A NOVA FASE DA CRISE

Conferência proferida no Centro de Integração Escola-Empresa – CIEE  

 

 

     Creio que, inicialmente, deveria definir (ou seria melhor dizer explicar?) o que entendo pela crise brasileira. Só assim poderemos falar em nova fase dela.  

 

     Uma crise poderia ser definida como o descompasso entre um conjunto de leis e a realidade. Que vem a ser, da perspectiva em que nos colocamos, uma Constituição? Não é mera folha de papel em que escrevemos um grande número de direitos, ou direitos e deveres, e tentamos descrever como se organizará o Estado. Dessa última perspectiva, a Constituição é o organograma do Estado. É bem mais que isso, contudo: de fato, no momento em que escrevemos direitos e deveres e tentamos organizar o Estado, refletimos situações sociais tipicamente de dominação. Em outras palavras, aquilo que consideramos direitos espelha a posição que cada um de nós, e os grupos sociais a que pertencemos, pretende ocupar na hierarquia social. Essa hierarquia traduz o poder que cada grupo tem na Sociedade: uns são mais poderosos, no sentido de que têm mais autoridade, são mais ricos, recebem mais atenção dos indivíduos que integram a Sociedade e do Governo; outros não têm esse poder nem essa riqueza. A Constituição, pois, reflete os fatores reais de poder, isto é, quais são os grupos sociais que têm mais poder e recebem mais atenção dos Governos.  

 

     O que importa ter presente é que esse fato de refletir não se expressa com a clareza e a rudeza com que devo pôr as coisas: as Constituições espelham os fatores reais de poder, isto é, os grupos sociais que têm mais autoridade e prestígio junto ao Governo, mediante a inscrição no seu texto de alguns princípios básicos. Com isso quero dizer que a Constituição consagra alguns princípios que a Sociedade acredita deverem ser respeitados por todos para que a vida em sociedade possa dar-se sem crises, isto é, sem que a hierarquia social seja contestada em seus fundamentos.  

 

     Por crise, então, por enquanto, vamos entender aqueles momentos em que os princípios que fundamentam a hierarquia social começam a ser postos em dúvida e a Constituição escrita não reflete a nova situação que se está criando. Poderemos concluir essa parte introdutória dizendo que a crise, no Brasil, se manifesta no fato de que a Constituição votada em 1988 tem, até hoje, menos de 20 anos passados, 52 emendas.

 

     O fato de uma Constituição ter 52 emendas menos de 20 anos depois de sua promulgação indica claramente que havia um descompasso entre a realidade e o texto constitucional. Em outras palavras, que o constituinte de 1988 não levou em conta as transformações que se davam na realidade. Seja o fato de o organograma inicial do Estado não corresponder às exigências que as transformações sociais impunham à União, seja aquele outro de não refletir ele corretamente a articulação entre a União e os Estados federados, seja a relação de poder entre diferentes grupos sociais.  

 

     Feitas essas observações, podemos passar a outro ponto.

 

     A teoria política nos diz que os partidos traduzem interesses e determinadas concepções do mundo, umas diferentes de outras. Os interesses não são apenas materiais; conquistar um melhor status na Sociedade é um interesse que muitas vezes não tem relação com ganhos materiais. A defesa de princípios pode, no entanto, ser incluída também no campo dos interesses porque, sendo eles respeitados por todos ou por uma boa maioria na Sociedade, a posição social de quem os defende e, assim, os ganhos materiais que dela decorrem serão mantidos. Mais difícil é conceituar a concepção do mundo. Há quem prefira “visão do mundo” no lugar de “concepção do mundo”, porque até certo ponto a palavra “visão” traduz melhor a idéia que vem associada ao que os teóricos pretendem dizer, na medida em que não implica elaborações intelectuais. Cada um de nós vê o mundo de uma certa maneira. Isto é, tem uma idéia imediata de como o homem e a mulher se relacionam, do mesmo modo que ao ver uma igreja, de qualquer confissão, tem uma visão interior que lhe dirá se Deus existe ou não e de como deve fazer para chegar até Ele. Para não falar que cada um de nós vê na Empresa, qualquer que seja a posição que nela ocupa, como é a organização econômica. Cada um de nós vê essas coisas sem ter perfeita consciência de que as estamos vendo de um modo especial; é que mais sentimos do que vemos as formas em que a Sociedade se organiza em torno dessas relações todas: entre homem e mulher, os indivíduos e o mundo espiritual, todos diante da empresa.

