OESP
A melhor defesa – prestando atenção na Rússia – contra o vaticínio dos que já traçam o panorama final da crise global do sistema é continuar pensando como Camus: “O triste é que se morre e não se é feliz.” Sei que é um absurdo pensar dessa maneira – mas, se cito um filósofo do Absurdo, é porque o absurdo não está em pensar assim, mas na situação que vivemos.
Bem pesadas as coisas, o absurdo começou quando não se meditou no significado profundo (pensando em termos de psicologia coletiva) daquela procissão que se formou depois da derrota do golpe militar contra Gorbachev – com o qual os Generais que sonhavam com a era Brezhnev liquidaram a União Soviética. Que havia de extraordinário na procissão? Em primeiro lugar, ser uma procissão, em que fiéis (os havia, apesar de todo o esforço de Stalin, da GPU e da KGB) não hesitaram em carregar cruzes. Depois, o fato de haver uma bandeira que não era a da URSS, mas a da Rússia Czarista. Era a demonstração, para os Generais golpistas e também para Yeltsin, montado num tanque para defender a democracia (?), de que a Santa Mãe Rússia, talvez mesmo a Terceira Roma, não havia morrido apesar dos 70 anos de regime comunista. Foram poucos, muito poucos, os que atentaram para o simbolismo da procissão. A maioria continuou a pensar, como vinha fazendo desde 1989, quando o Muro de Berlim foi destruído, que a História tinha acabado e o capitalismo triunfaria por toda parte. O resultado foi que criticaram muito do que aconteceu depois, mas não viram outro jeito se não transformar o apparetchik Yeltsin em líder democrata e salvador do capitalismo na Rússia. Os mais espertos, os que não têm obrigação de escrever livros ou fazer teorias, esses preferiram jogar a roleta-russa do mercado especulativo. Agora, os que não especularam não sabem o que fazer, pois se convenceram de que, quanto mais dinheiro entrar, mais dinheiro sairá literalmente pelo ladrão. Não sabem o que fazer, também, porque começaram a pensar que o poder nuclear da Rússia continua tão destruidor quanto o da URSS e, pior, que os russos estão de tal maneira perdidos que podem sair por aí vendendo foguetes e ogivas nucleares para quem quiser comprar. A Coréia do Norte, essa não impressiona ninguém – exceto os japoneses, é evidente.
Os que descrevem a situação na Rússia parece não se darem conta de que alguma coisa deve passar-se na consciência coletiva daquele povo. A descrição que fazem da situação – salários não pagos há meses, escambo, máfias, corrupção, cada um vendendo seus pertences para sobreviver – não leva em conta que, se isso é assim desde 1991, os governos das diferentes regiões deveriam estar abrindo valas comuns para enterrar os mortos de fome. De fome, morreu-se em 1927 na Ucrânia, quando Stalin decretou a coletivização forçada. Não há valas comuns na Rússia. Apenas tristeza à espera da morte. É isso que me espanta.
Na Santa Mãe Rússia, também havia apenas tristeza e ninguém esperava que houvesse o “domingo sangrento”, em cuja comemoração irrompeu a revolução de 1905, que permitiu a Trotsky, exilado na Finlândia, escrever uma bela passagem: “Nevava copiosamente. Um sudário de neve envolvia os pinheiros. Ao anoitecer, um dia, o carteiro trouxe um volumoso pacote de jornais de Petersburgo. Era como se um furacão furioso se precipitasse dentro do quarto pela janela aberta. A greve avançava, estendia-se, se apoderava das cidades uma após outra. A revolução navegava a velas enfunadas.” Partiu para Petersburgo e foi Presidente do soviet.
Ninguém sabe o que se passa na consciência coletiva desse povo triste, que vive o absurdo. Como ninguém sabia o que se passava nela quando a neve cobria os pinheiros, como um sudário.
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