DOS CRIMES E DAS PENAS – 1

 

 

    Não pretendia entrar nesta discussão, embora há anos venha pretendendo escrever sobre “Dos crimes e das penas”. Seria um artigo (ou um ensaio?) em que discutiria o problema da perspectiva da eficácia e procuraria mostrar que há crimes que merecem tratamento severo por parte da sociedade porque de fato afetam aquilo que se poderia chamar de “os estados fortes da consciência coletiva”, isto é, chocam a opinião pública seja por sua brutalidade, seja por sua gratuidade, e que há crimes, especialmente alguns cometidos contra a propriedade (como, por exemplo, o estelionato) que causam apenas danos monetários (além da humilhação a que são submetidas as vítimas). Esses segundos crimes têm caráter diferente e por isso mesmo encontram menor reação da parte da sociedade e, portanto, merecem tratamento menos duro. A discussão que se trava agora sobre a redução da idade penal, na seqüência do assassinato dos dois jovens em Embu Guaçu, levou-me a sair do silêncio e dizer alguma coisa.

 

    Há anos que a sociedade brasileira, apesar dos protestos dos que defendem outra visão do problema penal, vem reagindo de molde a dar satisfação a quantos sustentam que penas mais graves são necessárias para coibir os crimes que atingem os estados fortes da consciência coletiva. A colocação, evidentemente, apóia-se em bases falsas – afinal, a pena por si só não impede o crime. Quem se precipitou (ou entrou conscientemente) na senda criminosa não está preocupado com a pena; sabe que está participando de um jogo em que suas oportunidades, dada a falência do Estado, são maiores do que as da sociedade. Não é o que deduz do noticiário que o informa que apenas 2% dos inquéritos policiais sobre homicídios são concluídos pela Polícia de São Paulo, chegando aos tribunais? A criação da figura do crime hediondo e o agravamento das penas cominadas aos que o praticam não responderam a visão alguma mais sofisticada do problema tratado por Beccaria sob o título “Dos crimes e das penas”. No calor do debate teria sido lícito perguntar se não se tinha em mente, ao propor o aumento das penas e a alteração das condições de cumprimento delas, mais o desejo recôndito de punir do que a vontade expressa de prevenir. Fosse qual fosse a intenção expressa ou escondida dos defensores do agravamento das penas, o fato é que a criação da figura penal do crime hediondo significou que a sociedade – ou parte dela, dependendo da perspectiva que se encarar o problema – decidiu que, apesar de o seqüestro (refiro-me àquele que se conclui sem morte da vítima) não poder ser comparado ao homicídio, ambos delitos entraram na mesma categoria e passaram a receber tratamento senão igual ao menos semelhante. Diante dessa identidade entre dois atos diversos na intenção e na execução, é o caso de perguntar se não há, ou se não houve, na discussão deste problema, uma certa dose de hipocrisia e uma recusa em encarar os fatos de frente. Não o crime, mas as circunstâncias em que se forma o criminoso e o interesse que a sociedade de fato tem em recuperá-lo.  

 

    A discussão atual não é nova, vem de algum tempo, e gira em torno da redução da idade penal de 18 para 16 anos de idade. Ao ouvir a reação das autoridades (especialmente do Ministério da Justiça, a começar por seu titular) às declarações do arcebispo de Aparecida, Dom Aloísio Lorscheider, favoráveis à redução, e ao clamor do pai da jovem assassinada depois de brutalizada, comecei a perguntar-me se estavam falando e dizendo. Foi assim que Amaral Neto, em 1955, comentou uma entrevista do General Teixeira Lott, que tinha deposto dois Presidentes da República para restaurar a democracia vigente: Falou, mas não disse. O que falam indica que estão vivendo num país que nada tem a ver com o Brasil, além de transparecer de suas declarações uma visão idílica, lacrimosa do crime. Não dizem, mas falam de modo a deixar subentendido que a sociedade deve concordar com eles em que o criminoso é uma vítima da sociedade. Leram o seu Rousseau de almanaque e se esqueceram de que o Cidadão de Genebra tinha estabelecido que quem rompe o pacto social não pode pretender ser garantido por suas regras. Que falam? Para reduzir a criminalidade é preciso aparelhar as polícias, mudar a política carcerária, reformar o Judiciário. E deixam a impressão de que depois da reforma do sistema prisional, quem por ele passar não estará sujeito àquilo que o cinema tratou tantas vezes e que qualquer estudioso sabe de cor: o inferno é lá, por melhores que sejam as condições – que, aliás, não serão atingidas nunca. Esquecem-se, parece, de que ao lado do Palácio da Justiça, em Brasília, está o Ministério da Fazenda, que diz aos Governadores que não pagará restos apagar de 2002 e que talvez nem os de 2003 serão honrados, e que não diz, porque não precisa dizer, que as verbas para construir as prisões federais prometidas no início do governo não vão sair tão cedo. Mas, esqueci-me de que a Fazenda e a Justiça não se comunicam… Há outra pérola, nestas reações: o secretário nacional de Segurança Pública fala alto e bom som que existem instituições que cuidam de menores, em São Paulo (Febem) e Rio de Janeiro (esqueci-me do nome do asilo que mencionou), que não respeitam o Estatuto da Criança e do Adolescente. Em outras palavras, não cumprem ou violam a lei. Alguém faz alguma coisa para que a lei federal seja cumprida? Parece que ninguém quer se incomodar com isto; o importante é ser contra a redução da maioridade, porque é o que hoje é politicamente correto e agrada a ONU, que mais uma vez vem nos dizer, por um enviado seu a nosso (do Governo) convite, que a reforma do Judiciário é importante para resolver o problema da prostituição infantil. A Polícia, essa passa incólume pelas críticas.  

 

    Mais fabulosas são as declarações de colega meu de Faculdade, do Núcleo de Estudos sobre a Violência da USP. Ao ouvi-lo falar sobre o que é necessário fazer para reduzir a criminalidade e integrar o menor na sociedade, praticamente peguei em armas. É que ele tem razão no que diz – com um pequeno pormenor: para levar a cabo a reforma que preconiza será preciso chamar o camarada Lênin para pregar uma vez mais que apenas a mudança das condições sociais em sua totalidade permitirá a criação do homem novo.  

 

    Todos falam isto e aquilo e esquecem de relacionar as palavras com os fatos. Paciência.  

 

    Espantou-me mais ainda, pois tinha atrás dela toda uma instituição que deve lembrar-se daquilo que lhe dá poder sobre as pessoas, a declaração de uma senhora que falava em nome da CNBB. Radicalmente contra a redução da maioridade penal. De minha poltrona, fiquei com vontade de perguntar à imagem que via na televisão: o menor de 14 anos que cometer um pecado capital, a “gula”, por exemplo, ou violar o Sexto Mandamento (Não pecar contra a santa castidade) é pecador, ou não? Sabendo-se que para ser pecador é preciso ser responsável, isto é, ter consciência de que se está violando a Lei de Deus ou a da Igreja. Nos meus tempos de jovem, sabia que aqueles que não eram batizados poderiam ir para o Limbo desde que não violassem a Lei Natural. Mais: aos sete (7!) anos, a criança era crismada e entrava em pleno gozo de seus deveres para com o Senhor, isto é, ao renegar, por voz própria, Satanás e suas pompas, sabia o que era o pecado. Se pecasse e não se confessasse ou arrependesse, e morresse em pecado, Inferno para o pobre coitado. Há não muitos anos, ao assistir ao batizado de meu neto, descobri que a Igreja tinha prestado atenção ao fato de que a criança de sete anos é muito nova para assumir todas aquelas responsabilidades que a crisma traz com ela. Mas o jovem de 14 anos, esse não; esse já é responsável. Tanto assim – e quase desmaiei de susto ao ouvir o padre dizer estas coisas – que aos 14 anos meu neto poderia escolher outra religião que não a Católica, Apostólica, Romana! Dir-se-ia que o padre era “moderninho”, uma infiltração do Demo naquela paróquia. Que fosse, mas os 14 anos para a Crisma eram o fato relevante. A maioridade perante Deus dá-se aos 14. Por que perante César, só aos 18? Ou a Teologia é coisa séria e a evolução dos princípios responde de alguma maneira à inspiração do Espírito Santo, ou nada mais é sério.  

 

    A Sra. Arns, responsável pela Pastoral da Criança, é a mais lúcida de todos os que falam sobre o assunto: se o menor de 16 anos pode votar, portanto é dado como responsável, será irresponsável quando comete um crime? Este, diz ela, é um dos problemas que deve ser discutido.

 

    Discuta-se, pois, o problema com seriedade, cada qual atento aos seus princípios e àquilo que deseja ser o futuro de sua sociedade. Na Inglaterra, como os ingleses são muito frios, parece que não há esse problema de maioridade. Crime é crime e como tal deve ser julgado. Se a idade é atenuante, quem vai dizer é o psicólogo forense.

 

    O que me preocupa são a hipocrisia e o politicamente correto que recobrem este debate, que é sério. A meu ver, tudo vai acabar como falou (perdão, neste caso é “disse”) o Governador de São Paulo: cuidar da redução da maioridade penal dá muito trabalho, pois será preciso reformar a Constituição. Será mais fácil emendar o Estatuto da Criança e do Adolescente, que é magnífico, mas precisa ser atualizado.  

 

    O Estatuto prevê reclusão máxima de três anos para o menor que matou a estudante. Na linha do que disse o Governador, vamos reformá-lo. No lugar de três, poderemos colocar, por maioria simples no Congresso, cinco – ou seria melhor dez anos, desde que o psicólogo forense atestasse que o menor tem algum desvio psicológico sério?

 

    O clamor da sociedade, isto é, dos pais das vítimas vai continuar. A solução do Governador é politicamente viável e atende a todo mundo. Assim, não se discutirá mais o problema e eu, observador não engajado, não precisarei escrever meu artigo (ou ensaio?) sobre “Dos crimes e das penas”. Poderei, então, dormir em paz.

 

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