 

     Os Partidos políticos, na teoria, deveriam traduzir essas visões do mundo. Evidentemente, cada um de nós terá suas lentes especiais para ver esse mundo, mas os Partidos deveriam ter a capacidade de fornecer a determinados grupos uma lente que a muitos satisfizesse, de modo a que pudessem se considerar membros da mesma organização e lutando pelas mesmas coisas. Ora, pergunto eu, os Partidos no Brasil atendem a esse mínimo que se espera deles?  

 

     A história do País desde 1945 vem demonstrar que não se pode dizer que os Partidos desempenhem esse papel. Hoje, quantos são? Mais de vinte. Quantos eram em 1964? Quatorze, que se dividiam em diferentes frentes parlamentares. O que diferenciava um de outro não era uma visão distinta de como o Estado deveria se comportar no tocante à organização econômica. Afinal, a União Democrática Nacional, que muitos estudiosos consideravam um partido reacionário e defensor dos interesses agrários, foi o Partido que deu a maior contribuição para que a Petrobrás, em 1953, obtivesse o monopólio do petróleo: prospecção, exploração, refino e transporte, disputando com empresas particulares no campo da venda ao público. Quando observamos o que se passou de 1945 até 1964, o que vemos é que, no fundamental da organização econômica, os Partidos todos concordavam. Até mesmo no que diz respeito à reforma agrária estavam de acordo: tanto assim que embora o problema já fosse sentido em 1945, pouco se fez nesse terreno porque os Partidos majoritários não quiseram e os governantes, muito menos. Não me refiro ao período Goulart, porque então a crise se havia instalado. Voltando ao que disse atrás, os Partidos não se diferenciavam no tocante aos interesses e também não tinham lentes muito diferentes para ver o Brasil e o mundo. O que os diferenciava um do outro era a idéia de como chegar ao poder e de como usufruir daquilo que se convencionou chamar de butim.

 

     A crise de 1964 não foi única no sentido de intervenção militar na vida política. Foi a última de um período de democracia formal. Em 1945, as Forças Armadas que haviam arquitetado o golpe de Estado de 1937, que levou ao Estado Novo com a ditadura de Getúlio Vargas, depuseram o ditador e permitiram que se realizassem as eleições para a Constituinte, que elaborou a Constituição de 1946. Em 1954, as chefias militares pediram a demissão do Presidente eleito, Getúlio Vargas, que se suicidou no dia 24 de agosto. Em 1955, a pretexto de evitar um golpe que impediria a posse de Juscelino Kubitschek, parte considerável do Exército e da FAB depuseram dois Presidentes em 10 dias, instaurando o estado de sítio com todas as garantias constitucionais suspensas. Notem que, nesse episódio, foram aplaudidas por todos os Partidos políticos que apoiavam JK. Em 1961, Jânio Quadros renunciou e tendo os Ministros militares decidido que Goulart, vice-Presidente, não deveria assumir a Presidência em virtude das suas ligações com o Partido Comunista, quase chegamos à guerra civil. O Parlamentarismo evitou que as forças do Exército, divididas, se confrontassem. Mas não resolveu a crise latente, que desembocou em 1964.  

 

     Não é meu objetivo discutir 1964 e o que veio depois: gostaria apenas de salientar que o Governo Castelo Branco manteve praticamente intocada a estrutura econômica e fez o que os anteriores não tinham tido coragem ou decisão de fazer: combateu a inflação e buscou racionalizar o sistema financeiro, criando o Banco Central; fez aprovar o Estatuto do Trabalhador Rural que mudou fundamentalmente as relações no campo e estabeleceu o princípio de que terras desapropriadas para reforma agrária poderiam ser pagas em título da dívida pública. Um grande passo no sentido da reforma agrária. Fez mais: manteve a Petrobrás e a estrutura sindical que vinha do Estado Novo.  

 

     Contra ele, diz-se que cassou mandatos para assegurar a vitória de suas idéias e que para tanto dissolveu os Partidos e criou dois. De fato, cassou mandatos, e dissolveu os Partidos, porém, apenas na aparência: os dois que foram criados, ARENA e MDB, na realidade eram seis, porque havia o instituto da sublegenda que permitiu que os interesses pessoais ou de grupos se manifestassem no ventre dos dois Partidos.  

