COSE ATTI A FARE

Aula inaugural – FFLCH da USP  –

 

    Alguns pensadores tiveram um trágico destino. Eles apenas enunciaram o que seria já por muitos conhecido – mas o fizeram de maneira ousada, porque ativista, porque queriam transformar o mundo. E porque diziam dessa forma foram, primeiro, canonizados, depois… satanizados. Quando, para catequizar os gentios, um Saulo deles se apropriou numa estrada de Damasco qualquer, passaram a ser vistos como se a criatura de Paulo de fato os representasse tal qual. Mais tarde, quando a igreja se desfez, foram esquecidos. Assim foi com Marx. Posso dizê-lo, tranqüilamente, porque ainda me recordo, e longos anos se vão, de quando procurava convencer os alunos da graduação de que não deveriam tomar as palavras de Marx como se dogma fossem. E sumariava tudo com a frase de efeito: sagrado por sagrado, prefiro São Tomás de Aquino, que me garante o reino dos céus. 

 

    Desfeito o Império Soviético, rotos os laços que mantinham unida a grande coterie, o marxismo foi responsabilizado pelo Gulag, por 60 milhões de mortos e abandonado às traças. Nem se lhe concede, ao marxismo e a Marx e Engels, em alguns círculos, o direito de ser lembrado da forma como se recordam os autores do Direito Natural dos séculos 17 e 18. Ao aceitar essa condenação, proferida pelo assim dito Tribunal da História, perdemos a oportunidade de somar a contribuição de Marx à de tantos outros ativistas que procuraram transformar o mundo simplesmente o entendendo. Transformar o mundo, dizendo que havia “cose atti a fare”. Uma dessas coisas era que o ato de conhecer transforma. Transforma, porque não se conhece o mundo sem agir sobre ele. Ao agir sobre o mundo e ao conhecê-lo, nós o transformamos. Ao transformar o mundo, nós nos transformamos – e nesse processo se dão as transformações moleculares tão caras a Gramsci, cuja obra, após ter sido censurada pelo Comintern, só foi conhecida fora da Itália muitos anos depois de sua morte. Essas transformações moleculares resumem-se numa palavra: a praxis – que Rodolfo Mondolfo, especialista em filosofia grega antiga e intérprete, diria conservador, do marxismo, professor de Gramsci e por esse acusado de positivismo, resumia numa expressão: a praxis que se auto-subverte, a praxis que, ao transformar o mundo, transforma quem o transforma.

 

    Outro ativista, Trotsky – menos preocupado com a teoria marxista, pois já a encontrara decantada por anos e anos de experiência do movimento operário, e mais preocupado com as coisas que se prestam a fazer – costumava dizer, nas suas polêmicas com social-democratas e stalinistas, que só se poderia conhecer o mundo e transformá-lo se o marxismo fosse tomado como um método de análise de situações sociais e não um método de análise de textos. O que pretendo, nesta aula, é seguir este conselho, duvidando de que seja possível analisar situações sociais… quando se analisam textos… 

 

    O “Manifesto Comunista” não é o melhor texto de Marx. Antes de tudo, porque é um manifesto. Depois porque, sendo uma profissão de fé, é contraditória como todas. Contém, porém, um repertório de observações que, com algum exagero, dir-se-ia terem sido feitas “sub specie aeternitatis”, ainda que num texto datado e destinado a ser utilizado em determinada situação. Texto que, no longo percurso dessa nova estrada de Damasco, acabou conduzindo à Estação Finlândia em São Petersburgo em 1917. A extensão da estrada permite compreender porque houve uma grande quantidade de Paulos usando e abusando desse texto para fins de catequese – mas isto já é outra história. 

 

    É preciso advertir que também sou como um desses Paulos, transmitindo aos gentios a sua visão particular das coisas. Já me censuraram – há trinta e tantos anos – por interpretar à minha maneira e usar, para meus fins sinistros, o santo catecismo. Assim tenha sido e assim seja.

 

    Há, no “Manifesto”, momentos em que o objetivo organizatório suplanta a visão do processo. Aquilo, porém, que nele se apreende como método deve servir para analisar situações sociais, e não de padrão para a análise dos textos de profetas, de grandes epígonos ou de contestadores de uma fé. A primeira observação que gostaria de fazer é a seguinte: há no “Manifesto” sujeitos de orações principais que, a rigor, são sujeitos de orações subordinadas. É por isso que ele é um manifesto, e que nele se confundem tempos verbais e sujeitos da ação – mas no qual se estabelece claramente onde o processo chegará na extremidade lógica do pensamento. Sem fugir à ortodoxia, poderia dizer que se encontram no “Manifesto” lições da mais rigorosa Sociologia, especialmente no capitulo em que traça o nascimento, a formação e a tomada de consciência da classe operária. É um modelo de inspiração para qualquer sociólogo que se preze. Hereticamente, diria que a análise histórica (do passado, do presente e a análise prospectiva) que nele se encontra – a formação da burguesia e do proletariado e o fim de tudo, com o acirramento da luta de classes ao extremo – além de ter um sabor de história escrita sob inspiração da Queda e Redenção do Homem, possui, na parte em que cuida do futuro, uma extraordinária similitude com o método de ver a realidade não apenas como é mas como deverá ser, levados os princípios que nela se detectam à sua extremidade lógica.

 

    Esse foi o método utilizado pelo grande teórico da guerra, Clausewitz. Na guerra, ensinava ele, há de distinguir entre a guerra absoluta e a guerra real. A absoluta é a que se deduz logicamente de princípios dados pelo pensamento, o primeiro dos quais é que A empregará o máximo de força para destruir o adversário, razão pela qual esse deverá usar o máximo de força para destruí-lo. Clausewitz dizia que essa era uma tendência aos extremos. Eu a chamo de tendência aos extremos logicamente concebidos. A guerra real é aquela que se trava na realidade, quando o plano elaborado pelo comandante-chefe é posto à prova na miríade de ações que compõem a guerra; quando é posto à prova pela realidade: a opinião pública, as decisões dos governantes, o terreno, a doutrina militar do adversário e a ordem de batalha dela decorrente e o acaso, sobretudo o acaso.

 

O “Manifesto” é a descrição da luta de classes pensada na sua extremidade lógica – e é fácil comprová-lo ao compararmos a real situação da classe trabalhadora em 1848 com a imagem dela que aparece no texto. Uma leitura paulina deveria começar por verificar quais são os reais sujeitos da ação. Em muitas passagens, onde se lê “burguesia” dever-se-ia ler Modo de Reprodução Ampliada do Capital (MRAC). Ao ser feita essa substituição, desde que se alterem algumas palavras para efeito de composição literária, não poderá ser dito que o “Manifesto” é velho de quase século e meio. Pelo contrário, é extremamente atual. 

 

    Façamos o exercício literário. Usarei a tradução Molitor, do alemão para o francês, edição Alfred Costes, Paris, 1947. Onde se lê, por exemplo, pág. 59 in finis: “A burguesia não pode existir sem revolucionar constantemente os instrumentos de produção, portanto, as condições da produção, portanto, o conjunto das relações sociais”, a rigor deveria ler-se: “O MRAC, que define o modo de produção da sociedade capitalista moderna, revoluciona constantemente os instrumentos da produção, portanto as condições da produção, portanto o conjunto das relações sociais”. O MRAC não é, no entanto, o sujeito da oração principal, que é um sujeito coletivo, uma miríade de fatos históricos: pestes, populações que desaparecem e renascem, guerras, revoluções, invenções, descobertas, ações dos homens sobre a natureza e a sociedade. Nesse ambiente gestou-se o modo de produção moderno, que teve como parteira a burguesia.

 

    A burguesia, que se apropria da mais-valia e controla a mão-de-obra, é sujeito de outra oração, agente de outra ação: ela, na sua praxis que se auto-subverte, dará forma a essas transformações. Essa forma, note-se, dependerá das condições históricas em que o processo de acumulação do capital e extensão social e geográfica do MRAC vier a realizar-se. A burguesia é um sujeito coletivo que dá forma às transformações. Mas na medida em que a história da formação da burguesia é diferente de país para país, a história do capitalismo é diferente de país para país, como diferentes são as formas em que ele se apresenta em cada um deles. É por isso que a revolução, tal qual descrita no Manifesto, se realiza num país, enquanto em outros, não. Do método, convém reter também que o importante é verificar em cada período histórico qual é a organização social que controla o excedente – em alguns casos, o excedente e o capital, recurso escasso – qual a organização social que se apropria em última instância da mais valia, e quais as forças sociais que ela coopta ou tem como adversárias. É por saber distinguir a realidade dos textos, a guerra absoluta da guerra real, que Trotsky escreveu, logo depois da revolução de 1905, no “Balanço e perspectivas”: “dir-se-ia que, na Rússia, até o capitalismo é uma criação do Estado”, inicialmente o Grão-Ducado de Moscou, Estado que pressionado pelas invasões externas, apropriou-se do excedente produzido pela sociedade.

 

    Hans Freyer, comentando a Sociologia de Simmel, afirmava que os objetos da Sociologia são por natureza essencialmente históricos. Acham-se estabelecidos no tempo concreto. São realidades históricas. Por ser assim, estão ubicadas em determinado lugar e devem ser observadas como produto de determinado tempo. As relações sociais, os processos produtivos, as condições de produção são objeto da Sociologia; estão inseridos no Tempo e localizados num Espaço. Em cada lugar e a cada tempo, são diferentes. São históricos. O MRAC, pelo contrário, nessa linha de raciocínio, não é um objeto da Sociologia porque não se pode dizer que seja histórico. Não que não tenha sido o produto de processos históricos, sociologicamente observáveis. É, nesse sentido, objeto da Sociologia apenas enquanto surge. Ele possui uma diferença fundamental, um traço específico que o distingue dos demais fatos sociais, dos outros objetos da Sociologia que lhe deram origem e com ele vão convivendo sempre revolucionados na sua forma. É que ele não muda de acordo com as alterações das condições histórico-sociais. Mudam, isto sim, e por isso são objeto do estudo da Sociologia, as formas sociais em que a burguesia traduz a racionalidade intrínseca do MRAC. Ele é, por assim dizer, gestado em múltiplos processos histórico-sociais; partejado, é como Palas Atena, a deusa grega que nasceu já pronta e já armada! Não se altera, porque sua racionalidade cobra sempre o preço dos que a esquecem. O MRAC tem uma racionalidade intrínseca, que lhe é própria e é o antagonismo entre essa racionalidade e as relações sociais e jurídicas consagradas que torna as revoluções inevitáveis. Para que o MRAC se torne hegemônico, diria Rosa Luxemburgo, também pensando na extremidade lógica, é preciso que “as organizações políticas obsoletas, relíquias da economia natural e da economia de produção simples de mercadorias” sejam deitadas abaixo, criando em seu lugar “uma máquina estatal moderna adaptada aos propósitos da produção capitalista”.

 

    Os colegas da Filosofia – para não falar nos sociólogos, nos antropólogos e nos cientistas políticos – dirão que estou ouvindo estrelas, como dizia o poeta, para depois murmurar: “na certa, perdeste o juízo”. Dirão a vocês todos que esqueçam que transformei o MRAC no Espírito Absoluto que anda solto pelo mundo, objetivando-se em formas sociais. Contudo, como falava Antonio no enterro de César, eu lhes pediria: Lend me your ears. 

 

    Sem dúvida, é a burguesia que realiza as maravilhas que Marx aponta no “Manifesto”, mas é Palas Atena, este quase ente de razão, que alguns chamam de MRAC, que cria as condições para que “todas as relações sociais, bem estabelecidas e imutáveis em sua ferrugem, com seu cortejo de idéias e de concepções antigas e veneráveis [sejam] dissolvidas (…) tudo o que era privilégio e estável se esfuma, tudo o que era sagrado é profanado…”. Não é a burguesia que realiza essas transformações; é o MRAC que cria as condições para tanto, aproveitando-se daquelas que haviam sido criadas pelo aparecimento da economia monetária. Para não citar São Paulo em sua epístola a Timóteo e sua advertência sobre os males que a cobiça pelo dinheiro pode causar – e para não vos remeter à Comédia Humana de Balzac e ao Rastignac do “Pai Goriot” – lembrarei, a propósito dos estragos que a moeda é capaz de fazer no que é estável e sagrado, Rousseau. Ele, que não entendia de economia política moderna, mas conhecia o processo genético-histórico e dava os primeiros passos para fundar as ciências humanas, mostrava o que a economia monetária faz, pervertendo a sociedade.

 

    A fórmula do MRAC é simples C V MV = M. Ou se quiserem, retomando Rosa Luxemburgo, para que a reprodução ampliada do capital se dê é preciso que o capitalista encontre no mercado com o que realizar a nova mais-valia expandida: matérias-primas, máquinas, trabalho adicional, bens de consumo. Isso tudo, a partir de uma condição: “o novo capital, assim como a mais valia que ele cria, deve despir-se de sua forma de mercadoria, reassumir a forma de valor puro e assim reverter ao capitalista como moeda”.

 

    Se aceitarmos que as condições históricas fazem que os fatos objeto da Sociologia não sejam idênticos, temos de reconhecer que a burguesia não é una. Ademais, quando a realidade cede lugar à guerra absoluta, a burguesia integra, por suas várias facções, aquilo que o grande jornalista que escreveu “As lutas de classe na França” e o “18 brumário de Luis Bonaparte” chamava de “Partido da Ordem”: “Propriedade, Família, Religião, Ordem”. É Palas Atena, pronta e acabada, que tudo revoluciona – inclusive obriga as facções da burguesia a se digladiarem e faz que a burguesia industrial de um país se defenda das ações mercantis da burguesia industrial de outro país. O MRAC, para bem entendermos seu papel na história, tem a função do catalisador na Química. Sem ele, não há reação; com ele, o resultado da reação depende das formações sociais em presença e das formas que assumem as relações sociais.

 

    Retenhamos este ponto, ao qual voltaremos: o MRAC revoluciona as relações sociais na medida em que revoluciona os instrumentos e as condições da produção.

 

    Continuo na minha leitura paulina.

 

    Onde se lê, a págs. 60 e 61: “A burguesia, pela exploração do mercado mundial, tornou cosmopolitas a produção e o consumo de todos os países”, leia-se, fundindo frases e acrescentando idéias retiradas de Luxemburgo, que já citei de na sua obra famosa, mas esquecida: “A acumulação do capital”: “O MRAC, na necessidade de assegurar mercados cada vez mais amplos à produção de mercadorias, encontra onde realizar a acumulação nos países que estão fora do mercado interno do capital onde o MRAC é triunfante, mas nunca reina de maneira absoluta. Ele realiza, assim, a transformação capitalista das nações atrasadas. Pela ocupação do mercado mundial , tornou cosmopolitas a produção e o consumo de todos os países. Para tristeza dos reacionários, ele fez que a indústria perdesse suas bases nacionais. As antigas indústrias nacionais foram aniquiladas por indústrias que processam não mais matérias-primas indígenas, mas vindas das regiões mais distantes, e cujos produtos são consumidos não só no pais em que são produzidos, mas em todas as partes do mundo. As antigas necessidades são substituídas por necessidades novas, que reclamam produtos de países e clima os mais longínquos para poderem ser satisfeitas. Os produtos intelectuais das diferentes nações tornam-se propriedade comum a todos”. Para aqueles que afastam com desdém aquilo que se chama de Morfologia Social, o “Manifesto” ensina – e agora os burgueses estão na oração como sujeito: “E a união que os burgueses da Idade Média levaram séculos para realizar com seus caminhos vicinais, os proletários modernos a realizam em alguns anos graças às estradas de ferro”.

 

    Nesse ponto se encontram os instrumentos de produção e a Morfologia Social. Digo morfologia, porque se trata de meios de comunicação. Hoje, diríamos Infovias. Por elas, deixemos o “Manifesto”.

 

    Volto a Freyer, nos seus comentários a Simmel: “Há sociedade ali onde os homens atuam uns sobre os outros.” A visão de Durkheim não é muito diferente desta: “É que a sociedade só pode fazer sentir sua influência se for um ato, e só será um ato se os indivíduos que a compõem se reunirem e agirem em comum. É pela ação comum que ela toma consciência de si e se afirma; ela é, acima de tudo, uma cooperação ativa.”. Continua Freyer: “Os inúmeros fenômenos que se desenvolvem entre os menores elementos, que não estão afirmados em formações concretas e permanentes, representando tão-apenas o fato ‘sociedade’ em statu nascendi, constituem antes de tudo a maravilhosa e inesgotável trama da sociedade….”. Anos mais tarde, esses “menores elementos” integrariam o objeto do estudo da Micro-sociologia, de que mestre Gurvitch, que foi professor desta Casa, se ocupou. O importante é fixar a existência, na realidade social, desses “elementos menores”, muitas vezes desprezados ou relegados ao campo da Psicologia individual. Não, contudo, por Blumer no estudo dos movimentos sociais. Deve reter-se, igualmente, que é a partir desses “inúmeros fenômenos que se desenvolvem entre os menores elementos…” que se dão as transformações moleculares a que se referia Gramsci, as quais respondem pelos momentos, primeiro, de distinção e separação, depois de soreliana cisão entre a visão do mundo que o dominado constrói na sua práxis e aquela que recebeu pronta do dominante. O que significa que as transformações do sagrado em profano não se dão do dia para a noite, mas no curso de longo e penoso processo. Se o homem é um ser social e racional – assim acreditamos – é antes de tudo também um ser afetivo e, como tal, cada um de nós, sendo dominado desta ou daquela maneira, para chegar à sua própria visão do mundo, deve renegar inteiramente os antigos valores em torno dos quais construiu, até aquele momento, sua existência. É por isso que esse processo é individualmente doloroso. Ele transforma os símbolos em que aqueles valores se exprimiam, mas basicamente muda o sentido do que os símbolos simbolizavam – e os transforma a fim de atender a algo que apenas uma visão não dogmaticamente marxista da natureza humana pode compreender. Que é este algo?

 

    Entendamo-nos desde o início. Não se constroem religiões nem grandes sistemas filosóficos – muito menos políticos – se não se tem uma noção do que seja a natureza humana, de quais os princípios que se pode dizer serem constitutivos dessa coisa chamada “homem” ou “mulher”. Dizer que a natureza humana é forjada pela história é negar ab initio a possibilidade de o ser decaído, na visão judaico-cristã do mundo, se regenerar e salvar-se. Até mesmo aqueles que insistem na condição histórica da natureza humana admitem que mudando as condições de existência social será possível recuperar aquela inocência que se perdera – o que indica que há algo de permanente no ser humano, que desabrochará dadas condições ideais.

 

    Rousseau talvez tenha sido quem colocou com clareza a questão no “Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens”. No Estado de Natureza, os homens são iguais aos animais: sem razão, sem fala, sem sentimentos de afeto recíproco – salvo a piedade, que é comum também aos animais, e que nos faz sofrer ao ver um membro da mesma espécie sofrer. Uma coisa nos distinguia dos companheiros animais: a perfectibilidade. Isto é, dadas certas condições externas ao homem, ele tem dentro dele a capacidade de desenvolver a razão – e esse desenvolvimento, conjugado com condições exteriores, permitirá que sejamos como somos. Não seriamos bons leitores de Rousseau se imaginássemos que a perfectibilidade simplesmente transformou o embrião de razão em razão. Ela, diria eu, leva a razão a fazer o abstrato flutuar na abstração. É a perfectibilidade – o desejo de ser perfeito – que fez que Eva se deixasse convencer pela Serpente (princípio não criado) e decidisse convencer Adão (os dois apenas esperando o momento de serem convencidos) de que ambos poderiam ser tão perfeitos quanto o outro princípio não criado.

 

    Antes de Rousseau, Hobbes, no “Leviatã”, havia impresso sua marca hobbesiana ao ser humano racional: “É inclinação geral da humanidade inteira um perpétuo e incessante afã de poder”. Esse afã está em cada um de nós. Não importa que eu queira mais e mais poder para ter segurança. O que importa é que quero. Saltemos séculos e mudemos registros. Em Gramsci, a idéia de que há algo inerente à natureza humana se expressa claramente. O que move os homens – encontramos em Gramsci –, levando-os inclusive às grandes ações revolucionárias, não são “causas mecânicas imediatas de penúria social”, mas “uma exasperação do sentimento de autonomia, independência e poder”. “A unidade da teoria e da prática” – continua ele – “não é (…) um dado de fato mecânico, mas um devir histórico, que tem a sua face elementar e primitiva no sentido de ‘distinção’ e ‘separação’, de ‘independência’ apenas instintivo”. Guardemos o instintivo.

 

    Deixo a vocês a tarefa de fazer a explosiva combinação sócio-química da práxis que se subverte com a perfectibilidade, o afã de mais e mais poder, o sentimento instintivo de uma sempre crescente autonomia. Depois de feita a combinação, acrescentem uma pitada de MRAC.

 

    Na minha visão paulina, o resultado disso tudo é dramático: a ação do homem sobre a Natureza – à qual ele se deveria integrar por sua própria natureza, mas da qual se afasta pela Cultura e pela Sociedade – processa-se dentro de formas prescritas por determinadas formações sociais, e prescritas o mais das vezes pelos grupos que ocupam posições de dominação. Nada escapa a essas determinações de como devemos nos relacionar com a Natureza e com os semelhantes – nem mesmo o amor ou a relação sexual. Esse agir do ser humano sobre a Natureza e seus semelhantes altera a Natureza, os semelhantes e o próprio ser que atua sobre eles. Transforma, também e primeiramente, as formas nas quais realiza sua ação e se apropria das coisas. E as transforma para que possa realizar cada vez mais, com maior independência e autonomia, o seu afã inato de poder. Poder que lhe garante autonomia frente às regras sociais.

 

    A cisão soreliana a que me referi antes, seqüência da distinção e da separação, se quiserem saber o que seja, pensem no que diz Gramsci a respeito da mulher na sociedade italiana: “(…) enquanto a mulher não tiver atingido não só uma real independência frente ao homem, mas também um novo modo de conceber-se a si própria e à sua parte nas relações sexuais, a questão sexual permanecerá rica em caracteres mórbidos…”. A cisão soreliana, quando os subordinados entram na posse de uma visão do mundo que renega e destrói aquela na qual até então viveram, essa cisão, dada às vezes como ação de um sujeito coletivo sob a direção do Novo Príncipe, ou seja, de um partido, começa sempre como processo individual. Por isso é dolorosa. Todos nós somos filósofos, dizia Gramsci. Como filósofos, no processo de desenvolvimento e elaboração psicológica afetiva – dos fenômenos produzidos pelos elementos menores e sofrendo as transformações moleculares resultantes do intercâmbio com outros indivíduos que sofrem processo semelhante – como filósofos, afirmamos nossa independência e nossa autonomia das formas e das instituições.

 

    Tudo se esfuma, exceto o indivíduo. Esfuma-se, portanto, o conceito das hierarquias sociais criadas por ações sociais voltadas para um fim. Esfuma-se – tomando a sociedade como um todo – a cooperação ativa e no lugar dela tende a estabelecer-se o domínio daquilo que Rousseau chamava de “sociedades particulares” em oposição à “‘sociedade geral”. As vontades, negando o que Freyer assinalava em Dilthey, não se encontram mais ligadas para a cooperação em uma certa forma. As consciências individuais não mais se interpenetram, dirá Gurvitch, apenas se tocam. O “Nós”, que resultaria das ações cooperativas, restringe-se aos pequenos grupos, cujas consciências coletivas também apenas se tocam tangencialmente umas às outras. A sociabilidade ativa no nível da sociedade global, aquela que cria o Direito e as normas válidas para toda a sociedade, torna-se passiva. O eu não se reconhece ou se nega no tu. O tu é, para o eu, apenas um companheiro de viagem que pode desembarcar na próxima estação ou ir até o final da linha, dizendo tão-só as frases convencionais para permitir uma convivência civilizada, mas efêmera. A Sociedade, que Simmel dizia resultar da ação de uma pessoa sobre outra, essa tende a desaparecer na extremidade lógica; inclusive as sociedades particulares tendem a este triste final. O sagrado, que é a comunhão do eu com o tu e dos dois no Nós, torna-se profano, isto é, transforma-se no ensimesmamento, no culto do indivíduo – nem que termine, pela falta de calor humano (amor e ódio) no diva do psicanalista, no álcool ou na droga. Tudo isso porque, na extremidade lógica, a autonomia crescente nega a Ordem e a Organização. Ordem e Organização, hierarquia, fenômenos que se encontram na Natureza, na Sociedade são sinônimos dos reais objetos sociológicos.

 

    A autonomia crescente, o sentimento instintivo de maior independência, autonomia e poder, só pode exacerbar-se se, na morfologia da sociedade, encontrarem-se as condições para a maturação desse novo tipo de indivíduo livre, mas agonicamente triste. A diferença entre séculos e anos que Marx registra entre o tempo que decorreu para a união dos burgueses e dos proletários – organizados, em luta uns contra os outros – estava marcada pelos cavalos-de-força que condicionavam a velocidade dos meios de transporte. O animal tinha uma relação velocidade/distância limitada pelo desgaste de sua energia. A locomotiva a vapor, pela necessidade de reabastecer-se em percurso de água e carvão. O diesel-elétrico aumentou a velocidade e encurtou a distância econômica e o tempo. O trem elétrico (hoje, brinquedo das crianças) junto com o motor náutico a diesel, quando não nuclear, tornou-se fator na economia de escala da distribuição – portanto da produção – e na mais rápida aproximação das gentes. Cuidado, porém! Durkheim, na sua angústia de fazer que a sociedade não se tornasse anômica, disse com clareza que os trens na Inglaterra não aproximavam as comunidades, como na França, mas serviam apenas para os caixeiros-viajantes apressarem seus negócios. Hoje, a Infovia elimina as distâncias e também o Tempo humano, que até agora fora medido por sua duração – a durée, uma no Campo, outra na Cidade.

 

    O MRAC criou a globalização e revolucionou as relações sociais. Isso estava claro em 1848, mas só agora é que os doutos e os espertos disso se aperceberam. Há 20 anos, a informática fez que a “guerra real” se aproximasse da “guerra absoluta”. Se os efeitos mais danosos dessa revolução demoraram a fazer-se sentir, foi porque a velocidade das comunicações, até a invenção do DDD e do DDI, era pequena o suficiente para que as transmissões fossem lentas o bastante para que ainda houvesse nelas um toque humano. A informática potenciou a velocidade das mudanças e potenciou também as grandes transformações culturais que revolucionaram as relações sociais. Em que sentido se deu essa revolução?

 

    Indiquei atrás o sentido dessa transformação, que, em sua extremidade lógica, pode resumir-se numa expressão matemática: MRAC perfectibilidade tendência à autonomia crescente Infovia = não organização, isto é, o triunfo do indivíduo isolado (evidentemente, ele ainda é um ser que só fala porque vive em sociedade), fim das normas sociais reconhecidas como socialmente válidas, impositivas.

 

    Isso na extremidade lógica. Na “guerra real”, a expressão tem como resultado haver estruturas e organização sociais que convergem para o Estado constitucional, e estruturas e organizações que convergem para diferentes Estados não constitucionais, organizados, mas incapazes de atender ao princípio da racionalidade interna do Estado, que é ocupar todo o território, exercer seu domínio incontrastado sobre ele, sua soberania, e sustentar uma ordem jurídica que corresponda às exigências de impessoalidade, racionalidade e previsibilidade do MRAC. Schumpeter dizia que o capitalismo tivera a virtude de racionalizar e individualizar as condutas humanas. Na extremidade lógica, o Estado pereceu. A obra de arte que surgiu no Renascimento, hoje, é peça no museu das curiosidades históricas – não, porém, no sentido em que Engels dizia que o Estado desapareceria. Ele desapareceu – na extremidade lógica – porque nós, indivíduos, não o queremos!

 

    Não o queremos, por quê? Porque o Estado, enquanto suma e convergência das normas ditas originárias da sociedade, é o centro coator por excelência, aquele órgão que impede a expressão do eu e a afirmação da independência e da autonomia. Por isso, a idéia de governo, mesmo democrático-representativo, é vista com suspeição. 

 

    A Infovia tem seu papel nesse processo. Um cavalheiro de nome Kenichi Ohmae, consultor de empresas transnacionais, falando do fim do Estado-nação em decorrência da globalização, diz o que a Infovia já fez. Em primeiro lugar, as fronteiras nacionais, como estava previsto no “Manifesto”, ruíram ante as empresas transnacionais, como as muralhas de Jericó ao som da trombeta de Jacó. Depois, faz uma observação que merece atenção: na medida em que o PIB ultrapassa a marca dos US$ 5 mil per capita (uma das circunstâncias externas que pode engatilhar a perfectibilidade), há um aumento na velocidade em que o estilo de vida nas diferentes sociedades, mesmo separadas por quilômetros de distância – pelo efeito da velocidade da informação e do empuxe tecnológico – se torna cada vez mais semelhante. Em seguida, a conclusão que nos interessa:

    “Os efeitos dessa aceleração atingem, em certa medida, o centro da cultura. Eles avançam: nas sociedades expostas à multimídia, nos mais profundos sinais de sociabilidade e visão do mundo, crianças e adolescentes tornam-se semelhantes a suas contrapartes em outras sociedades igualmente influenciadas”. E avança uma idéia que seria cara a Auguste Comte: “A continuidade essencial entre as gerações, da qual cada sociedade depende essencialmente para sua integridade e sobrevivência, começa a esgarçar-se”. Comte dizia: “Os mortos governam os vivos”. Com a Infovia e a tendência à autonomia crescente, não mais!

 

    O fato social, o objeto sociológico é uma relação ou de amor ou de ódio, ou então de amor e ódio. A indiferença não aproxima as pessoas. A relação que cria, que permite o desenvolvimento ou o sufoco do eu interior e a criação das normas sociais, depende dessa relação afetiva. O fato social ousaria dizer, é essencialmente patético, isto é, dramático, enérgico, enternecedor. Define-se pelo pathos que traz com ele. O ato de amor só cabe como objeto sociológico quando é patético. Quando se pratica como se toma um copo d’água – como defendia uma revolucionária bolchevista de grande projeção na Velha Guarda, para espanto do conservador Lenin –, cai no âmbito da fisiologia animal. Sem dúvida, há pathos à distância – e os grupos secundários são disso exemplo e o estudo da Sociologia. Por serem patéticos, os fatos que são objetos sociológicos são estudados pela Filosofia: nada mais patético do que a dialética entre o Senhor e o Escravo na “Fenomenologia do Espírito” de Hegel. São estudados pela Política – haverá algo de mais dramático do que a evolução do homem de ser animal a ser humano que se aliena no outro, porque a estima pública passa a ter um preço quando ele se junta em sociedade, descrita por Rousseau no Segundo Discurso? São estudados pela Antropologia, porque é a interação enérgica e enternecedora que cria símbolos e gera condutas e mitos. E não preciso dizer que são estudados pela Sociologia, preocupada com a anomia, que é o tangenciamento das pessoas sem que nada de patético as una.

