BRASIL: HEGEMONIA E IMPÉRIO – 5

 

 

 

 

     Na intenção primeira do Brasil, o Mercosul seria criado para fazer da Argentina o Canadá brasileiro − idéia que era corrente, à época, no Itamaraty. Evidência mais que suficiente de que pensar estrategicamente não era, como hoje não é, o forte de setores dirigentes de nossa Diplomacia.

 

     A união aduaneira que surgiu com o Tratado de Assunção teve como resultado imediato atrair capitais estrangeiros à Argentina para aproveitar a oportunidade que se oferecia de conquistar o grande mercado brasileiro aberto à produção feita no país vizinho. Essa política de investidores estrangeiros foi realizada também no Brasil − e a conseqüência dos dois movimentos foi acentuar, em alguns setores industriais, sobretudo o automotivo, a complementaridade das duas economias. Uruguai e Paraguai não chegaram a atrair investimentos significativos na indústria − e até hoje, o Governo de Montevidéu se queixa de o país haver-se transformado em praça financeira, nada mais. Tanto se ressentiu de sua condição menor que chegou a cogitar de assinar acordo de livre comércio com os Estados Unidos…

 

     É um erro avaliar o Mercosul da perspectiva econômica levando-se em conta apenas o incremento do comércio exterior do Brasil com os demais membros do pacto que faria possível. Digo que é um erro porque, a partir do Governo Lula, o Mercosul passou a adotar uma política não declarada: membro algum seu poderá negociar livremente acordos comerciais com terceiros países apesar de a tarifa externa comum ser uma das pedras angulares do acordo. Política que, em primeira e única análise, retira de todos os membros um dos atributos da soberania, o de summa potesta.

 

     Brasília aceitou alegremente (tudo leva a crer) essa restrição à sua ação internacional como Estado; Buenos Aires, ainda que não pretenda assinar acordo de livre comércio com países não membros do Mercosul, não arreda pé na defesa de sua condição de Estado soberano – que, na opinião de alguns teóricos do Direito Internacional ou de historiadores engajados, respeita ou não acordos internacionais conforme ditem seus interesses de Estado.

 

     Apesar de o Mercosul haver permitido o aumento do comércio com o Brasil (sem levar em conta as flutuações das respectivas balanças comerciais, a favor ora de um ora de outro país), Buenos Aires teve sempre o cuidado de defender indústrias que considerava essenciais à sua política, ainda que fossem tecnicamente inferiores às brasileiras. O exemplo claro, desde a vigência do Tratado de Assunção, foi a proteção aduaneira ao açúcar. Hoje em dia, essa política continua em vigor, prejudicando um número não pequeno de produtos industriais produzidos no Brasil, política essa que encontra apenas fraca reação do Governo brasileiro.

 

     Para bem avaliar a política externa brasileira quando se consideram suas ações no âmbito do Mercosul, será preciso não perder de vista a sedução do mito da integração numa comunidade latino-americana. Ora, quando se tem isso presente, é preciso reconhecer que a força do mito é maior do que se pode imaginar. Fato mais grave, mesmo antes de a Constituição de 1988 consagrá-lo como princípio básico da ação internacional do País, a sedução do mito fez do apoio incondicional à Argentina um dos pontos centrais da política externa brasileira para a “América Latina”.

 

     Entro, como se diz, em terreno minado, pois não sou especialista na matéria. Mas não me furto a lançar-me a uma interpretação assaz heterodoxa da questão, já que, a meu ver, somente um mito com força de mito poderá explicar por que temos hoje posição subordinada.

 

     Aventuro-me a dizer que um Estado (vale dizer, uma sucessão de Governos) deixa-se engolfar por um mito na condução de sua política externa quando insiste em não reconhecer que a relação entre Estados é sempre conflituosa (a guerra, como se sabe, vai da intenção hostil ao conflito aberto). O General Ernesto Geisel, Presidente da República e Comandante-em-Chefe das Forças Armadas, tinha plena consciência disso e fez sua política a partir dessa consciência. O conflito em torno de Itaipu ilustra e confirma o que pretendemos dizer. Como podemos recordar, diante da firme decisão do Brasil de construir Itaipu tal como projetada, ergueram-se vozes militares influentes na Argentina colocando como hipótese a guerra. Houve, também, deputado provincial que insistiu na tese de que o antigo território das Missões não poderia ter sido cedido ao Brasil pelo Governo federal argentino, porque, historicamente, era propriedade da província lindeira. O Itamaraty jogou todas as cartas para impedir o triunfo da tese argentina sobre o controle compartilhado dos rios – e, vitorioso, Geisel levou a cabo a construção, desconhecendo os perigos, reais ou imaginados, de um conflito armado com o vizinho.