 

     Com freqüência nos esquecemos de que em 1966 foi votada uma nova Constituição, que entrou em vigor em março de 1967. É curioso observar que não somos apenas nós que nos esquecemos dela; durante o ano e meio em que ela vigorou plenamente, tinha-se a impressão de que não eram poucos os grupos que, na Sociedade e no Estado, desejavam agir como se ela não existisse. Não falo dos movimentos armados, urbanos e depois rurais. Refiro-me às grandes agitações estudantis e ao movimento que, nos quartéis, em reação à agitação estudantil e ao início da contestação armada, acabou conduzindo ao Ato Institucional nº 5 que praticamente derrogou a Constituição.  

 

     Aqueles que analisam o período 1964/1985 têm a tendência a fixar-se nos aspectos negativos dele, especialmente na repressão, esquecendo o quanto a economia cresceu. Mais importante, o quanto se fez para fixar as bases indispensáveis a um desenvolvimento sustentável, aumentando a oferta de energia elétrica, construindo aeroportos e modernizando o sistema de telecomunicações. Esse não é meu tema; se aludo ao que se fez em prol do desenvolvimento é para que não se tenha uma falsa idéia do processo histórico. Essa falsa idéia já está presente, para não dizer consagrada, quando se afirma que o período do autoritarismo terminou em 1985. A rigor, e os fatos estão aí para provar, os Atos Institucionais perderam sua vigência em janeiro de 1979 e foi durante o Governo Figueiredo que o Congresso votou importantes medidas institucionais, depois rejeitadas pela Constituinte, como, por exemplo, o voto distrital misto, que agora é considerado a salvação da democracia. A crítica de um processo histórico não pode omitir fatos relevantes sob pena de não conhecermos a história. O Governo Figueiredo, como, aliás, os dois últimos meses do Governo Geisel, transcorreu sob o império da Constituição de 1967 emendada em 1969. Constituição centralizadora e, para muitos, reforçando o Poder Executivo — mas preservando as liberdades democráticas e dando inteira liberdade aos Tribunais, com o restabelecimento do habeas corpus.  

 

     O que nos interessa assinalar, agora, é que a crise brasileira não se resolveu no período dos Governos que resultaram do movimento de 1964 nem depois dele. Pelo contrário, de 1985 em diante apenas tendeu a agravar-se.

 

     A crise pode ser vista de diferentes pontos de vista: o sociológico, o econômico e o político-institucional.  

 

     A crise é maior e permanente quando examinamos a situação brasileira do ponto de vista sociológico. Que nos diz o observador sociólogo? Sua primeira preocupação é com a demografia. Nós não temos o costume de pensar no que significa o aumento da população brasileira de 1950 em diante. Fixemo-nos um instante em alguns números, redondos para facilitar o raciocínio:  

 

          1950 — 50 milhões de habitantes

          1970 — 90 milhões de habitantes

          1991 — 150 milhões de habitantes

          2001 — 185 milhões de habitantes

 

     Observem que em 450 anos (do descobrimento a 1950) a população brasileira cresceu de alguns milhares para 50 milhões. Mas em 51 anos passou de 50 milhões para 185 milhões, tendo crescido a uma taxa média de quase 3% ao ano até o fim da década de 1980. Esse crescimento rápido teria menor significação sociológica isto é, social e política — se a população tivesse se espalhado pelo território imenso. Isso não aconteceu: o processo a que assistimos foi o da concentração populacional em sete regiões metropolitanas, provocando um inchaço urbano para o qual os Governos não souberam dar resposta. O resultado do crescimento demográfico e da imprevidência ou incapacidade administrativa dos Governos foi o que temos diante dos olhos: um sistema de saúde que não atende à população pobre e remediada; um sistema escolar em processo falimentar acelerado, transportes insuficientes, transformando a vida dos trabalhadores num purgatório cotidiano, ausência de moradias decentes e proliferação das favelas como cogumelos no meio urbano, segurança ineficiente, quando não nula. Uma das conseqüências dessa desordem urbana foi o enfraquecimento, quando não a destruição dos laços familiares com os resultados desagregadores da estrutura da personalidade. Destruída a solidariedade familiar num processo em que as estruturas sociais e políticas não respondem às aspirações da maioria da população, foi fácil o tráfico e o crime de colarinho branco se coligarem e, organizados, penetrarem nos desvãos da Sociedade para firmar posição até mesmo dentro de órgãos governamentais.  

