A discussão, creio, deveria começar por perguntas que nos parecem pertinentes.
Se usamos a palavra hegemonia significando o mesmo que superioridade absoluta e se ela merece ser adjetivada (cultural, econômica, militar), essa superioridade se exerceria como poder em que sentido e por quais meios? Que significará, exatamente, hegemonia? Que é ser um hegemon? Será o país imperialista, por definição, um hegemon?
É importante notar que hegemonia se baseia em consentimento. Se um Estado, que seja grande potência, é hegemônico num pacto, será lógico concluir que as relações nesse pacto não poderão ser caracterizadas como relações próprias do que comumente chamamos de imperialismo, pois o hegemon, como se sabe, nada impõe – dir-se-ia que seduz. A hegemonia exerce-se, pois, em um pacto de Estados soberanos que não terão necessariamente por esse pacto a sua soberania ameaçada.
Gramsci foi o teórico que menos deixa dúvidas a respeito disso. Ele conhecia os escritos de Lenin sobre o imperialismo, por certo; mas, ao analisar a política européia nos anos anteriores à Primeira Guerra, cuida apenas de apontar quais tinham sido as grandes potências: Inglaterra, Alemanha e Rússia. E não aponta qualquer delas como hegemônica.
Se é possível reconhecer que a Alemanha, até 1914, teve predominância na Tríplice Aliança (Alemanha, Áustria e Itália – 1883), também se deve concluir que o país perdeu esse caráter ao declarar guerra à França e à Rússia, na medida em que a Itália não cumpriu seus compromissos e manteve-se neutra até 1915, aderindo, depois, à França e à Inglaterra. A França, em cujo mercado financeiro a Rússia se socorria com avidez, não foi hegemônica na Entente Paris-Moscou (1891), depois ampliada em pacto com a Inglaterra, que também não foi hegemônica. A Inglaterra tanto não era hegemônica que apenas entrou na guerra para honrar a palavra empenhada ao assinar tratado que garantiu a independência e neutralidade da Bélgica, que fora invadida pela Alemanha, igualmente garante… Donde se poder concluir que não havia, em 1914, um Estado hegemônico na Europa.
Poderíamos dizer, observando a África, o Sudeste Asiático e a China, que os países europeus mencionados eram imperialistas − como de fato eram. Basta lançar um olhar às bandeiras européias hasteadas nas colônias ou possessões. Inglaterra, França, Itália, Alemanha e Rússia eram imperialistas, sem dúvida! Mas, nas colônias e possessões que detinham graças à força de suas armas, não eram hegemônicos. Impunham sua política às relações internas nos territórios que ocupavam.
É curioso observar que Gramsci dedica umas poucas linhas, se tanto, ao papel internacional dos Estados Unidos na época. A rigor, só poderemos dizer que os Estados Unidos foram hegemônicos na América Latina depois da Segunda Guerra Mundial, quando sua influência cultural e econômica se consolidou: antes, eram simplesmente imperialistas, ainda que de forma distinta do imperialismo dos Estados europeus: era um imperialismo econômico-financeiro, puro, não colonial no sentido clássico. Porto Rico é caso à parte, da mesma maneira que o Panamá. Nesses dois casos, estamos diante de imperialismo territorial para, na visão dos Estados-Maiores norte-americanos, garantir a integridade do território nacional.
Com o que se entra, queiramos ou não, na discussão do “imperialismo” ou do chamado “sub-imperialismo” brasileiro, levando, segundo alguns, necessariamente a discutir se o Brasil é ou não um hegemon.
A partir de quê nos acostumamos a ouvir dizer que o Brasil é imperialista? A maioria dos argumentos − para os quais poucos dão atenção − repousa na História. Nós, brasileiros, por não termos memória histórica, esquecemo-nos de que o Brasil foi um Império cercado por Repúblicas. Os bons relatos da Conferência do Panamá de 1826, convocada por Bolivar, dão conta de que o Império brasileiro dela só participou graças aos esforços de outros vizinhos, já que o Libertador se recusara a convidar o Brasil exatamente por ser ele, então, uma Monarquia regida por um Imperador – por ser, portanto, um Império. Não nos esqueçamos de que a forma imperial de nosso Governo aproximava o Brasil da Espanha, contra a qual as colônias espanholas lutaram até 1824. Um segundo dado, que muitos argentinos ainda não esqueceram, é a Guerra da Cisplatina, que terminou com a independência do Uruguai, território que Buenos Aires considerava parte das Províncias Unidas do Rio da Prata. O terceiro é a Guerra do Paraguai e o tratado de paz subseqüente, que os paraguaios consideram lesivo a seus interesses territoriais, sob a alegação de que o Brasil ocupara parte de suas terras. Não podemos esquecer a compra do Acre pelo Brasil à Bolívia, ainda recentemente lembrada, com ressentimento, por Morales. O último dado, não derradeiro, é a pujança econômica do Brasil, que para muitos analistas e políticos só poderá sustentar-se pela expansão dos capitais brasileiros para os países vizinhos.