 

     No Governo do General João Batista de Oliveira Figueiredo, a percepção dos fatos mudou e o Brasil tudo fez para que a questão de Itaipu tivesse solução do agrado dos dois países. Mais, e esse fato é relevante: quando a Junta Militar de Buenos Aires invadiu as ilhas Falkland com amplo apoio popular, o Brasil adotou posição de “neutralidade amistosa” com a Argentina – que cometera ato de agressão contra a Inglaterra. Posição que se transformou, depois do conflito terminado, em apoiar todos e quaisquer atos do Governo vizinho que reclama, até hoje, sua soberania sobre as ilhas. Esse apoio não se manifestou apenas nos foros internacionais. Recentemente, quando a Argentina impediu que navios que viessem das Falkland aportassem em portos argentinos, o Governo brasileiro secundou a decisão de Buenos Aires, igualmente fechando os portos a barcos na mesma condição.

 

     A posição do Governo Figueiredo decorreu de uma de duas visões das coisas: ou o temor de agravar as relações com a Argentina, acreditando que a já flagrante debilidade das Forças Armadas brasileiras exigia que não se irritasse quem ousara desafiar a Inglaterra, ou adesão à ilusória tese contida no discurso argentino do início do século XX, segundo a qual “tudo nos une, nada nos separa”. O que fortaleceu a presença da Argentina na América do Sul, malgrado a viva oposição que já se levantara em muitos círculos sul-americanos e nos Estados Unidos contra a Junta Militar.

 

     A política atual, de apoiar a Argentina em sua reivindicação sobre as Malvinas − não no campo diplomático, mas das ações −, já faz parte da política de integração e comunidade posterior a 1985, principamente dos Governos Lula e Dilma. Que agem como se esquecessem de que os Estados que se prezam cuidam de zelar por sua soberania. Acrescente-se que uma política desse teor contraria uma regra básica: apoiar alguém num pacto significa que ou se é nele hegemônico − e então triunfa o padrão de equilíbrio de poder e o Brasil admite pelas ações a sua real intenção de ser o hegemon − ou se reconhece no outro o mais forte. Não diria o hegemon, que a Argentina não o é; mas o mais audaz, que tem seguidores. O que é, relativamente, mais capaz.

 

     A questão, porém, não se resume às relações Brasil-Argentina. Um olhar piedoso poderia enxergar na política brasileira o receio de que uma atitude mais firme no caso das restrições à importação de produtos brasileiros poderia levar a crises na balança comercial que se refletiriam nas relações políticas entre os dois países. Visão economicista, cega de um olho, portanto.

 

     Volto à questão do desejo de ingressar no Conselho de Segurança da ONU. O quase silêncio que cerca atualmente essa pretensão, tão alardeada na gestão Amorim, permite supor que o Chanceler Patriota ou já percebeu a contradição por nós apontada em artigo anterior e se recolhe, ou simplesmente o assunto deixou de ser prioridade para o Governo Dilma, preocupado com coisas mais importantes. Quais seriam?

 

     Conselho de Segurança à parte e desconsiderando por ora o mito da integração em uma comunidade política, há um ponto comum na política externa dos dois Governos petistas: a defesa intransigente de Presidentes que, admite-se sem restrições, seguiam as diretrizes venezuelanas de construir o ”socialismo do século XXI” do Coronel Hugo Chávez. A primeira vez em que essa diretriz de ação se tornou evidente foi na crise de Honduras. Naquela ocasião, como se sabe, o Brasil não apenas deixou de reconhecer, condenando ao isolamento, o Governo que substituíra o do Presidente deposto pelo Congresso, como se prestou ao estranho papel de receber Zelaya, exilado, em nossa embaixada em Tegucigalpa como ”hóspede” e não “asilado político”. A segunda condenação de um Governo não bolivariano deu-se no caso do Paraguai, apesar de as normas constitucionais para o que o impeachment de Lugo terem sido respeitadas.

 

     A intervenção nos assuntos internos de Honduras a pretexto de fazer respeitar a democracia não teve maiores conseqüências a não ser o isolamento do novo Governo, com os efeitos negativos daí resultantes para a população hondurenha. Foi, podemos dizer, a vontade de afirmar para toda a comunidade internacional “eu posso e eu faço, ainda que minhas ações não estejam respaldadas pelo Direito Internacional” em um arremedo de soberania. O episódio da suspensão do Paraguai dos organismos do Mercosul é, porém, diferente – e, por seu caráter inusitado, poderá permitir que se compreendam as razões que levam o Brasil a proceder tal como procede.

 

     É o que tentaremos analisar no próximo artigo.

– segue – 

 

 

 

 

xxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxx