Não é fácil, pelo número de variáveis que deveriam ser consideradas, procurar saber se há um hegemon na América do Sul e Caribe ou um pretendente à hegemonia. Pelo que devemos proceder com atenção.
Fixemo-nos no Brasil. Exceto pelo poder militar, poderia ser considerada uma grande potência na América do Sul e potência média no jogo internacional de poder. Isso, se considerarmos Inglaterra, França e Rússia como grandes potências, os Estados Unidos figurando como superpotência. O Brasil tem território, população e PIB que justificariam sua inclusão entre os países que decidem, pelo menos na América do Sul. Corre, no entanto, o risco de perder alguns pontos na classificação se atentarmos para outros elementos que, a rigor, devem entrar na qualificação de “grande potência” ou mesmo “média”: dependência do petróleo (apesar do alarido que se faz em torno do pré-sal), de insumos necessários à indústria e mesmo à agricultura, insuficiente base tecnológica e industrial em inúmeros setores e, para não adiantar outros fatores, ressente-se de uma base educacional pelo menos razoável. Para não falar na saúde pública que, por mal cuidada, impede progressos em muitas áreas da atividade nacional.
Poderíamos considerar um elemento mais para já podermos ver com reservas a classificação do País como “potência grande” ou “média”: o comércio internacional, que não chega a 2% das trocas comerciais mundiais. Por outro lado, há teóricos e analistas que costumam dar peso relativamente significativo ao que alguns chamariam de “fator psico-social”: a adesão da população às políticas de seu Governo. Ainda que seja possível ter essa adesão como alta (à vista dos números com que se pretende medir o prestígio dos Chefes de Governo), é necessário observar que a idéia de Estado − o sentir-se parte de um Estado e por seu bom funcionamento, inclusive pela garantia de seu território ser corresponsável − está muito esgarçada no Brasil. Fato que exige ponderação muito cuidadosa desse último elemento, altamente subjetivo, aliás.
É verdade que, desde o início dos anos 1950, houve estudiosos que classificavam o Brasil como 10ª potência no mundo, ainda que ele fosse totalmente dependente do petróleo e tivesse poder militar igual a zero. Essa avaliação perdurou durante muito tempo. Foi, sem dúvida, fundado nesse tipo de análise dos fatores do poder nacional que Nixon, ao receber o Presidente Médici, proferiu a famosa frase, cujo sentido era este: para onde se inclinasse o Brasil, inclinar-se-ia a América Latina.
A rigor, o então Presidente dos Estados Unidos não apenas foi infeliz como traduziu não a realidade, mas o desejo de que as coisas assim fossem. Durante o Governo Médici nutria-se a quase certeza de que o Brasil estava cercado por Governos esquerdistas: Chile, Uruguai, Bolívia. Para não dizer que se temia que a luta armada inspirada em Guevara viesse a constituir ameaça à ordem. Igualmente é necessário recordar que foi no Governo Sarney que o Brasil deixou de ser apontado como a 10ª potência em termos de poder nacional passando a ser a oitava economia do mundo − Poder Nacional e PIB, como se sabe, são padrões diferentes de avaliação.
Se D. Pedro I preocupou-se com a Independência e, seguindo a política do pai, buscou conservar a Província Cisplatina, no Segundo Reinado, a idéia não de hegemonia ou de ascendência jamais passou pela cabeça fosse do Imperador, fosse dos membros do Conselho de Estado. Pelo contrário, a preocupação era com a idéia de que a Argentina pretendesse reconstruir o Vice-Reinado do Prata (Argentina, Uruguai e Paraguai), controlando o rio e podendo cortar a qualquer momento as comunicações entre a Coroa e a Província do Mato Grosso. Na República de 1891, por muito pouco o Primeiro Ministro das Relações Exteriores, imbuído da idéia positivista da paz universal, não entregou à Argentina o território das Missões − chegou a assinar em Buenos Aires documento nesse sentido, só revogado pelo clamor da opinião pública e o bom senso do Governo.
O episódio da retirada da Liga das Nações em 1926 não respondeu à vontade de ser hegemônico na América “Latina” ou mesmo na do Sul. Decorreu da vontade de estar entre os que decidiam no mundo antes de ter os elementos nacionais indispensáveis para tal − exceto a pequena missão médica que enviou à Europa durante a Grande Guerra.
