Não seremos nós que resolveremos o impasse constitucional que atormenta a oposição venezuelana. O problema que merece ser discutido − da perspectiva brasileira − é outro.
No período 1964/1979, muitos cuidaram de difundir teses sobre a política externa dos Generais-Presidentes. Ainda hoje se fala no “sub-imperialismo brasileiro”, na tentativa de construir a “grande potência” e na “hegemonia brasileira” na América Latina. Falar, fala-se, mas o Tempo e as atitudes contribuíram para fazer essas teses repousarem no lugar em que se jogam as coisas mortas.
Hoje, o Brasil constrói sua defesa pensando em um eventual ataque ao pré-sal e cuida de desfazer a imagem, que ganhou foros de Cidade entre alguns vizinhos, traduzida na expressão “imperialismo brasileiro”. Sendo o Brasil o maior PIB da América Latina (hoje a sétima economia do mundo, tendo perdido o sexto lugar para o Reino Unido) e o maior território nacional do subcontinente, o Governo procura demonstrar que sua política é de “cooperação”, o que se transformou no padrão de política externa, sobretudo na América do Sul.
Assim, o Brasil estará pronto a atender a quaisquer reivindicações (amparadas ou não em tratados internacionais ou reais necessidades) que seus vizinhos lhes apresentem. O que me faz lembrar a postura de muitos empresários que, nos anos em que o PCB tinha influência em muitos meios, sobretudo o sindical, faziam um seguro de vida, mas sobretudo de bens, financiando atividades paralelas do Partido.
Isso tudo vem a propósito de uma afirmação que sei ousada, que se apoia em idéias antigas, academicamente já descartadas, mas que devem ser recuperadas e recolocadas em seu devido lugar: há que encontrar-se um hegemon − caso contrário, para que serviram tantos estudos e tanto papel gasto para mostrar que o Brasil foi o aliado preferencial dos Estados Unidos, eles, sim, hegemônicos? Consideremos que o Brasil, por sua conduta diplomática, excluiu-se da pretensão voluntariamente, cuidando sempre de não praticar atos que possam sequer ressuscitar a tese do “sub” ou mesmo do imperialismo “cheio”. E, se podemos falar em país hegemônico nas Américas, é difícil, se não impossível, considerar, hoje, os Estados Unidos como sendo o condutor das políticas externas dos demais países americanos.
Gramsci tentou caracterizar a potência hegemônica: “Uma grande potência é hegemônica…”. Donde se segue que, para ele, qualquer Estado (pois é de Estado que se trata) que pretenda ser hegemônico deve, antes disso, ser uma grande potência − reconhecida como tal pelos demais Estados do pacto de que participa. Mas ele continuava: “uma grande potência é hegemônica num pacto…” O que significa que um Estado é hegemon num pacto entre Estados.
Até 1959, quando Castro entrou em Havana, era sensato ver os Estados Unidos como hegemon na OEA (um pacto), na medida em que não havia Estado membro da organização que pudesse discordar das linhas gerais da política externa norte-americana, cujo centro de dispersão era a chamada Guerra Fria. Tanto assim é que, em 1954, na reunião de Caracas, a OEA denunciou o “Comunismo” como regime contrário à “Democracia” − proposta de Foster Dulles apoiada não só pelo Brasil, mas também por Trujillo e Somoza… Foi assim que se legitimou (?) o golpe contra Arbenz na Guatemala e se expulsou Cuba da OEA em 1962.
Ora, vieram Castro, as guerrilhas na América Central, o Coronel Chávez e os que os que pretendem construir o socialismo bolivariano na América do Sul e na Central. Para não falar no Foro de São Paulo, que é um pacto no melhor sentido gramsciniano. Os Estados Unidos não têm mais condições de pretender exercer a hegemonia.