É preciso ver, em primeiro lugar, a questão territorial.
Apesar de não darmos importância a eles, os dados históricos fazem parte da cultura dos vizinhos e dificilmente serão esquecidos. O estigma que acompanhou o Império, sobretudo a partir da Argentina (especialmente da elite dirigente de Buenos Aires), ainda não se apagou. Os liberais brasileiros, no Segundo Reinado e na República, sempre condenaram a Guerra da Cisplatina, produto, segundo eles, da visão geopolítica que Dom João VI trouxera de seus ancestrais que haviam expandido o Reino: “Heróis do mar, nobre povo, / Nação valente e imortal/ levantai hoje de novo/ o esplendor de Portugal”… Para os vizinhos, a idéia de que o Brasil imperial (o Império é expansionista por definição institucional) sobreviveu na República dificilmente se apagará, especialmente agora que se dá a expansão dos capitais brasileiros. Seguramente Euclides tinha razão ao escrever que o Brasil imperial crescera porque, mesmo estagnado econômica e socialmente, não regredira, enquanto os vizinhos tinham andado para trás…
A Guerra do Paraguai, cuja história alguns pretendem reescrever apontando a Inglaterra como tendo instigado a Corte a hostilizar Assunção, está na memória popular daquele país, não tanto pelo conteúdo do tratado de paz − os documentos brasileiros falam dos esforços do Império para conter Buenos Aires que desejava mais aumentar seus domínios − quanto por seu sangrento fim, quando o Conde D’Eu permitiu, se não ordenou os combates finais em que se liquidou boa parte da juventude paraguaia. Ainda que o Brasil devolva, como fez, presas da guerra em sinal de amizade e simbolizando o fim das animosidades, esses fatos não se apagarão da memória do povo paraguaio, especialmente de boa parte de suas elites políticas e mesmo intelectuais.
O Acre é prova de vocação não-imperial do Brasil − mas, ao mesmo tempo, da firme disposição do Barão do Rio Branco de não permitir a instalação de uma quase-possessão anglo-americana nas fronteiras. Colonos gaúchos instalaram-se no Acre, território boliviano. Anos mais tarde, iniciaram revolução para a anexação desse território ao Brasil. Impossibilitado de enviar tropas, por deficiência de comunicações, o Governo de La Paz cedeu-o a um consórcio anglo-americano. O Barão, primeiro, comprou a concessão e, depois, negociou com a Bolívia a incorporação do território ao Brasil. Pagou 2 milhões de libras esterlinas, anuiu na retificação de fronteiras na região do Mato Grosso e o Governo brasileiro comprometeu-se a construir a estrada de ferro Madeira-Mamoré, que não chegou a ser terminada.
Os que se dedicam a fazer a análise econômica do imperialismo, da qual Lenin foi seu mais consagrado (porque mais lido e reproduzido) teórico, esquecem-se de que, no século XIX, na Europa e na Rússia czarista, o Poder Nacional mediu-se sempre pela posse de territórios (onde quer se encontrassem), invadidos em busca de matérias-primas, de riquezas, de tropas que seriam recrutadas e incorporadas a seus exércitos – territórios que eram tratados como um campo aberto para investimentos (especialmente na infraestrutura, em que materiais fabricados na Europa seriam utilizados). A conquista da Índia é disso o exemplo mais claro. O Império inglês organizou-se não só graças aos investimentos na infraestrutura, ao mercado ampliado e às riquezas que extraiu depois que a Companhia das Índias Orientais passou ao controle governamental, mas também graças ao emprego de soldados recrutados entre as populações locais. Foram as tropas hindus que liquidaram o Grande Motim de meados do século XIX; ademais, Londres incorporou algumas dezenas de milhares de soldados originários da Índia a seus exércitos na Primeira e na Segunda Guerra Mundiais. A França, igualmente, recrutou nativos durante a conquista da Argélia e nas duas guerras européias. O imperialismo europeu deve ser visto, portanto, de dupla perspectiva: a econômica e aquela do aumento do Poder Nacional… na Europa.
