Já em Roma se dizia que o pretor não julga intenções. As palavras comunicam vontades, não intenções. Mas, por elas, é possível discernir tanto uma vontade quanto as intenções que a acompanham.
Voltemos ao Decreto 8.243.
As palavras dizem que os conselhos de políticas públicas são “instância colegiada temática permanente… de diálogo entre a sociedade civil e o governo” (art. 2º). Para desempenhar essa função devem observar “no mínimo, as seguintes diretrizes: I – presença de representantes eleitos ou indicados pela sociedade civil, preferencialmente de forma paritária em relação aos representantes governamentais, quando a natureza da representação o recomendar” (art. 10º). As “atribuições, competências e natureza” dos conselhos deverão ser definidas “com consulta prévia à sociedade civil” (art. 10º, II).
Assim, os conselhos dialogam com o governo como representantes da sociedade civil. Para que se organizem, devem consultar a sociedade civil, que definirá suas atribuições, competências e natureza… Se a sociedade civil é o “cidadão, os coletivos, os movimentos sociais institucionalizados ou não institucionalizados, suas redes e suas organizações” (art. 2º, I), como consultá-la para que novos conselhos se constituam e, mais importante, para que os “já constituídos” possam funcionar?
O “cidadão”, sendo “indivíduo” – N cidadãos serão um “movimento”… –, só poderá eleger como seu representante alguém de um “movimento social” ou de uma “organização”. Ou elegerá outro “cidadão” que pense como ele. Aurélio nos dirá que “institucionalizado” vem de “institucionalizar”: “Dar caráter de instituição”. Uma instituição é uma “associação ou organização de caráter social”. Como apenas os movimentos “institucionalizados” têm sua “organização”, os não institucionalizados devem escolher seu representante naqueles que estão institucionalizados. Donde se segue que apenas os movimentos sociais institucionalizados deverão estar, por sua organização, representados nos novos conselhos de políticas públicas… E que os conselhos já existentes deverão buscar sua legitimidade nesses movimentos ou organizações.
E, se entre as “diretrizes gerais da PNPS” estão a “valorização da educação para a cidadania ativa” (?) e a “ampliação dos mecanismos de controle social” (art. 3º, V e VII), vê-se, claramente expressa, a vontade que determinou a edição do D8243 – a vontade de poder.
Essa vontade vai além, com graves riscos para a unidade nacional. Se não bastasse a divisão do Brasil em “sociedadecivil” e os “outros”, a PNSP deverá, também, cuidar de garantir “direito à informação, à transparência e ao controle social nas ações públicas, com uso de linguagem simples e objetiva, consideradas as características e o idioma da população a que se dirige”! (art. 3º, IV). Segue-se que, nesse processo de “informação e controle”, haverá os “ilustrados” e os “simples” que desenvolverão sua própria linguagem com o auxílio da PNSP. Não necessitarão ler, escrever ou pensar em bom Português.
Orwell garantia o controle do partido reduzindo o Inglês a 500 palavras. O D8243 não se preocupa com isso; apenas consagra a linguagem reduzida dos “simples” para a comunicação com a sociedade civil… E brinca com as palavras portuguesas de uso corrente: democracia direta, participação social… tão ao gosto dos “ilustrados”.
A importância política do D8243 não está em sua possível inconstitucionalidade a ser discutida pelo Supremo ─ se houver alguma instituição que a ele recorra. Está em que, pela primeira vez, os que o redigiram colocam, com grande clareza, a luta política nos seus verdadeiros termos – como sendo a disputa entre concepções do mundo.
Os que combatem Gramsci e a ele atribuem a origem de todos nossos males deveriam lembrar-se do que ele escreveu: “As idéias e as opiniões não ‘nascem’ espontaneamente no cérebro de cada um; tiveram um centro de formação, de irradiação, de difusão, de persuasão, um grupo de homens ou mesmo uma individualidade singular que as elaborou e apresentou na forma política da atualidade”.
Dos liberais da República de 1891, os que se opõem ao D8243 herdaram o menosprezo pela organização. A crítica jurídico-formal ao Decreto não vem acompanhada de propostas de reforma das instituições políticas tendentes a adaptá-las à realidade “moderna” ─ reforma que clama por ser feita sob pena de o Estado ser definitivamente usurpado pelo Governo. Os críticos estão exaltados, mas se contentam com recitar as belas formas do Direito Constitucional e do Direito Civil, esquecidos de que é o Governo quem lhes dá vida e as transforma em realidade capaz de seduzir as massas. Estão, assim, em inferioridade estratégica ─ para desgraça do Estado brasileiro, para desgraça de todos nós.
Verifica-se que não há, opondo-se aos defensores do D8243, qualquer “Croce”, qualquer “individualidade singular” capaz de elaborar e apresentar “na forma política da atualidade” novas idéias, ou capaz de dar novas formas, novos conteúdos, conseqüência prática e coerência às idéias de democracia representativa com participação popular. E a discussão em torno da constitucionalidade ou não do D8243 apenas demonstra que os autores desse decreto estão em posição de superioridade estratégica: são um “centro de formação, de irradiação, de difusão, de persuasão” que abusa dos significados mais rasteiros da democracia e mais demagógicos da participação popular na formulação das políticas públicas.
Na luta política, os organizados valem mais que os não-organizados, e os mais organizados valem ainda mais que os organizados. Hoje, entre os organizados que elaboraram o D8243, há os que pretendem impor-se como mais organizados e controlar todos e quaisquer movimentos sociais.
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(publicado nesta data em “O Estado de S.Paulo”)
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