ATO IV {27/3/2004}
Cena I
{A sala do Tribunal está às escuras. Ouve-se ao fundo uma ária da Aída: Ritorna vincitore. Ao fundo da tribuna da Defesa, vêem-se gráficos e mais gráficos, tomando quase todo o espaço. Na tribuna da Acusação há três poltronas, não mais apenas as duas que eram comuns desde a saída de Inácio. O trono de Pedro está ladeado por dois tronos menores, menos imponentes. Um deles tinha servido, nas sessões anteriores, para que Lusbel tomasse assento. A música mal se ouve, mas, de repente, a sala é invadida pelo final do Crepúsculo dos Deuses em alto volume. Entram Saint-Just, Maquiavel e Inácio. Alguns minutos se passam enquanto os três confabulam. Finalmente, Pedro entra acompanhado de Lusbel e, para surpresa da Acusação, por Richelieu. Outros minutos mais transcorrem e a tribuna da Defesa continua vaga. Pedro se impacienta. Lusbel sorri, Richelieu folheia um livro. A música se extingue. Silêncio no Tribunal. Finalmente, com muito atraso, entram, esbaforidos, Vichinsky, Talleyrand e Schmitt}
PEDRO — Onde haveis andado, senhores, que tanto haveis feito o Tribunal vos esperar, ao risco de termos de suspender a sessão?
VICHINSKY — Humildemente… {Maquiavel dá uma gargalhada}pedimos que nos desculpeis. Mas estivemos em Campinas, primeiro, depois em Santo André, finalmente no Rio de Janeiro com uma passagem por Brasília. Quando quisemos retornar a nosso posto, aqui, em vossa companhia, a greve da Polícia Federal no Brasil nos atrasou. Perdemos o primeiro e o segundo comboios que, aliás, para vosso regozijo, vinham lotados. Perdoai-nos.
MAQUIAVEL — Ah! Então o Estado brasileiro está mesmo em crise? Quando a Polícia faz greve e o Governo deixa que ela prossiga por tanto tempo…
SCHMITT — Protesto! O Secretário não está inscrito para falar. A sessão é da Defesa!
PEDRO {voltando-se para Maquiavel} — Comportai-vos ou ordenarei aos meirinhos que vos retirem da sala. {voltando-se para a tribuna da Defesa}Quem de vós falará primeiro?
{Schmitt se adianta}
SCHMITT — Com vossa permissão, eu, Defensor Público.
PEDRO — Falai, então, que a sessão já está com grande atraso. Preciso, logo depois, ir até a Estação da Glória para receber os bem-aventurados. Serão algumas léguas a subir…
SCHMITT{pigarreia, apanha um bloco de anotações e começa}— Até agora, São Pedro, a nobre Acusação se limitou a fazer acusações genéricas e sem provas. Acusou o Governo Lula da Silva de haver matado a esperança do povo humilde que o elegeu, mas não apresentou qualquer evidência que pudesse levar este Tribunal a emitir um juízo bem fundamentado…
INÁCIO — Freiherr Schmitt, estais escondendo os fatos. Haveis visto, por acaso, as últimas pesquisas de opinião que mostram como a popularidade do Governo e até a do Presidente estão em constante baixa?
SCHMITT {irônico} — O valente fidalgo parece viver no passado. Longe estão os dias em que as pesquisas diziam mal do Governo. E me permito dizer-vos, espanhol, que Aznar confiava em pesquisa e deu no que deu. Continuo, se me permitis. Reitero que a Acusação não trouxe um único fato. É preciso que Messer Maquiavel, o venerável Inácio e o cidadão Saint-Just aprendam de uma vez por todas que Tribunal algum pode condenar sem haver provas suficientes que demonstrem que o réu cometeu crimes…
SAINT JUST — Ora! Quereis agora, vós, ensinar-nos as coisas mais comezinhas do Direito Penal liberal? Possivelmente vosso comparsa…
PEDRO {erguendo a voz}—Exijo respeito ao Tribunal e à Defesa. Não permitirei o emprego de palavras menos nobres. Calai-vos, que a palavra está com Freiherr Schmitt!
