A prosseguir no caminho aberto pelos artigos anteriores, eu deveria agora dizer da Política Externa do Brasil Grande com relação aos EUA. Houve, porém, quem se queixasse da falta de exemplos concretos a ilustrar e fundamentar as sugestões para uma nova Política Externa brasileira voltada às Américas. Li a queixa e me lembrei de notícia publicada por O Estado em 29/01 sobre o encontro dos Chanceleres do Brasil e da Venezuela.
A informação do que se decidiu nesse encontro exemplifica a fragilidade da posição brasileira perante o “bolivarianismo”. É posição que não pode permanecer como linha mestra de uma Política Externa de potência que pretenda – supõe-se – ser levada a sério pelo mundo.
Cáspite! Fazer um acordo com um país em crise mais grave do que a que estamos atravessando para tirá-lo de seus apertos é correr o risco de – aí, sim – internacionalizar as “pedaladas”, é querer comprometer nossas inteligências, inclusive as do “Conselhão” e é fazer das Chancelaria e dos Ministérios da Economia e da Defesa de vizinhos elementos ativos na solução ou no agravamento de questões que são exclusivamente brasileiras.
Pensando no leitor que reclamou da falta de exemplos, sugiro-lhe esboçar uma cena que pareceria surrealista: no Itamaraty, funcionários de carreira seriam chamados a comentar essa notícia, servindo sua apreciação de critério para sua promoção e sua remoção de Dakar, dando-lhes acesso ao Circuito Elizabeth Arden.
A notícia não nos irrita – ela nos espanta ao informar que o Brasil deve respeitar, em suas relações com a Venezuela, não a tradição jus-política ocidental, mas o Estado de Direito tal como caracterizado pela Constituição e as Leis venezuelanas. O tom dessa declaração faz temer que a prática diplomática tenha sugerido que o que mereceu uma “advertência séria” – como proclamava a Agência Nova China quando as relações com os EUA eram extremamente tensas pela crise de Quemoy e Matsu – fosse substituído por uma afirmação retumbante de reconhecimento de que princípios democráticos, como os que se ensinam em Escolas de Diplomacia, inspiram aquele Governo “bolivariano”.
A notícia nos deixa perplexos. Pois nos informa ainda que, embora reconheça que tem uma dívida com empresas privadas brasileiras que soma 2 bilhões de dólares, Caracas não tem idéia de como saldá-la, diz que, na reunião com sua colega, nosso Chanceler considerou esse assunto como de menor importância, tanto assim que doravante cuidará de “retomar, expandir e diversificar” o fluxo comercial entre os dois países. E permite que se subentenda que Maduro comprará suficientes produtos farmacêuticos, alimentícios e de higiene graças a vultosos empréstimos concedidos pelo BNDES. O que justifica que a Chanceler venezuelana tenha dito que o Brasil tem importante “papel estratégico” na região (refere-se à Calha Norte?), inspirador de “um momento de esperança em um futuro de melhorias e enriquecimento”.
O que hoje se chama “bolivarianismo” pouco ou nada tem a ver com as idéias de Bolívar que, ao serem formuladas, também visavam a enfrentar o Império brasileiro. Esse projeto “bolivariano” é, na verdade, um conjunto de políticas internas, muitas vezes pouco democráticas, idealizadas por Chávez para neutralizar amplos setores da dita sociedade civil fundada no petróleo. Embora tenha a “federação latino-americana” como indispensável para combater a influência dos EUA.
Se esse chamado “bolivarianismo” é uma ameaça, ainda que futura, à influência política e aos atuais interesses econômicos dos EUA, com redobrado interesse o Itamaraty deverá acompanhar qualquer esforço norte-americano de mais impor-se no Cone Sul repesando a importância estratégica do Brasil. Nada justificará, portanto, que, enquanto os EUA preocupam-se com o que deveria ser, tal como um dia já foi, um objeto privilegiado de nossa atenção, comprometamo-nos, ainda que a custa de agravar nosso descrédito e nossa própria crise interna, com tentar salvar a economia e o governo venezuelanos.
Para a Presidente do Brasil e sua Chancelaria, essa iniciativa poderá ser exaltada por ser considerada como a ressurreição de um brizolismo fofo. Ao considerar a obviedade de que “é das conjunturas difíceis que surgem importantes consequências” (como afirmou a Chanceler venezuelana), os países sul-americanos, inclusive Uruguai, Argentina e, especialmente, Chile, hão de reconhecê-la como um esforço mal fundado para, sem qualquer apoio nos fatos da Economia e da Política internacionais, reforçar o que se conhece como “bolivarianismo”. Para esses países todos, o apoio de Washington valerá muito mais do que o de qualquer país mergulhado em dívidas que só tendem a se avolumar sem que se lhes tenha, até o momento, encontrado qualquer solução viável.
Washington, aliás, pelo que se pôde ler naquele mesmo dia 29, pretende estreitar significativamente seus laços com Uruguai e Argentina – o sentido da visita de um funcionário do alto escalão do Departamento de Estado a esses países é claro e um só. Pouco falta para que incluam o Chile, redesenhando o Cone Sul e, nele, redefinindo a importância estratégica do Brasil.
Creio que a sessão que nos parecerá surrealista deixa evidentes os riscos de uma opção diplomático-comercial e política empenhada em resolver qualquer crise interna ou regional transformando-a em assunto interamericano, mas inspirada na intenção de excluir os EUA de qualquer solução. O que é pura bravata. Nem Brizola ousaria tanto!
Se um candidato a promoção no Itamaraty, porém, considerasse que nosso papel estratégico deveria inspirar política diferente da ditada pelo Planalto, se não o seu avesso, seria reprovado para sempre, ainda que a divergência atendesse a uma visão estratégica mais ampla.
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