BRASIL: HEGEMONIA E IMPÉRIO – 4

 

 

 

 

     Registremos, inicialmente, que os Governos Lula e Dilma foram buscar nos Governos Médici e Geisel elementos para construir sua política externa. Aliás, também no Governo Collor. De Médici (e, antes, de Arthur Bernardes) a vontade de que o Brasil tivesse papel importante nos assuntos mundiais. É de Médici, como vimos, a vontade de fazer do Brasil mediador na crise do Oriente Médio. De Geisel, a posição de afastamento (não de hostilidade) dos Estados Unidos. E de Collor, a vontade de estar entre os que decidem − daí a insistência dos dois Governos petistas em pertencer ao Conselho de Segurança da ONU como membro permanente. Mais ainda: herdaram dos Governos pré-1964 e a esse ano posteriores, colocar a política externa a serviço do desenvolvimento. O que levou, mais que nas administrações anteriores, a facilitar o quanto foi possível a penetração de empreiteiras e da Petrobrás nas Américas − além do esforço para sustentar o Mercosul malgrado as posições da Argentina − assim contribuindo para a acumulação interna do Capital.

 

     O afastamento dos Estados Unidos traduz-se em não adotar quaisquer políticas que contrariem os fundamentos da política externa norte-americana, ainda que dela discordando, alto e bom som, em alguns aspectos secundários, nunca fundamentais. A Operação Tempestade no Deserto (Bush pai, Governo Collor) não mereceu restrições pelo simples fato de que, na ocasião, tratava-se de decisão da ONU para fazer respeitada a soberania do Kuwait. É significativo, porém, o fato de Collor não haver seguido a Argentina, que colocara uma fragata sob o comando da ONU-EUA em operações secundárias. Fosse por política ou pelo fato de nossa Esquadra não estar aparelhada para uma guerra naval moderníssima, a realidade é que o Brasil não deu apoio militar, mas também não protestou e não dissentiu. No caso da segunda guerra, a que levou à destituição de Sadam Hussein, o Brasil não deu apoio às operações militares contra o Iraque, mas não foi difícil tomar posição contrária às operações militares anglo-americanas não autorizadas pela ONU, pois a “velha Europa” e a Rússia haviam tomado essa posição.

 

     O papel do Brasil na formação do grupo dos 20, frustrando os desejos de Estados Unidos e União Européia, também não foi ação isolada; teria sido sem sentido efetivo se outros países relevantes, como a Índia, não tivessem adotado idêntica posição. Quando, pouco depois, integrou o Grupo dos 5 na OMC para discutir a Rodada Doha, a posição brasileira foi bem menos agressiva.

 

     Não se negará que a insistência na necessidade de uma reforma da Carta da ONU, possibilitando a entrada do Brasil no Conselho de Segurança, tem o sabor de uma manobra estratégica – pouco estudada, porém. Em primeiro lugar, ao insistir na tese de que o Brasil é suficientemente grande para representar a América Latina, Brasília colocou-se na defensiva contra a reação da Argentina e do México. Depois, é necessário ter claro que, para a reforma da Carta, permitindo o ingresso da Alemanha, da África do Sul, do Japão e do Brasil, os apoios de França e Inglaterra, de olho na possibilidade de uma maior abertura do mercado brasileiro, são necessários, mas não são suficientes. O que conta é a China, firme na sua disposição de vetar qualquer reforma que implique a entrada do Japão no Conselho de Segurança. A esse propósito, não custa lembrar a gafe diplomática do então Chanceler Amorim, hoje Ministro da Defesa, reagindo a declarações de altos funcionários chineses que manifestaram claramente a oposição de Pequim à reforma da Carta da ONU. Em um dia infeliz, o Chanceler declarou que a China poderia ter apoiado a reforma da Carta reservando-se vetar o ingresso do Japão na ocasião da escolha dos novos membros…

 

     A oferta de mediação na crise entre Israel e o que seria, mais tarde, o Estado palestino obedeceu à vontade de ser reconhecido, pelos que decidem, como parceiro indispensável para a solução de graves problemas internacionais. A essa oferta, já feita pelo Governo Médici como acentuamos, há de somar-se a ação conjunta com a Turquia para tentar resolver a crise entre os Estados Unidos, Europa e Rússia, inclusive, e o Irã. O documento obtido por Ancara e Brasília, no qual Teerã reafirmava o caráter pacífico de seu programa nuclear, foi dado como não existente por Washington. Em resposta, Brasília fez saber que a intermediação do Brasil respondera a um pedido do Governo norte-americano. O pedido, de fato, fora feito em carta do Presidente Obama. O Brasil, no entanto, decidiu agir sem levar em conta alguns aspectos fundamentais do problema, um dos quais era questão fechada para Washington: o urânio enriquecido a 20% deveria ser entregue pelo Irã aos cuidados de terceiras potências, que o forneceriam ao Governo de Teerã na medida de suas necessidades pacíficas. Ora, nas negociações com os iranianos, Turquia e Brasil haviam concordado que esse urânio enriquecido ficaria em poder do Irã para sempre. O que, para os Estados Unidos, permitiria um enriquecimento a porcentagens bem mais altas.