{Saint-Just senta-se, demonstrando irritação. Inácio acalma-o}
SCHMITT — Era a Imprensa que nos dizia que o povo humilde perdera sua esperança. E quem financiava, então, as pesquisas de opinião? Os patrões, de diversos ramos de atividade. Será possível que a Acusação confie nelas, quando se sabe, como disse o Presidente, que os conservadores estavam se arregimentando? O Tribunal deveria comparecer às reuniões a que vai o Presidente para ver o entusiasmo do povo. E que deseja a Acusação? Que, em oito anos, menos até, consertem-se todos os erros que poderiam ter tido início de correção nos oito anos anteriores, durante os quais nada se fez para minorar a condição do povo? Quem deveria estar sendo julgado, aqui de agora, deveria ser o Governo de Fernando, o Segundo, que permitiu, que nada fez para impedir que se chegasse a essa situação. Cuidou de produzir estatísticas para a ONU, a UNESCO e não sei quantas mais organizações internacionais, sem se preocupar em verificar se elas espelhavam a dura realidade da vida de cada um…
MAQUIAVEL {ergue-se, a voz embargada pela emoção} — Protesto! O nobre Defensor Público está pretendendo desviar a atenção do Tribunal, trazendo à colação problemas outros. O Governo que está sendo julgado, por determinação do Senhor, é o de Luís Inácio Lula da Silva. O de Fernando Henrique Cardoso não está em causa.
TALLEYRAND — É que o Senhor, lembrando-se de que esse deixou entrever que não acreditava Nele, já conversou com Lusbel.
PEDRO — O nobre Bispo deveria saber que um dos atributos do Senhor é Sua Misericórdia infinita. O nobre Bispo e Chanceler de Napoleão sabe que disse uma blasfêmia. Acolho o protesto da Acusação. Que o Defensor Público se atenha ao que está em pauta.
INÁCIO — O camarada Vichinsky sorri. Parece lamentar que este seja um tribunal democrático. Nos processos de Moscou não havia esta liberdade de opinião.
VICHINSKY {sorrindo} — Nem nos tempos da Contra-Reforma, Santo Inácio.
{É a vez de Lusbel gargalhar. Todos se voltam para ele e parecem tomar consciência de algo muito sério. A atmosfera do Tribunal transforma-se, talvez porque se ouve uma ária de Ifigênia em Áulide}
SCHMITT — Do que mais acusam o Governo? De seguir uma política econômica diferente da que preconizou durante anos? Sem querer voltar ao que Pedro proibiu dizer, lembro que é a política do Governo anterior, que não está em causa neste momento {como se Schmitt quisesse sublinhar essas palavras}, mas que poderá ser chamado às falas a qualquer instante. Li atentamente as propostas que a Acusação fez para resolver o problema da dívida pública. Ela se esquece do que seja a natureza humana, que se guia sempre pela cobiça — e me estranha que assim proceda, quando o nobre cavaleiro espanhol é um entendido nessas coisas. Além do que parecem não saber, os três que se voltam contra o Governo Lula da Silva como se fossem uma matilha à procura da caça…
PEDRO {bradando}—Herr Schmitt! Exijo que retireis essas expressões!
SCHMITT {impassível} — Desculpe-me. Retiro-as. A Acusação parece esquecer que qualquer medida que rompesse os contratos com aqueles que tomam seus títulos, ajudando a pagar os gastos do Tesouro, implicaria na desgraça desse povo que ela diz defender. Não os humildes, cuja dignidade procuramos resgatar, mas a classe média, que a Acusação parece defender. Os Bancos, permiti-me dizer, têm muito dinheiro aplicado em títulos públicos, mas não sofreriam como os cidadãos de classe média que participam destes ou daqueles fundos. Sabemos que os banqueiros são criaturas muito espertas e que se protegem e cuidam de defender seu rico dinheiro. Mas temos de pensar no povo. E pensamos {aponta para um gráfico em powerpoint}. Vede aqui estatísticas, que são mais confiáveis do que as que os Institutos de Pesquisa fornecem à Imprensa. Lembremo-nos de que a Imprensa bate às portas do BNDES para salvar-se da crise em que se meteu durante os últimos oito anos. Essas estatísticas retratam melhor a realidade, quando mais não seja, porque são oficiais…
MAQUIAVEL — Quereis dizer-nos que, por ser Governo, ele só fala a verdade? Mas então Aznar, vosso exemplo, disse a verdade quando atribuiu à ETA o atentado de Madri, não pensais assim?
