de 1988 cuidará, no entanto, curiosamente, dos índios no Título VIII, “Da ordem social” (!), Capítulo VIII, artigos 231 e 232.
“Artigo 231 − São reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens.
“§ 1º − São terras tradicionalmente ocupadas pelos índios as por eles habitadas em caráter permanente, as utilizadas para suas atividades produtivas, as imprescindíveis à preservação dos recursos ambientais necessários a seu bem-estar e as necessárias à sua reprodução física e cultural, segundo seus usos, costumes e tradições.
“§ 2º − As terras tradicionalmente ocupadas pelos índios destinam-se à sua posse permanente, cabendo-lhes o usufruto exclusivo das riquezas do solo, dos rios e dos lagos nelas existentes”.
Que os índios não são considerados cidadãos brasileiros pode deduzir-se facilmente também do artigo 22 da Constituição de 1988:
“Artigo 22 − Compete privativamente à União legislar sobre:
“XIII − nacionalidade, cidadania e naturalizações;
“XIV − populações indígenas” (…).
É possível que se argumente que, por serem nascidos no Brasil, os índios são cidadãos. Nesse caso, estabelece-se claramente uma discriminação entre os não-índios e os índios, numa clara violação do artigo 3º da Constituição:
“Artigo 3º − Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil:
“IV − promover o bem estar de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminações”.
Isso por um lado. Por outro, ao estabelecer que os índios têm a “posse permanente” das terras que “tradicionalmente ocupam”, cria-se um novo tipo de Direito: o do Primeiro Ocupante. Os cidadãos brasileiros comuns podem ter a posse de um pedaço de terra (o usucapião) desde que a ocupem de boa fé por determinado tempo e paguem os impostos devidos. Os índios, como está dito na Carta de 1988, têm a posse permanente porque na terra se fixaram “tradicionalmente” — sem que haja um critério objetivo para dizer até onde se pode recuar no tempo para fixar a “tradição”. Esse tempo de recuo será fixado, assim, pela burocracia governamental, no caso a Funai, que não tem levado em conta, nas suas decisões, se os índios estão aculturados ou não.
Aliás, o progresso da Antropologia tem conduzido a que as antigas e tradicionais noções de aculturação e do “homem marginal” tenham desaparecido dos livros e comunicações científicas. Ao não termos um critério objetivo para determinar até onde recua a “tradição”, temos de fixar-nos no Direito do Primeiro Ocupante, pois os índios têm “direitos originários” decorrentes dessa ocupação. Com o que voltamos a Rousseau no “Discurso sobre a desigualdade” e a fundação da sociedade civil: os índios têm direito à terra por serem seu primeiro (ou segundo) ocupante!
O Direito do Primeiro Ocupante é-lhes reconhecido, mas não aos demais brasileiros — desde que consideremos, como não faz a Carta, que os índios são cidadãos, ainda que diferenciados não por serem “ingênuos” conforme dizia a Constituição de 1824, mas porque o constituinte assim o determinou sem maiores considerações sobre o Território. Mas são, essas, considerações que não dizem respeito ao que nos interessa.
O importante é voltar ao Território, e voltar a ele como o fundamento, a condição mesma de realidade do Estado.
Tal como farei no próximo artigo.
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