 

    Quando duas pessoas se comunicam pela Internet, o pathos não é colocado na relação humana; é no prazer individual de surfar, de conversar com alguém que se identificou não por um nome – que traduz relações humanas, muitas vezes instituições sociais –, mas por símbolos que só têm validade para quem os cria. Sem dúvida, também para quem os chama, muitas vezes sem saber que sorriso tem seu interlocutor quando recebe suas mensagens.

 

    Ora, a partir do momento em que os símbolos não exprimem o simbolizável, inexiste o pathos – mesmo a distância. Vende-se e compra-se o prazer sexual por telefone ou pela Internet. A instituição social da prostituição, com sua organização, suas ligações com os agentes do Poder Público, seu reconhecimento como fato social pela negação do Código Penal ou pela aceitação dela feita pela jurisprudência, nem essa instituição resiste à frieza e à velocidade da Infovia. O amor da Infovia não tem pathos: o resultado, na extremidade lógica, será que a mulher não conseguirá atingir aquele estágio de libertação da morbidez de que falava Gramsci; o homem não terá mais a segurança de ser o macho, símbolo de padrões de conduta em que foi educado; ninguém mais realizará aquilo que Reich preconizava como meio de escape e salvação desta sociedade insana: uma sadia economia sexual.

 

    Esta é a época das grandes transformações. É, ao mesmo tempo, o momento do triunfo da Ode Triunfal de Álvaro de Campos. Cito parte de seu final: 

        “Eia túneis, eia canais, Panamá, Kiel, Suez!

         Eia todo o passado dentro do presente!

         Eia todo o futuro já dentro de nós, eia!

          (………………………………………………… )

         Ah não ser eu toda a gente e toda a parte!”

 

    Maquiavel viveu em época igualmente conturbada – com a diferença de que tudo era patético. O Estado, obra de arte, construiu-se sobre a ilegitimidade dos governantes e de seus filhos, e sobre a violência que aumentou depois pelas guerras de religião. Mesmo a ilegitimidade e a violência eram patéticas – como dizia Burckhardt, só era possível assassinar o podestà quando ele ia à igreja rezar! Era uma época de desafios. Maquiavel os enfrentou – e até hoje se discute se buscou o apoio dos poderosos, se foi defensor dos tiranos ou amigo dos povos e adversário das tiranias. Pouco importa. O essencial é que enfrentou os desafios que o tempo lhe lançava à face. Mais de 200 anos depois de “O Príncipe”, Vicco lançava a Scíencia nuova, uma nova história que deixasse de lado a visão de um mundo matematicamente dedutível. Antes disso, Maquiavel havia cuidado de construir uma sciencia nuova – não para recontar a história –, que para ele se repetia em forma espiral porque a natureza humana era sempre a mesma, rapace, vil. Mas fez a sciencia nuova para cuidar de cose atti a fare, coisas aptas, capazes de fazer. Coisas que permitissem transformar o mundo, Virtù contra furore.

 

    O desafio dos tempos de hoje não se apresenta a mim. Meus barcos, não os quis incendiados para talvez voltar um dia para Avalon. O desafio é vosso. É encontrar dentro de vocês aquela centelha imortal que alimenta a dúvida diante de vocês próprios e do mundo oficial. É sobretudo vosso, porque é preciso ter pateticamente presente que o ensimesmamento, a perda da idéia de que as relações humanas são patéticas, de que o amor tem de ser patético para que possa ser belo, dramático, à vezes trágico; perder a idéia disso tudo é deixar perecer a semente que dormita sob a neve do mundo cruel que nos cerca a todos. Se a semente que está sob a neve, como lembrava Silone, se o grão morrer, vocês de humanos terão apenas a aparência.

 

    As cose atti a fare que vos esperam estão resumidas nos versos de Camões, que desprezamos porque é aborrecedor – e ao desprezá-lo, cortamos os laços com as gerações mais antigas: “Há os que nasceram para mandar/ e os que nasceram para mandados”. A escolha entre mandar e ser mandado definirá vossa posição na História. Mesmo que as personalidades não façam a história, ela só se faz por intermédio das personalidades. A vós pertence o futuro – desde que, como Maquiavel, Rousseau e Marx, sejais pensadores ativistas, pés na realidade, conhecedores dos princípios da guerra absoluta e de sua oposição à guerra real, preocupados com as transformações que se dão no mundo e dispostos a propor, cada qual a seu modo, COSE ATTI A FARE

    Muito obrigado

 

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