SCHMITT — Há de haver uma verdade que oriente os cidadãos. E a do Governo, que representa a maioria esmagadora do povo, é fonte mais segura de que os juízos são corretos do que a da Imprensa, que representa apenas o interesse de seus proprietários. Vede as estatísticas: as pessoas que foram atendidas pela Bolsa-Família, o dinheiro do Fundo de Amparo ao Trabalhador (FAT) que foi destinado a tantas iniciativas para minorar o sofrimento de tantos…
INÁCIO {suavemente} — Curiosa a atitude deste Governo, que até neste particular segue as políticas do anterior. O dinheiro do FAT serve para tudo, menos para criar o primeiro emprego…
SCHMITT — Enganai-vos ao dar ouvidos ao que a Imprensa noticiou. Já somam mais de um milhão os empregos criados, e o dinheiro posto à disposição do programa permitirá que neste ano centenas de jovens consigam trabalhar.
SAINT–JUST — Pensai, Freiherr Schmitt, que o programa Primeiro Emprego está criando ajudantes de cozinha. Inclusive o Exército Brasileiro se empenha em formá-los. Mas, e os jovens que se formam nas Universidades privadas ou oficiais? Estes não têm oportunidade sequer de encontrar um estágio e, no entanto, são jovens que poderiam dar sua contribuição à economia com mais empenho — e não apenas à economia, mas a toda a sociedade — que estes humildes que merecem trabalhar, sem dúvida. Quando a Universidade deixará de jogar, esta a expressão, mão de obra qualificada num mercado estagnado, tão estagnado e poluído como está o rio Pinheiros, do qual ninguém cuida?
SCHMITT {esbravejando} — Elitista! Gostaria de dizer que ser chamado de Barão muito me desagrada. O Pinheiros, cidadão Saint-Just, é de responsabilidade do Governo social-democrata de São Paulo. Quanto aos universitários, a economia vai crescer 5% a 6% em 2010 e muitos, muitos mesmo, encontrarão emprego. Mas, continuo: e os programas de integração física da América do Sul? Quando começarem a ser postos em prática — e tudo indica que será em breve — quantos empregos serão criados? Quanto crescerá a economia? {faz uma pausa, ouve Talleyrand dizer qualquer coisa e prossegue} Meu nobre colega quer falar. Cedo-lhe a palavra.
TALLEYRAND {ajustando a peruca, dirige-se a Pedro} — Vossa Santidade deve ter notado como a Acusação procura interromper a Defesa. Reconheço que lhe assiste o direito de protestar contra o que lhe parece ser contrário às normas de procedimento. Mas os apartes, as interrupções sem sentido, tudo isso perturba o raciocínio da Defesa — não que diga com isso que o cidadão Schmitt não se conduziu com brilho — e impede que o Tribunal forme um juízo claro do que está em pauta. Pediria que Vossa Santidade determinasse à Acusação que se ativesse ao que dispõe o regimento interno.
{Vichinsky aplaude. Maquiavel ensaia dizer qualquer coisa, mas Pedro o interrompe}
PEDRO — A Defesa tem razão. Determino à Acusação que se abstenha de agir contrariamente ao regimento.
INÁCIO — Pela ordem! Como pode Vossa Santidade aceitar uma sugestão desta natureza? O destruidor do Trono e do Altar — e o Bispo Talleyrand fez mais para isto que o Cidadão Saint-Just — propõe a Vossa Santidade, e vê aceita sua proposta, que o Povo se cale. Há um claro favorecimento da Defesa. Será isto obra do que o Governo Lula da Silva prometeu à Igreja do Brasil, ou será um agrado à CNBB para compensar o fato do Governo ser prisioneiro dos evangélicos? Não estivéssemos julgando um assunto tão sério, seria o caso de a Acusação se retirar em protesto.
PEDRO {agastado}—O nobre espanhol deveria estar acostumado à férrea disciplina que estabeleceu em sua Companhia. Se quiserem retirar-se, os da Acusação poderão fazê-lo. A decisão deste Tribunal destina-se a servir de contribuição para que o Senhor decida. Ele tudo acompanha, e não será uma palavra da Defesa ou da Acusação que influirá em seu juízo final. Ele, como sabeis, nobre Inácio, tudo vê e tudo sabe, e Sua Misericórdia, como disse, é infinita. Mas sua Justiça nada perdoa, sobretudo, o orgulho {olha para Lusbel, que assobia uma ária qualquer}. Acalmai-vos. A Acusação terá oportunidade de contestar tudo aquilo que a Defesa alegou. A sessão vai prosseguir. Antes, porém, de que o Bispo e Chanceler fale, dou a palavra ao nobre Cardeal Richelieu, assistente do Tribunal.
{O Cardeal impressiona por sua figura. Na Defesa e na Acusação há murmúrios}
RICHELIEU — Nobres senhores da Acusação e da Defesa. Sei que estranhais o fato de eu interromper este Julgamento. Vou explicar-vos a razão pela qual Pedro permitiu que eu aqui viesse ter e aqui vos falasse. Sendo conselheiro do Bispo de Roma, tive acesso ao registro das outras sessões. De sua leitura, conclui que tanto a Acusação quanto a Defesa estão indo por caminhos errados. Uma acusa o Governo; outra o defende. No entanto, o que está em causa no Brasil, assim vejo a questão e gostaria de ouvir vossa opinião, é o Estado {volta-se para a Acusação}. Na Acusação estão três grandes representantes da idéia do Estado. Um, Messer Nicolau, cuidou do problema com grande empenho e por isso mesmo, pela franqueza com que tratou do assunto, foi desprezado e condenado por muitos. Mas seus ensinamentos — não aqueles referentes à conjuntura, mas os que mostram que a guarda da Liberdade deve ser confiada ao Povo, e que o Príncipe, isto é, o Estado, só se mantém se tiver boas leis e boas armas — esses ensinamentos persistem, apesar de haver quem pretenda desconhecê-los. Inácio, o Santo, colocou sua vida, sua fé e sua Companhia a serviço do Papado, isto é, do Estado que governava os cristãos e governa hoje os católicos. Também foi vilipendiado e houve quem o apresentasse sentado ao lado de Lusbel. Torpe calúnia. Está junto ao Senhor, defendendo-O e a Seu Império sobre a Terra. E Saint-Just, por que fez o Terror e dele foi o Anjo? Para defender as instituições. Ele sabe melhor do que ninguém, pois jogou a vida para afirmar suas convicções, que sem instituições fortes não há Estado, e que não havendo Estado, os inimigos do Povo se apoderarão do Governo e levarão o Povo à guerra ou à guerra civil.
{faz uma pausa. Ouve-se ao fundo a Ode à Alegria da Nona Sinfonia de Beethoven. Volta-se para a Defesa}
— E quem temos na Defesa? Um nobre Defensor Público, Carl Schmitt, que fez de sua obra a defesa de uma idéia que, bem pesadas as coisas, malgrado certos deslizes de conjuntura, destinava-se a mostrar a importância que tinha a pessoa que tomava as decisões mais graves para um povo. Permito-me interpretá-lo, dizendo que esta pessoa era e é uma Pessoa Moral, e que pouco importava quantos tomavam a decisão fatal do estado de exceção, um ou muitos. O que importa é que a decisão é una. Do Estado. E depois, quem temos? O Bispo Talleyrand, tão desprezado por haver conseguido, melhor dizendo sabido sobreviver ao Terror e a Napoleão. Mas por que deixou Napoleão, quando a grande aventura se aproximava do fim? Porque era preciso salvar a França, tão querida dele e minha. Era preciso fazer que o Estado francês, monárquico ou republicano, voltasse a ter voz na Europa. Ele o conseguiu, pouca atenção dando ao desprezo que os bonapartistas lhe devotaram desde então. E finalmente, quem está na Defesa, embora Pedro tivesse hesitado em convidá-lo para esta função, tendo, por momentos, preferido colocá-lo na Acusação? Andrei Vichinsky, o grande promotor dos processos de Moscou, que defendeu o Estado soviético contra aqueles que o seu mentor e guia espiritual, Josef Stalin, considerava inimigos da Santa Mãe Rússia. Não é o momento de julgarmos Vichinsky, nem Talleyrand, nem Schmitt. É o momento de dizer que temos seis grandes homens se debatendo na Defesa e na Acusação de um Governo, quando o que está em causa é o Estado e, por isso o Governo é julgado. Custa-me crer que haveis perdido a Razão e não sabeis mais quais são os reais problemas. Nada mais tenho a dizer.
{Silêncio de alguns minutos}
PEDRO — O Reverendo Cardeal foi um grande servidor do Estado. Por isso nos deu esta esplêndida lição. Infelizmente, ele está fora dos procedimentos. Ainda que o que esteja em jogo seja o Estado, aqui se processa um julgamento em que o réu é o Governo. O Tribunal deverá prosseguir. Não dou a palavra ao Bispo Talleyrand porque os comboios devem chegar à Estação da Glória e, como já disse, preciso receber os bem-aventurados. A sessão será reiniciada amanhã.
{Todos se levantam. Maquiavel é o único a cumprimentar Richelieu. Cai o pano}
xxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxx