E Fellini que me perdoe pela apropriação do título de seu filme.
Nas orquestras, o primeiro violino tem uma função toda especial. É ele quem, os músicos já em seus lugares, faz soar o la-a-á… para que todos os instrumentos sejam bem afinados. Em muitas peças orquestrais, é ele quem faz o solo. Nas emergências, substitui o maestro. É o spalla.
O maestro é quem dá vida à orquestra. É a sua especial e única maneira de ler a partitura o que faz que uma sinfonia possa ser ouvida como obra de arte – mas, sem gênio, fará dela a mera sucessão de sons relativamente bem ajustados, e tudo soará como se a orquestra fosse regida pelo metrônomo. É, pois, o maestro quem dá vida à orquestra, dizíamos. Em Praga, durante certo período, tentou-se que verdadeiras obras de arte fossem apresentadas por orquestras sem maestro. Talvez um experimento extremo de realismo socialista chegado às artes musicais, que malogrou, e as orquestras voltaram a executar obras com maestro e spalla, no tradicional figurino, cada qual na sua função, um dando apoio ao outro.
Apesar de sua relevância, o spalla poderá estar ausente. Outro violinista ocupará seu lugar. As orquestras são sempre afinadas a partir de um diapasão e o límpido som do oboé, se presente, poderá destacar-se encarregando-se de dar o la-a-á…aos demais componentes. O maestro também poderá faltar − mas, então, a obra será executada de modo diferente. Não que a partitura seja violentada ou deturpada. O que sucede é que é a leitura que um maestro faz do texto, acentuando os metais ou diminuindo sua intensidade, por exemplo, é o que distinguirá a sua regência daquela de um outro qualquer e de quem venha substituí-lo. Quando o maestro de uma orquestra está ausente, ela se ressente, e será necessário que o substituto tenha autoridade musical para fazer que ela dê o rendimento esperado por ele e pelo público – e, sobretudo, pela crítica; ou a orquestra ter-se-á acostumado com as indicações e as exigências do maestro titular e as obedecerá por inércia.
A ALBA − Alianza Bolivariana de los Pueblos de América − é como uma orquestra. É uma pequena orquestra, em virtude do número de seus membros, é pouco mais que uma orquestra de câmara, embora a visão de futuro de seu maestro, o Coronel Chávez, a tenha na conta de ser capaz de executar a “Abertura 1812” com o esplendor que Tchaikovsky nos pretendia transmitir, associando-lhe canhões para que o hino imperial, ao final, de fato simbolizasse a vitória dos povos da Santa Mãe Rússia contra o Império Napoleônico. Em meio à crise econômica, que começa a atingir a Venezuela, Chávez se dedica a acompanhar a afinação dos instrumentos e à delicada tarefa de aumentar o número dos que desejam derrotar, com o barulho que fazem, o novo Império chamado de o Grande Satã — o que, às vezes, uma política de alianças que realizam com os aiatolás do Irã explica.
Apesar de todos os esforços de Chávez, a orquestra é pequena – apropriada a pequenos ambientes. E, prefigurando a desejada próxima grandeza, nela se destaca um spalla: o Presidente Luis Inácio Lula da Silva, que não participa de todos os ensaios, mas tudo faz para que as partituras da ALBA lidas e relidas por Chávez sejam bem executadas. Partituras que sabemos que foram escritas pelo próprio Chávez − a menos que o crítico ferino e mordaz afirme que são produzidas nas reuniões do Foro de São Paulo.
As orquestras, as verdadeiras orquestras, podem viver um drama que as desqualifique perante o respeitável público quando o spalla não atende às instruções do maestro, seja por não havê-las compreendido, seja por desejar, mesmo em presença de uma batuta que tenha o controle da atenção dos instrumentistas, ir além delas e mostrar a todos que ele sozinho é capaz de conduzir o espetáculo. Os acontecimentos em Honduras representaram esse momento de crise — crise que foi agravada porque um dos membros da orquestra, ressentido por ter sido afastado, fez questão de desafinar seu instrumento ou tocá-lo tão forte que o som do conjunto não mais podia ser ouvido com nitidez. Lula e Zelaya interromperam, assim, o ensaio da orquestra da ALBA.
Os resultados aí estão: Zelaya não sabe se invoca o instituto do usucapião para permanecer de férias na Embaixada do Brasil, ou se deve se conformar, finalmente, à sua condição de asilado político para que não se submeta a julgamento pelos Tribunais de seu país, acusado que é de mais de uma dezena de crimes − de responsabilidade, alguns, de violação da Constituição, outros. Os estragos que poderia produzir na apresentação da orquestra da ALBA, Zelaya produziu. E os produziu porque não soube ler a partitura que Micheletti lhe propôs, na qual estava bem dito que o Congresso decidiria sobre a sua reintegração à Presidência. A partitura de Micheletti, embora escrita em outra clave que a de sol, era muito clara; mas Zelaya, afobado, quis saber apenas do trecho que lhe caberia tocar no festival da OEA; esqueceu-se de atentar para alguns compassos ocupados pelas cordas, em pianíssimo, que deixavam a solução de tudo para o Congresso depois que fossem ouvidas instituições como a Suprema Corte de Justiça e outras, a rigor, a Procuradoria Geral da República. Por ser apressado e pretender fazer um solo improvisado de saxofone que tudo mais abafasse, esqueceu-se das cordas − com o resultado já de todos conhecido.
Lula, este, destoou da orquestra. Não levou em consideração que ela era tão pequena e que ele era um primeiro violino encarregado de cumprir responsabilidades definidas. Como um cavaleiro andante em defesa de uma donzela afrontada, deixou também de lado as cordas e o arco, e soprou a tuba, esperando assim ser aplaudido por toda a platéia americana e consolidar sua fama de virtuose. Não percebeu que a partitura de Chávez exigia exatamente isto − que todos vissem que o spalla tinha pretensões a condutor de orquestra. Não sabendo ler essa partitura, a de Chávez, muito menos ler a dos grandes compositores que ilustram a comunidade jurídica internacional, com um fortíssimo muito desafinado invadiu a soberania de Honduras. Tão forte e tão desafinado foi o som que chegou a incomodar os delicados ouvidos de Obama e os da Sra. Clinton, amantes do jazz, já que ambos se sentiram obrigados a se preocupar com um pequeno Estado na América Central quando a grande estratégia dos Estados Unidos está voltada a outros países (grandes!) e outras regiões (perigosas!). É muito difícil acertar o compasso − ou seria o passo? − quando se tem de cuidar, ao mesmo tempo, da Índia e da China, do Iraque e do Afeganistão. Os Estados Unidos foram e vieram; juntaram-se ao coro dos aflitos, à grita de “golpe!”, mas logo perceberam que as coisas poderiam ser, na realidade, um pouco diferentes. E acabaram por declarar que as recentes eleições em Honduras — condenadas em bloco pelo Mercosul — processaram-se de forma transparente, embora não resolvam o problema. Mas qual é o problema que essas eleições não resolvem? O seu, dos Estados Unidos, não o de Honduras, que agora pretende inaugurar Embaixadas na Índia e na China, remanejando, para isso, o pessoal lotado nas Embaixadas que se dispõe a fechar no Brasil, na Argentina, na Espanha e na Venezuela.
A partitura escrita por Chávez não apresentava mistérios para quem tivesse cursado o conservatório. O spalla, com toda a sua habilidade e o convencimento que advém do dito reconhecimento de seus méritos pela crítica internacional, não teve tempo ou condições de freqüentar aulas. Toca de ouvido, confiando numa grande intuição e no que pôde aprender com suas leituras nos anos de líder sindical e treinar em audições na Presidência da República. Agora, não sabe que fazer, a não ser voltar a tentar decifrar as partituras de Chávez, não só a do minueto escrito para ser apresentado em Honduras, mas também a da sinfonia dedicada à América bolivariana. Lula ainda será sempre o spalla, apesar de ter, atrás de si, todo o prestígio da grande orquestra, esta, sim, sinfônica que é o Brasil. Terá, agora, porém, que ouvir, sentado e comportado, a pequena Honduras executando um solo de harpa em seu pequeno, mas respeitado e bem aproveitado espaço diplomático soberano e criando pequenos problemas (que são problemas) para os Estados Unidos, para o Brasil e para o Coronel Chávez.
O tempo dos ensaios terminou. De hoje em diante, o pano irá levantar-se todas as noites para as apresentações de orquestras de câmara e grandes orquestras sinfônicas — uma dessas, os Estados Unidos, que, sem um grande maestro à frente, tem como spalla a Sra. Clinton, pouco habituada a lidar com os que sabem ler e compreender o sentido que tanto as palavras quanto o solfejo têm e podem ter — tal como ocorreu quando Micheletti, assoviando e girando um reco-reco, resolveu brincar de ditado musical com Zelaya.
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