É preciso ter sempre presente que os Governos brasileiros que seguiram a chamada “política externa independente” – termo cuja paternidade se atribui, com razão, a San Thiago Dantas –, se pretenderam demonstrar que o Brasil era capaz de, soberanamente, traçar os rumos de sua política externa, não contrariaram a política externa (ou militar) dos Estados Unidos nas suas linhas centrais. A Operação Pan-Americana foi uma tentativa, frustrada, de colocar o Brasil na trilha da “independência”. A Operação começou, como é bom lembrar, por uma carta ao Presidente dos Estados Unidos…
Jânio Quadros quis fazer uma “política externa independente”. Enviou uma delegação à República Democrática Alemã (não mantendo relações diplomáticas com o Governo comunista de Pankow) e enviou João Goulart a visitar a China, cujo Governo não reconheceu, assim como não fez com o da URSS. Privilegiou a África, mas não rompeu com grande política alguma dos Estados Unidos. Seu desejo de “não-alinhamento” esbarrou com o problema angolano: atendendo a apelos sentimentais de Portugal, absteve-se de votar na ONU moção condenando a política colonialista de Lisboa, mas salvou a face, fazendo declaração de voto contrária ao Governo português… O Governo Goulart restabeleceu relações diplomáticas com a URSS, mas não com a China e se absteve na votação em Punta del Este que expulsou Cuba da OEA.
Certo de que receberei as críticas da cotérie dos “bem-pensantes”, direi que, se por política externa independente quer-se caracterizar atitudes soberanas no plano internacional, devemos reconhecer que foram os Governos Castelo, Costa e Silva, Médici e Geisel que a praticaram, uns com maior vigor que outros.
Castelo Branco assumiu o Governo com grande dívida externa e a balança comercial tendo como suporte o café. Pagou o preço de duas atitudes: romper relações com Cuba e enviar tropa a São Domingos antes que a OEA autorizasse a intervenção de qualquer força de paz.
Os críticos de Castelo Branco não se debruçam sobre os documentos que deixou, especialmente seu discurso aos jovens Diplomatas em Junho, creio, de 1964, e sua última conferência na Escola Superior de Guerra, dois dias antes de passar o Governo a Costa e Silva, em Março de 1967. O discurso no Itamaraty é importante porque nele se definem as prioridades do Brasil em política externa, consubstanciadas na teoria dos círculos: primeiro, a América Latina, depois, o Ocidente e, finalmente, o resto do mundo. É importante notar que, ao referir-se ao Ocidente, fez questão de acrescentar que o interesse do Ocidente não se confunde com os interesses da grande potência que toma a si a tarefa de defendê-lo. Na conferência na ESG, Castelo deixou claro como via o Brasil e o Brasil no mundo. Fiel à sua formação militar, um servidor do Estado, reconheceu que o essencial a manter seria a segurança. Todavia, não há segurança sem desenvolvimento − daí o refrão de seu Governo, “desenvolvimento e segurança”. O desenvolvimento é prioritário − e por isso rejeitou qualquer opção nuclear para a defesa. Segundo ele, o Vietnã demonstrara que a guerra havia mudado de caráter. Ademais, o Brasil não tinha, à época, condições econômicas para pretender ser uma potência nuclear. Na hipótese de uma guerra global contra a URSS, os Estados Unidos nos defenderiam de acordo com sua própria política externa. Castelo rompeu, sim, relações com Cuba, mas obedecendo à decisão da OEA recomendando que os países membros assim agissem. Defendeu a idéia de uma Força Interamericana de Paz, instrumento que julgava necessário para que a intervenção em qualquer país das Américas não mais fosse decidida por um só, mas pelo conjunto dos Estados, que saberiam distinguir a subversão de orientação internacional de movimentos nacionais em prol das reformas sociais. Acolheu em grande estilo o General de Gaulle, que já se havia distanciado dos Estados Unidos. Sendo do interesse do Brasil manter as relações com a URSS, manteve-as; e o comércio com o Leste europeu registrou grande avanço. Castelo não disse expressamente, mas pôde observar-se na prática diária que sustentou Portugal na crise africana, mas recebeu o Presidente do Senegal em visita de Estado. Houve quem, em seu Governo, pensasse em construir uma comunidade luso-brasileira.
Costa e Silva não assinou o Tratado de Não-Proliferação Nuclear elaborado por URSS e Estados Unidos, porque, na expressão de Araújo Castro, representante brasileiro na ONU, esse Tratado congelava o poder mundial. Assinou o de Tlatelolco, cujo artigo 28 permitia a explosão de artefatos nucleares para fins pacíficos.
Médici fixou em 200 milhas o mar territorial brasileiro, contrariando os Estados Unidos e demais potências marítimas.
É com Geisel, porém, que se dará ostensivamente a grande virada: reconhecimento da China e do MPLA como Governo de Angola, acordo nuclear com a Alemanha, projeto atômico próprio, condenação do sionismo como racismo, denúncia do acordo militar Brasil-Estados Unidos. Foi assinado o Pacto Amazônico. É em seu Governo, com certeza, que, se não germinaram, consolidaram-se as primeiras idéias de construir o submarino nuclear como arma dissuasória e não de defesa, simplesmente. E, apesar de não haver documentos comprobatórios, teve a intenção de construir a bomba atômica (ou um artefato nuclear para fins pacíficos como estava autorizado por tratado internacional). Prova disso, é o poço que o Presidente Collor de Mello fez fechar no Norte.
Não se alardeou a “independência” dessas políticas. Foram simplesmente postas em vigor. Foram políticas externas soberanas, fundadas nas capacidades econômicas do Brasil. É que a rigor, país independente é, por definição, soberano.
Figueiredo pouco pôde fazer, resolvendo o imbroglio com a Argentina.
Após as relações com Buenos Aires terem estado a ponto de ser rompidas por causa da construção de Itaipu no Governo Geisel, no Governo Sarney, que restabeleceu relações com Cuba, deram-se passos concretos para a aproximação mais duradoura do Brasil com a Argentina – nisso seguindo o Governo Figueiredo. Desses esforços resultou o Mercosul. Sarney viu frutificar a idéia de transformar o Atlântico Sul em zona não-nuclearizada.
O Governo Collor não terá importância nessa história, exceto pelo fechamento do poço construído para experimentar uma bomba atômica e pela assinatura do acordo sobre construção de mísseis de longo alcance. E por ter aberto as alfândegas, qual um Dom João VI reeditado, à custa de muitas indústrias nacionais.
Itamar assinou o Protocolo de Ouro Preto, complementar ao Tratado de Assunção que criara o Mercosul. Depois disso, exceto na Academia, não se falou mais em “política externa independente”.
Os Governos Fernando Henrique, Lula e Dilma fizeram da América do Sul seu ponto de honra na política externa.
Fernando Henrique Cardoso navegou no chamado “mainstream” da política internacional: assinou o Tratado de Não-Proliferação Nuclear, mas não os protocolos anexos, permitindo inspeção aleatória das instalações nucleares pela Agência Internacional de Energia Atômica. Não aprovou a idéia da ALCA sem, no entanto, “matar” a iniciativa norte-americana. Como Chefe de Estado de país garante, interveio no conflito entre Peru e Chile. Conseguiu, por pressão diplomática, evitar golpe de Estado no Paraguai.
E chegamos, finalmente, em 2003, aos Governos Lula e Dilma.
Em 2001, Jim O’Neill, Chefe de pesquisa em economia global do grupo financeiro Goldman Sachs, havia sustentado a tese de que países emergentes como Brasil, Rússia, Índia e China teriam, unidos, papel importante a desempenhar na construção de uma nova ordem mundial (“Building Better Global Economic BRICs”). O grupo se constituiu efetivamente em 2009, adotando a sigla, à qual, em 2011, acrescentou-se um S correspondente à África do Sul (South Africa), já que esse país não poderia ser ignorado em sua posição geográfica e econômica. O esforço no Mercosul e no BRICS será para encontrar maneira de fazer que dólar norte-americano não mais seja moeda de reserva internacional.