O Governo Vargas (1930/1945) teve a virtude, se assim podemos dizer, de saber que o Brasil tinha, para a Alemanha e os Estados Unidos, relativa importância na América do Sul. Daí ter realizado uma política externa bifronte para a qual muito contribuíram a admiração do General Góes Monteiro pelo Exército alemão de 1870 e 1914 e a admiração de Oswaldo Aranha pelos Estados Unidos. No período do Estado Novo, porém, um episódio bem demonstra a inexistência de qualquer intenção – talvez até houvesse a vontade − de exercer hegemonia: tendo o Governo brasileiro decidido reequipar a Esquadra, e a Argentina manifestado seu desagrado, Vargas suspendeu a compra dos navios para não agravar as relações entre os dois países…
Tenhamos sempre presente que, até meados dos anos 1950, se havia um país preponderante na América “Latina” (sobretudo na América do Sul), era a Argentina: uma aliança firme, embora não escrita com a Inglaterra, economia assentada na carne e no trigo que exportava, enquanto o Brasil produzia café, um PIB que superava em muito o brasileiro, uma elite intelectual indiscutivelmente concorrente à brasileira, se não superior a ela, bastante influente nas ex-colônias espanholas, especialmente em virtude de ter em comum com elas o idioma castelhano. Os historiadores antiperonistas não se cansam de apontar a vontade de Perón de constituir um bloco sob sua liderança para implantar o “Justicialismo”, visto como a única forma de enfrentar as “ameaças” do comunismo e do liberalismo…
Mas as relações entre Brasil e Argentina, se não foram conflituosas, foram sempre marcadas pela “intenção hostil”, como assinalava Clausewitz falando das relações entre os Estados. A compra da Esquadra de 1910 − uma das grandes esquadras no mundo ocidental − foi disso a prova.
A “Operação Pan-americana” foi a tentativa, frustrada, do Brasil obter papel importante na região, aproveitando-se da crise que engolfava a Argentina desde 1955, quando Perón foi derrubado. O encontro entre Quadros e Frondizi iniciará a aproximação entre esses dois países. No Governo Goulart, Lacerda ainda buscará demonstrar, usando um documento forjado − a famosa Carta Brandi − que o Presidente da República havia entrado em conluio com Perón para formar um bloco político.
Os Governos do período 1964/1985 (Figueiredo governando sob a Constituição de 1967) não tiveram qualquer intenção ou pretensão hegemônica, embora durante o Governo Médici tenha havido tentativas de projetar o Brasil no cenário “latino-americano” (empréstimo à República Dominicana) e mundial (oferecimento de mediação na crise Israel-Palestina). Mais ainda: os Governos do período já se defrontavam com a expansão dos negócios de empreiteiras na América do Sul. Há de assinalar-se ainda que, para construir Itaipu, o Brasil precisou negociar com o Paraguai, cedendo muitas vezes às pretensões de Assunção. Por outro lado, não podemos desconhecer que muitos analistas construíram, durante esse período, cenários em que Bolívia e Paraguai apareciam como hesitando escolher entre Brasil e Argentina, que teriam intenções de explorar seus recursos naturais.
Em 1988, há uma mudança radical na política externa brasileira à qual poucos prestam atenção. O País, que tinha sido acusado de acalentar a idéia de “grande potência” durante as presidências militares e de ter tido pretensões hegemônicas, adota nova Constituição, que faz tábula rasa do passado, considerado negativo, e impõe nova e permanente diretriz às suas relações com o mundo, especialmente a “América Latina”. Reza o artigo 4º da Constituição: “Art. 4º – A República Federativa do Brasil rege-se nas suas relações internacionais pelos seguintes princípios:… Parágrafo único – A República Federativa do Brasil buscará a integração econômica, política, social e cultural dos povos da América Latina, visando à formação de uma comunidade latino-americana de nações”.