 

     Bem vistas as coisas, a vontade de ser membro permanente do Conselho de Segurança (se com ou sem direito de veto ainda não foi esclarecido) está em contradição com reiteradas afirmações de altas autoridades de Brasília no sentido de que o País não tem pretensão alguma de liderança na América Latina. Para elas, o País apenas deseja colocar sua grandeza a serviço do desenvolvimento dos países irmãos menos favorecidos. Essa contradição espelha-se também claramente no empenho brasileiro em criar organizações interamericanas que permitam a indução da Organização dos Estados Americanos a um coma permanente: Unasul e Celac, a Comunidade de Estados Latino-americanos e do Caribe − a OEAdoB – lançada em reunião realizada em Salvador.

 

     Sobre que base pretende o Brasil ser incluído entre os que decidem?

 

     À primeira vista, essa base é formada por seu tamanho e seu PIB – nesta análise, prefiro sempre mencionar PIB a economia, pelas fragilidades já apontadas em artigo anterior. Alguns privilegiam o território e o crescimento econômico − além, agora, das reservas cambiais − como se fossem fatores suficientes para que um Estado pretendesse ter papel relevante na discussão dos problemas mundiais − o que é pouco quando se vê a real distribuição de poder global. Há de considerar, no entanto, que o território brasileiro contava, até os anos 1960/70, pela posição geográfica. O General Golbery havia insistido nesse particular em sua “Geopolítica do Brasil”, tendo em vista a vantagem estratégica do promontório do Nordeste brasileiro na hipótese de uma nova guerra mundial. Hoje, com os submarinos nucleares, os foguetes de alcance médio e intercontinentais e os satélites militares, essa posição perde importância no jogo geoestratégico mundial. Já o PIB não pode ser considerado fator de poder levando-se em conta a dependência da economia de inúmeros fatores externos à vontade de qualquer Governo nacional.

 

     O que estará, pois, motivando o empenho dos Governos do PT para a admissão do Brasil no Conselho de Segurança como membro permanente só poderá ser a idéia (inconsciente que seja) de que o Brasil pode, de fato, influenciar as políticas externas dos países da América do Sul − que, aliás, os Governos Lula e Dilma procuraram e procuram fazer dependentes de uma série de elementos em que o Brasil tem, a toda evidência, superioridade. Por exemplo, a indústria de defesa, que se deseja desenvolvida em bases associativas com os membros da Unasul, vale dizer, a Argentina. Indústria brasileira essa, diga-se de passagem, que tem, em muitos setores, grande participação de capitais estrangeiros… Para não dizer do problema de transferência de tecnologia.

 

     Quando examinamos as relações de poder na cena mundial, não podemos deixar de levar em consideração o poder militar. Se, hoje, não se pode dizer, como nos anos 1950, que o poder militar do Brasil é igual a zero, também não há como classificar o País entre os Estados com razoável capacidade de projetar poder e até mesmo ter assegurada sua defesa com alguma tranqüilidade. O esforço orçamentário dos Governos do PT foi sempre dirigido à Marinha, pouco sendo destinado a equipamento e pesquisa no Exército e anulando, por assim dizer, a capacidade estratégica da Força Aérea. Note-se, porém, que o reequipamento da Marinha não se destina a projetar poder. A meta de construir uma segunda esquadra de alto mar é apenas uma idéia − a atual esquadra não pode ser considerada, como dizem os anglo-saxões, uma “Blue navy”: esquadra de alto mar. Dessa perspectiva, se toda a estratégia nacional é defensiva e cooperativa na América do Sul, o esforço para construir (com projeto francês) o submarino nuclear não tem sentido. Pretender utilizá-lo para a defesa do pré-sal − esse é o discurso oficial − é desconhecer que o Brasil viu aprovada sua proposta de transformar o Atlântico Sul em área desnuclearizada, seja isso o que for, além de supor que as potências nucleares com interesse no Atlântico Sul não elaborariam planos de contingência para o momento em que nosso submarino nuclear entrasse em operação… sem torpedos com carga nuclear!

 

     Há outro elemento a considerar: a firme disposição dos Governos Lula e Dilma de manter tropas brasileiras no Haiti (Dilma agora estuda a possibilidade de enviar força do Exército ao Líbano, secundando a força da Marinha lá presente). Muitos atribuem essa postura ao desejo de, colocando-se a serviço da ONU, demonstrar às grandes potências que o Brasil pode estar entre os membros permanentes do Conselho de Segurança. A esse propósito, insisto em fazer uma observação que alguns considerarão por demais cínica: as forças indianas foram incorporadas ao Exército inglês na Primeira e na Segunda Guerra mundiais: os sipaios. Como se sabe, os soldados indianos que serviam no Exército inglês na
Índia, os sipaios, desempenharam importante papel nas operações que puseram fim ao Grande Motim do século XIX. Seria interessante reter que não fora o sipaio ter contribuído para a dominação inglesa e não se compreenderia porque a palavra “sipaio” passou a ser usada na América Ibérica, especialmente na Argentina da primeira metade do século XX e na década de 1950, com o sentido de alguém que se comporta social e politicamente de acordo com valores e políticas daquele Estado que considera dominante. Os Estados que cedem forças para a ONU são, a bem dizer as coisas, os “sipaios da globalização”.

 

     Resta o empenho em fortalecer o Mercosul. O exame desse empenho talvez nos permita chegar a uma conclusão, ainda que provisória, sobre a questão: quem é o hegemon na América do Sul − se é ele que existe.

 

– segue –

 

 

 

 

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