 

     Do ponto de vista econômico, o processo é, podemos dizer, de dupla face: um crescimento econômico sem uma melhor distribuição de renda, quando não provocando nos últimos anos uma perda do poder aquisitivo da classe média, a inflação. O crescimento econômico criou a ilusão do consumismo, expresso nas vendas a prestação. Recordo-me de que, nos anos 1960, os economistas do jornal “O Estado de S. Paulo”, em que trabalhava, insistiam em que se deveria estabelecer como norma legal que a venda a prestação só deveria ser possível se houvesse uma entrada substancial de 20% a 30% o valor venal. Seria a maneira de incentivar a poupança e, em decorrência, o investimento, sem o qual o progresso econômico não seria auto-sustentável. É preciso ter em mente, a esse respeito, que a modernização do sistema de telecomunicações e mesmo a maior oferta de energia elétrica só foi possível porque os Governos do período1964/1979 instituíram o que se pode chamar de poupança forçada: o telefone e até a ligação elétrica, em certos casos, pressupunha que os pretendentes a esses serviços deveriam pagar, antecipadamente, em 24 prestações, o que ainda não tinham para usar. Foi a maneira, forçada, de acumular e não onerar os cofres públicos. E cabe lembrar que a recessão de 1966 pôde ser vencida sem maiores desgastes sociais e políticos porque se inventou o sistema de consórcio, que nada mais é que uma poupança forçada. O alto consumo, permitido pelo sistema de vendas a prestação, dando-se num clima inflacionário, levou a que se perdesse a idéia do valor das coisas materiais que se adquiriam; passamos saber o preço das coisas, mas o valor de nenhuma delas. Porque o valor delas não nos interessava; o que contava era possuí-las.

 

     Não se tem insistido e esclarecido suficientemente sobre os efeitos desastrosos da inflação — que no Governo Sarney, convém lembrar, chegou a 80% ao mês. Contribuiu para que a desagregação da solidariedade familiar se desse com maior rapidez e foi o motor da grande transformação que se deu no campo dos valores sociais e morais. Foi como se o dito de Rousseau, traçando o caminho que levaria à desigualdade, se tornasse realidade: a estima pública passou a ter um preço — e nós todos o pagamos, custasse o que custasse em termos de negação dos valores que tinham garantido a articulação da Sociedade até o momento do grande crescimento demográfico, da urbanização tresloucada e da inflação sem limites.  

 

     Juntemos todos esses fatores negativos. Qual o resultado dessa soma que é aritmética e não algébrica? O descrédito no Governo, dado — e com razão — como responsável pelo não atendimento das necessidades criadas pelo aumento demográfico e pela concentração populacional nas regiões metropolitanas, pela inflação e pela falta de segurança. O que não foi percebido — e ainda agora não se percebe em toda a extensão — é que o descrédito no Governo levou ao descrédito na ação do Estado e, depois, à descrença no Estado, cuja idéia tende a esfumar-se. Esvaece no sentido de que não nos consideramos parte do Estado, embora reclamemos a cada instante nossos direitos de cidadãos. Esta é a nova fase da crise brasileira: o Estado entrou em crise na medida em que o Governo não atende mais às necessidades da população e ela não se sente como parte integrante, para não dizer fundante, do Estado. Ao mesmo tempo, e por isso, ele se distanciou completamente da Sociedade e, para ela, o Estado existe apenas em seu aspecto coercitivo e fiscal.  

 

     Se tivermos presente que a ligação primeira de um povo não é com o Estado, mas com o Território e depois com o Governo, torna-se mais fácil compreender o que pretendo dizer. O Estado é abstrato no sentido de que não se pode visualizá-lo ou tocá-lo, ao contrário do que podemos fazer com a terra que temos como nossa, porque habitamos seu chão, quando não o transformamos para nossa sobrevivência. O Estado é construção teórica. O Território é dado de fato concreto, pois é nele que se vive e que se morre (e por ele se mata, também, convém não esquecer, para fazê-lo nosso). E o Governo, em nome do Estado, é que nos garante a terra que é nossa e cria as condições para que possamos viver na Sociedade com o mínimo de conflitos em torno dos princípios em nome dos quais se faz uma Constituição.  

 

     Avançaria para dizer que, enquanto o Território não integra como elemento fundante aquilo que alguns chamam de Vontade Nacional, o Estado continua sendo uma abstração para o Povo, que dele só conhece o Governo. Ora, quando a idéia de Governo empalidece porque ele está ausente — como é o caso em muitas regiões, se não em todo o país — a idéia de Território também tende a desaparecer e a possibilidade da idéia do Estado com ela. Um dos indícios da crise atual é que são muitos os que, jovens ou adultos, não consideram o Território como elemento importante em sua vida. Sabem que a “Casa” é sua, mas não são capazes de associar a idéia da “Casa” à de Nação, de Brasil, que tem como “sua Casa” um território imenso e desconhecido.  