Detenhamo-nos um momento sobre esse texto. Embora impositivo, ele não é, a rigor, “constitucional”: “Art. 178 – É só Constitucional o que diz respeito aos limites, e atribuições respectivas dos Poderes Políticos, e aos Direitos Políticos, e individuais dos Cidadãos. Tudo o que não é Constitucional pode ser alterado sem as formalidades referidas, pelas Legislaturas ordinárias” (Constituição de 1824). As Constituições republicanas, desprezando essa lição dos autores da de 1824, inseriram nas diferentes Cartas Magnas assuntos referentes diretamente ao Governo. Essa subversão das boas normas constitucionais deveu-se à pressão de grupos que se formaram nos diferentes Governos ou em alguns setores da Sociedade.
Ora, afora alguns poucos intelectuais e políticos, nunca houve, até 1988, pressão alguma da Sociedade para que o Brasil fixasse como norma constitucional a formação de uma “comunidade latino-americana de nações” (social, econômica e, sobretudo, política). A integração política, bem pesadas as palavras − que têm conteúdo e conseqüências −, significa que, por essa última Constituição, a República Federativa do Brasil compromete-se ou se obriga a ceder parte se não toda sua soberania, delegada à futura “comunidade de nações”. Não havendo pressões sociais para que tal se desse, segue-se que o parágrafo único do artigo 4º resultou da pressão exclusiva (intelectualmente irresistível) de pequenos grupos atuando no Congresso constituinte de 1986, no qual as forças ditas conservadoras preocuparam-se, com a criação do “Centrão”, em preservar direitos relativos à propriedade e a algumas liberdades públicas, atribuindo pouca importância a problemas de Estado.
Vamos adiante: o Governo Fernando Henrique Cardoso preocupou-se com a integração da infraestrutura, orientado pela idéia de que estradas facilitariam o comércio, especialmente a que levará ao Pacifico, no Peru. Para não falar da assinatura do TNP, contrariando a orientação dos Governos Costa e Silva, Médici, Geisel e Figueiredo. Nesse Governo, promoveram-se também algumas iniciativas na área da formação educacional. Além de acordos terem sido feitos na área do Mercosul, a Lei nº 5.692 de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, de 11/08/1971, foi substituída pela Lei nº 9.394 de 20/12/1996. O Capítulo I, Art. 1º da primeira rezava: “O ensino de 1º e 2º graus tem por objetivo geral proporcionar ao educando a formação necessária ao desenvolvimento de suas potencialidades como elemento de auto-realização, qualificação para o trabalho e preparo para o exercício consciente da cidadania. § 1º Para efeito do que dispõe os artigos 176 e 178 da Constituição, entende-se por ensino primário a educação correspondente ao ensino de primeiro grau e por ensino médio, o de segundo grau. § 2° O ensino de 1° e 2º graus será ministrado obrigatoriamente na língua nacional”. Já o Título I – Da Educação – Art. 1º da segunda dirá: “A educação abrange os processos formativos que se desenvolvem na vida familiar, na convivência humana, no trabalho, nas instituições de ensino e pesquisa, nos movimentos sociais e organizações da sociedade civil e nas manifestações culturais. § 1º Esta Lei disciplina a educação escolar, que se desenvolve, predominantemente, por meio do ensino, em instituições próprias. § 2º A educação escolar deverá vincular-se ao mundo do trabalho e à prática social”.
Embora determine que, além de outras línguas, “Os currículos … devem abranger, obrigatoriamente, o estudo da língua portuguesa” (Título V, Capítulo II, Seção I, Art.26) e a destaque “como instrumento de comunicação, acesso ao conhecimento e exercício da cidadania” (Seção IV, Art. 36), uma vez que é “o idioma oficial da República Federativa do Brasil” (capítulo III – Da Nacionalidade – Art. 13 da Constituição de 1988), a nova Lei não encontrou necessidade de mencionar, em momento algum, que o ensino das disciplinas fosse ministrado obrigatoriamente, ou seja, exclusivamente em Português. Com o que o Estado se comprometeu a desenvolver (Título VIII, Art. 78) “programas integrados de ensino e pesquisa, para oferta de educação escolar bilingüe e intercultural” e (Art. 79) a apoiar “técnica e financeiramente os sistemas de ensino no provimento da educação intercultural às comunidades indígenas, desenvolvendo programas integrados de ensino e pesquisa”.
Mas será com os Governos do PT que se darão os passos decisivos no sentido da “integração”…
– segue –
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