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O governador Itamar Franco sabe que não é Tiradentes e o Presidente Fernando Henrique Cardoso não é Dona Maria I, a Louca. Por saber disso, sabe que não será enforcado, desmembrado ao ser puxado por quatro cavalos nem sua propriedade demolida e a terra sobre a qual se erguia, salgada. Por isso, não ergue a bandeira do triângulo, nem espera levantar Minas ao som do “Liberdade, ainda que tardia”. Mas sabe que pode desafiar a União, exatamente porque se vive numa democracia e, talvez melhor do que ninguém, conheça o temperamento tranqüilo do Presidente. Há quem diga que o Presidente às vezes se imagina em Bizâncio e não percebe que as portas da cidade estão sendo arrombadas. Mas não é isso que importa. O que importa, de fato, é que há muito tempo não havia um Estado federado que desafiasse de frente a União.
Os que tanto falaram, desde que a Constituição de 1988 foi promulgada, em rever o Pacto Federativo – como se tal coisa tivesse um dia existido no Brasil – terão agora oportunidade não de revê-lo, mas de fazê-lo – e com os 5 mil municípios que integram a Federação, como reza a Constituição.
O gesto do governador Itamar Franco não é como um raio no céu azul. Os Estados vão mal das pernas, financeiramente, há muito tempo. O Norte, todo ele, se sente ocupado pelo Sul, quando não desprezado por nós, habitantes da “Bélgica”. O Nordeste se considera vítima do “imperialismo paulista”, que assusta parte do Sul. A coesão nacional é dada apenas pela Constituição e garantida, ainda, pela coesão, disciplina e hierarquia das Forças Armadas – que a sociedade timbra em olhar de esguelha. A crise não é do Pacto Federativo; é do Estado.
A crise começou com a falta de unidade espiritual do País. Explodiu com a moratória do governador de Minas Gerais. Mas o pavio foi acesso pelo Presidente José Sarney, quando decretou a moratória, e o País, ao ver de muitos, afirmou sua soberania perante o mundo embasbacado com tamanha audácia.
O entusiasmo de tanta gente com a moratória foi tanto que foram poucos os que perceberam que lá de baixo, de onde se lutou 10 anos contra o Imperador para fazer da província uma República, ergueu-se uma voz que dizia mais que o sr. Itamar Franco fala hoje: se a União pode decretar a moratória unilateralmente, por que os Estados não podem reivindicar dela o perdão de suas dívidas? Era o primeiro sintoma de que os Estados federados se consideravam potencialmente soberanos, e que, como todos os Estados soberanos têm iguais direitos, reclamavam para eles o poder que a União imaginava ter de mandar todos os seus credores se queixarem ao bispo.
Esse é um aspecto da crise do Estado – que poderá ser mais grave se ao rebelde das Alterosas se juntar alguém mais, alguém que tenha peso político para incomodar o Presidente da República. No tempo da moratória, houve quem sustentasse, apoiado em doutrinas do Direito Internacional, que se por um lado os pactos devem ser cumpridos, era preciso, por outro lado, ver que as condições em que eles tinham sido firmados haviam mudado e eles, portanto, não valiam. São os dois princípios entre os quais balança o Direito: Pacta sunt servanda e Rebus sic stantibus. Na sua querela – é pena que não seja, como na Idade Média, entre o Papa e o Imperador – com Fernando Henrique, Itamar não invoca nenhum desses princípios jurídicos. O que mostra que o Brasil político regrediu e não se busca no Direito nenhuma razão para sustentar as sem-razões de um gesto que afronta a União. Os mineiros no estilo Tancredo de novembro de 1955, insistindo no lema “retorno aos quadros constitucionais vigentes”, esses já não existem.
A crise de Estado está aberta. E assim continuará, mesmo que não haja outro 21 de abril, até que a União se imponha.
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