 

     No instante em que a idéia de Território e de Estado começa a desaparecer, a solidariedade social tende a desaparecer. É preciso não nos iludirmos com que a idéia do território estatal — não do pedaço de terra de cada um — impõe-se como um dado ao povo. O processo de criação da Vontade Nacional, estreitamente associada ao Território, é mais complexo do que desejariam os que fazem dele sua bandeira de combate contra o estrangeiro. A relação entre Território e Estado é extremamente complexa e depende, antes que tudo, de que os indivíduos que compõem o povo sejam capazes de vencer os obstáculos que as vias de comunicação deficientes ou a ausência delas colocam para que as distâncias que isolam os núcleos populacionais sejam superadas. Se admitirmos, para argumentar, que, em suas relações sociais, os indivíduos se guiam, mentalmente, pelo território que ocupam ou até onde alcançam suas atividades econômicas e suas perspectivas afetivas de futuro individual ou coletivo, veremos que num país da dimensão do Brasil, continental e com as deficiências de infra-estruturas que são notórias, não se deve, a priori, partir do pressuposto de que, a formar a Vontade Nacional, esteja presente a idéia do território estatal e nacional. A história nos dá suficientes lições de que houve momentos em que, levantando-se contra o Estado, Reino Unido ou Império, o Território que as revoluções pretendiam abranger era sempre menor do que aquele que o Estado, primeiro português, depois brasileiro, delimitara juridicamente – 1817, 1824, 1835, 1842. E, como querem alguns, 1932 na República.

 

     Gostaria de partir, dessas idéias de Território e Vontade Nacional para uma outra: a da Política, com P maiúsculo, que está desaparecendo e sendo substituída ou pela pornografia da impunidade de que gozam os grandes comparsas do crime de colarinho branco e do crime organizado, ou pela falta de pudor generalizado na classe política que abusa dos poderes que os cidadãos delegaram a seus membros para proteger-se do rigor da lei, criando foro privilegiado para quantos cometerem crime de improbidade administrativa. A Política com P maiúsculo, a Grande Política ou Grande Estratégia, como querem alguns, só pode existir quando há quem se proponha a construir uma nova Sociedade em que o Estado se apresente com face diversa daquela com que aparece hoje. Ora,  

 

          a menos que estejamos dispostos a caminhar para a absoluta anomia estatal, isto é, para o desaparecimento do Estado enquanto associação necessariamente de caráter coativo;

 

          a menos que desejemos uma associação anárquica em que o território nacional se subdividirá em quantos pequenos territórios os poderes oligárquicos desejarem;  

 

          a menos que estejamos dispostos a aceitar a quebra definitiva da solidariedade nacional,  

 

é indispensável que recuperemos a Política. A Constituição, por mais perfeita que seja, por mais que traduza as relações entre os diferentes fatores de poder, não pode superar, letra escrita tão só, o descompasso entre a Sociedade que caminha para a anomia na ausência de Autoridade no seu sentido mais amplo, e um Governo que não está atento para os reais problemas do País, o principal dos quais é o lento desaparecimento do Estado.

 

     A crise que vivemos hoje não é exatamente de caráter econômico. A de segurança, resolve-se, desde que haja Governo que esteja disposto a ir a fundo na busca de suas causas primeiras e esteja disposto a enfrentar o crime organizado em todas as suas modalidades. Desde, também, que a classe política não dê o exemplo da associação com a impunidade e não contribua para confundi-la combatendo a Política como se combatesse a impunidade. A crise é mais profunda. Tem todos os aspectos que apontei mais este agora, final e decisivo, que é a crise do Estado. Que, com simplicidade, poderia ser definida como sendo a crise que decorre do fato, social e coletivo, de que está desaparecendo, talvez mais rapidamente do que se poderia esperar, a idéia da solidariedade nacional, que se traduz na vontade de reconstruir o Estado. Essa idéia, a da solidariedade nacional, é impossível sem a idéia de Estado nacional, e vem sendo abalada pela inação de sucessivos Governos e pelo desaparecimento lento, mas trágico em suas conseqüências, da Grande Política, isto é, da Vontade Nacional de construir a Pátria Grande com que se sonhou no passado.  

 

     Muito obrigado.

 

  

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