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É voz corrente que a Inglaterra foi hegemônica do final do século XIX até a I Guerra Mundial em virtude de ser a garante do padrão-ouro. Sucede que a aceitação do padrão-ouro por qualquer país não decorria de imposição inglesa (o Império alemão incorporou-o livremente), mas das vantagens que os que a ele aderissem teriam em seu comércio internacional. Não apenas isso: a adesão dos países mais fracos era a garantia que tinham de que empréstimos internacionais seriam mais facilmente obtidos e renovados. Quando se fala em hegemonia inglesa dessa perspectiva, é preciso levar em conta que cada país soberano, ainda que dependente, tinha liberdade para fixar suas tarifas alfandegárias, contrariando a política geral inglesa do livre comércio.
É com o fim da Grande Guerra (1914/1918) que vamos ter mudança na relação de poder entre as nações. O padrão-ouro deixou de ser aceito. Os Estados Unidos, até então país devedor, passaram à condição de credor − Inglaterra e França contraíram dívidas de guerra praticamente impagáveis, sendo obrigadas a pedir seu cancelamento aos Estados Unidos em 1921, sem êxito, porém. Os planos de recuperação da Alemanha de Weimar foram norte-americanos. Os Estados Unidos saíram da Segunda Guerra Mundial tendo 50% do PIB mundial.
Do aspecto militar, já no início dos anos 1920, a Inglaterra perdeu o chamado “domínio dos mares” na Conferência de Washington, ocasião em que os Estados Unidos conseguiram estabelecer a paridade entre as Marinhas de Guerra norte-americana e inglesa. Os Estados Unidos possuíam o monopólio da bomba nuclear, que só será quebrado pela URSS em 1949.
Por seu isolamento geográfico (uma “ilha-continente”), seu poder militar e econômico-financeiro, o país passou a ser visto como a potência hegemônica no dito Ocidente. É importante ter presente, no entanto, que o Governo de Washington sempre precisou obter o “concordo” dos países europeus para a adoção de medidas militares preventivas a um ataque da URSS. Na constituição da OTAN, os negociadores norte-americanos tiveram, sempre, de levar em conta as restrições da França ao eventual rearmamento alemão, e as ponderações da República Federal da Alemanha que insistia em não ser tratada como país derrotado. E, mais tarde, nos anos 1980, os Estados Unidos tiveram de negociar com os membros da OTAN para poderem instalar foguetes Pershing-2 (com cargas atômicas) na Europa e responder à ameaça dos SS-20 soviéticos. É preciso não esquecer, também, que, apesar do interesse norte-americano, a França decidiu, em 1954, não ingressar na Comunidade Européia de Defesa (firmemente defendida pelos Estados Unidos) e que, mais tarde, de Gaulle retirou a França de importantes comandos da OTAN.
Dependendo dos acordos feitos com seus parceiros para implementar a sua política, é possível afirmar que os Estados Unidos eram hegemônicos num pacto?
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Cuidemos, agora, heterodoxamente como sempre, da expansão da economia brasileira. Caberá ver como ela se dá, se de fato é necessária para a acumulação do Capital de propriedade de cidadãos brasileiros e qual o interesse do Estado nacional nessa expansão.
Antes de tudo, é preciso reconhecer que os capitais que se concentraram até meados do século passado no ecúmeno geopolítico brasileiro não tiveram força própria ou poder político para romper as antigas estruturas econômico-sociais e políticas do Norte-Nordeste. A criação da ALALC (1960/1980), depois ALADI (1980…), respondeu, da parte brasileira, ao desejo de ter mais fácil acesso comercial aos mercados dos países membros do pacto. Vontade que foi frustrada, em primeiro lugar, pelo fato de que os Governos signatários do Tratado de Montevidéu não conseguiram criar a sonhada zona de livre comércio e também porque Estados que haviam aderido à ALALC (Bolívia, Chile, Colômbia, Equador e Peru) constituíram, já em 1969, o Pacto Andino.
Antes da assinatura do Tratado de Assunção, que criou o Mercosul, a presença brasileira nos países vizinhos deu-se em momentos diferentes e trilhou caminhos totalmente distintos. Assim como haviam subido até o Acre em fins do século XIX, colonos, em sua maioria gaúchos, compraram terras no Paraguai e lá se estabeleceram. Foi um movimento populacional espontâneo, ainda que tenha havido insinuações de que Getúlio Vargas, no período 1937/1945, teria aconselhado empresas de colonização brasileiras a instalar-se no país vizinho − o que nunca fizeram. É curioso lembrar, a esse propósito, o artigo 4º da Constituição de 1937, outorgada a 10 de novembro daquele ano: “Artigo 4º – O território federal compreende os territórios dos estados e os diretamente administrados pela União, podendo acrescer com novos territórios que a ele venham a incorporar-se por aquisição conforme as regras do direito internacional”. Os brasiguaios − como vieram a chamar-se − somam hoje cerca de 250 mil pessoas e nunca se soube que tivessem pretendido incorporar suas propriedades ao território brasileiro; nem que algum de nossos Governos tivesse tido a intenção de incorporar terras paraguaias a nosso território. Movimento de população idêntico deu-se em território boliviano, na fronteira com o Acre.
O segundo momento é o das empreiteiras da construção civil pesada, barragens, especialmente. Iniciou-se, creio, nos anos 1970 e até hoje é um dos elementos marcantes da presença brasileira nos territórios vizinhos. É assunto que mereceria estudo à parte. Por um lado, essas empreiteiras pretendem trabalhar em países soberanos e à sua legislação devem obedecer, basicamente associando-se a empresas nacionais do mesmo ramo. A questão poderia mais complicar-se se a isso se acrescentasse o fato de que, muitas vezes, a vitória de empresa brasileira numa concorrência só tem sido possível na medida em que o BNDES financia a obra (antes, o BNDE o fazia), mediante empréstimo aos Governos nacionais estrangeiros. Estamos, sem dúvida, assistindo ao processo de acumulação do Capital. Atenção, porém! O fato de o financiamento provir de um banco estatal brasileiro não tolhe as ações do Governo nacional beneficiado. Há um exemplo recente: na Bolívia, estrada que estava sendo construída por empresa brasileira com financiamento do BNDES foi interrompida por pressão de comunidades indígenas sem que tenha havido estremecimento nas relações do Brasil com a Bolívia.
O caso Petrobrás é o exemplo claro, para não dizer gritante, de que o Estado brasileiro nunca teve intenção de exercer hegemonia na América Latina, levando vizinhos menos fortes a concordar com seguir os ditames de sua política. Em 1958, quando se negociaram os Acordos de Roboré, o Governo Kubitschek, atendendo à legislação boliviana, concordou com que apenas empresas privadas brasileiras pudessem explorar petróleo no território do país vizinho. Ainda recentemente, o Governo de La Paz ocupou militarmente instalações da Petrobrás sem que o Governo brasileiro tivesse reação que se pudesse chamar de imperialista. Sequer foi firme a reação…
Resta o Mercosul. Esse pacto é a prova cabal de que o Brasil não é nem pretende ser hegemônico − pela simples e boa razão de que cede a qualquer argumento, inclusive aceita que a Argentina, a pretexto de defender sua indústria nacional, rompa os termos do Tratado de Assunção e imponha dificuldades à entrada de produtos brasileiros (em muitos casos substituídos por produtos de terceiras nações, como os provenientes da China). Quando um Estado assina um tratado partindo do suposto de que pacta sunt servanda e não denuncia esse acordo ainda que seus parceiros rompam o especificado e ratificado na boa e devida forma é porque esse Estado realmente não tem vocação de grande potência, pois não persegue o aumento de seu poder relativo na sua área direta de influência.
Concordando com a política de parceiros não cumpridores de seus deveres, ao mesmo tempo em que prega uma “integração política” com eles todos, o Brasil demonstra não ter qualquer pretensão imperialista, muito menos terá qualquer pretensão à hegemonia. Quem, então, teria tais pretensões?
Esta é a questão.
– segue –
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