A chegada de Lula ao poder foi saudada internacionalmente com menos “fortíssimos”, mas na mesma escala que se empregou para promover Castro, logo após sua entrada em Havana. Lula aprofundou as relações com os Estados da África, governados por ditadores ou não. Aliado à Índia e à Argentina, enfrentou a União Européia nas negociações comerciais da Rodada Doha. Uniu-se a 21 países para fundar o Grupo dos 22, buscando sempre impedir o triunfo das teses dos países industrializados. Sustentou, o quanto pôde, as políticas de Chávez, aparecendo como eventual mediador nas tensas relações de Caracas com Washington − foi um reformista que não apresentou, jamais, qualquer perigo para o Capital internacional. Deu passos para fazer da OEA pouco mais que uma instituição do passado a serviço dos Estados Unidos. Mas não se retirou da Organização interamericana, enfraquecida com o avanço de Chávez sobre Cuba, Nicarágua, Bolívia e já contando com o apoio irrestrito do Equador. Na Bahia, recebeu os que desejavam fundar a OEA-do-B, recebendo Cuba como membro. Se não propôs, liderou a fundação da Unasul para cuidar, como organização sul-americana, dos assuntos da América do Sul (incluindo o Pacífico). Na crise de Honduras, fez de tudo para enfraquecer o novo Governo que afastara o Presidente bolivariano. Cedeu ao Governo de Assunção, bolivariano, na questão do pagamento da energia de Itaipu vendida pelo Paraguai. Aceitou a encampação manu militari de instalações da Petrobrás na Bolívia, negociando, depois, uma indenização. Concordou com a Argentina nos entendimentos com a União Européia, frustrando um acordo de livre comércio entre Mercosul e a Europa. É de seu Governo a política, segundo a qual, sendo o Brasil grande, deve necessariamente ajudar sempre os países menores da América. Política que em nada se aproxima de uma política hegemônica, pois o importante seria a “colaboração”, traduzida em cessão, para vencer o subdesenvolvimento de alguns.
Dilma segue os mesmos passos, com diferenças de estilo. Lula cuidou para não aparecer como professor dando lições aos alunos mais ricos. Apoiada no êxito − até Dezembro de 2012 − de suas políticas econômicas, da mesma maneira que a aceitação de que o Brasil era a sexta economia do mundo − igualmente até Dezembro passado −, Dilma não hesitou em dar lições à Alemanha, à Europa e aos Estados Unidos sobre como implementar políticas anticrise. Uniu-se (?) à Argentina para afastar o Paraguai das reuniões do Mercosul e, isto o fundamental, para permitir a entrada da Venezuela na Organização dita econômica. Antecipou, por seu assessor para Relações Internacionais, decisões da Suprema Corte de Justiça da Venezuela, aceitando que Chávez não precisaria prestar o juramento constitucional no dia 10 de janeiro.
Pensemos: se o Brasil é o maior território da América do Sul, a maior economia do subcontinente e a sétima (hoje) do mundo, não seria ele o hegemon? O Governo brasileiro não cai na tentação a que, diz-se, cederam os Governos dos Presidentes militares. E, embora pretenda intervir em assuntos mundiais fora do âmbito geográfico da presença brasileira, recusa-se a reconhecer que deve ter papel dirigente ou, pelo menos, de orientação na condução dos assuntos dos Estados da América do Sul.
Será, então, possível haver um pacto, até dois − Mercosul e Unasul − sem que haja alguém que consiga convencer os demais participantes do acerto de suas políticas a ponto de fazê-los seguir? Se não há, como ficamos nós, os que consideramos que Gramsci pensava corretamente quando cuidou da hegemonia nas relações internacionais?
Reflitamos mais sobre o assunto.
– segue –
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