Este artigo é uma reflexão sobre a crise do Estado brasileiro. É mais uma tentativa de compreensão do que um documento de afirmação.
Para compreender essa crise, é necessário fazer o contrário do que dizia Rousseau no “Discurso sobre a origem da desigualdade”: afastar os livros, desde que o que eles digam não corresponda aos fatos que assaltam o investigador. O importante é compreender aquilo que seja de fato a democracia no Brasil. O que se exige do investigador é que ele se preocupe mais com a realidade e menos com a relação entre essa realidade e as teorias. Só assim será possível compreender o espetáculo de eleições livres das quais participaram homens e mulheres acima dos 16 anos, alfabetizados ou não, e que depositaram, por esmagadora maioria, todas as suas esperanças na pessoa do Presidente eleito que, a rigor, no aparelho constitucional e político do país, é apenas uma figura – embora a mais destacada delas – daquele grupo social e político que Wright Mills chamou de “elite do poder”. A uma eventual conclusão só será possível chegar se nos fixarmos em alguns elementos relevantes da história, das instituições e da sociedade.
Não cabem dúvidas, no entanto, ainda que se deva dar menor importância às teorias, de que uma teoria deverá inspirar este estudo. Nem que ela seja considerada como Clausewitz preconizava em seu famoso livro “Da Guerra”: uma teoria deve auxiliar o Chefe militar na elaboração de seu plano de guerra. Diz Clausewitz a certa altura: “Mas o primeiro propósito de toda teoria é por ordem nas idéias e conceitos mesclados uns aos outros, e muitas vezes, é preciso dizê-lo, muito confusos. É apenas quando se consegue estar de acordo sobre o significado dos termos e das noções é que se pode esperar progredir com clareza e facilidade na análise dos problemas, e o autor pode estar seguro de colocar-se sempre no mesmo ponto de vista que o leitor”
Procedamos, pois, por partes.
A realidade é um corpo político de 180 milhões de pessoas e um corpo eleitoral de mais de cem milhões de pessoas, no qual se incluem indistintamente pessoas de todas as classes sociais, independentemente de renda e status, e de todas as idades a partir dos 16 anos (como sabemos, o voto é obrigatório para todos os que alcançaram os 18 anos e facultativo para os que ultrapassaram os 70). Nesse imenso corpo eleitoral, a presença de analfabetos ou semi-alfabetizados é marcante, superando em algumas regiões a marca dos 50%. Os partidos que disputam a preferência dos eleitores são 14, com direito a minutos ou segundos de propaganda gratuita na televisão e no rádio conforme o número de deputados federais que possuam. A lei que regula as eleições é nacional, ou seja, as mesmas regras se aplicam a estados desenvolvidos, como o de São Paulo, e subdesenvolvidos, como Amazonas ou Roraima. A eleição do Presidente e dos Governadores é majoritária em dois turnos de votação; a dos senadores (renovaram-se dois terços do Senado nesta eleição) é majoritária em um único turno; a dos deputados é proporcional num único turno. Na eleição proporcional, o “distrito eleitoral” é todo o estado – o estado de São Paulo, por exemplo, tem uma superfície de 248.256 Km2 e mais de 20 milhões de eleitores – e os candidatos são obrigados a buscar votos em todo a extensão de seu território. O sistema proporcional é complexo, vigorando desde 1946: o eleitor vota no deputado ou apenas no partido; a votação final do partido é a soma dos votos dados pessoalmente aos candidatos mais os votos dados apenas ao partido. É a partir desse total que se saberá se o partido alcançou ou não, em cada estado, o quociente eleitoral, que é o resultado da divisão do número de votos válidos pelo número de cadeiras que cada estado tem na Câmara dos Deputados. Haverá sempre sobras nessa divisão, e a partir delas se refazem cálculos matemáticos até que se preencham todos os mandatos. Esse sistema permitiu, por exemplo, que no Estado de São Paulo, o partido PRONA elegesse seis deputados porque um deles, Dr. Enéas, obteve pouco mais de 1,5 milhão de votos enquanto o sexto eleito teve apenas 150.
Para que toda essa descrição do processo eleitoral que é conhecido de todos? Para assinalar que, na realidade, há três tipos bem distintos de eleições: a majoritária de dois turnos (podendo ser um apenas, se o candidato receber mais de 50% dos votos válidos no primeiro turno) para a Presidência da República e o Governo dos estados, a majoritária de um turno para o Senado e a proporcional de um turno para a Câmara dos Deputados. Assinale-se que o Presidente da República é eleito com os votos obtidos em todo o Brasil, enquanto senadores e deputados são representantes dos estados. Graças a isso, pode-se dizer que a legitimidade do Presidente é politicamente maior do que a dos deputados e senadores, embora legalmente seja a mesma para todos. A diferença no tipo de eleições marca essa diferença política entre elas: o eleitor empresta relativa importância à eleição para senador, praticamente nenhuma ao pleito para deputado federal, e a eleição que de fato para ele tem importância é a do Presidente da República. Isso porque a percepção que a maioria dos eleitores tem dessa figura impar é a mesma que teria de um Rei, isto é, de alguém que tudo pode e se mais não fizer será porque os políticos (senadores e deputados) criarão dificuldades, pois estes são corruptos, não trabalham e não pensam no País.
O processo eleitoral, especialmente o fato de que o distrito eleitoral tenha praticamente um número próximo daquele dos habitantes do estado, é o primeiro fato a ser observado, porque impede não que o candidato tenha maior contato com seu eleitor, mas sim impede que o eleitor saiba se seu voto foi decisivo para a eleição daquele em quem votou e também qual a importância do município em que mora para a sua eleição. Essa é a primeira razão objetiva, e objetiva porque legal, que faz que a classe política (Mosca) não tenha contatos orgânicos, organizatórios ou ideológicos com o eleitorado, e que a “elite do poder”, recrutada entre indivíduos que pertencem a essa classe política, não seja uma representação orgânica da sociedade. É difícil, numa situação como essa, procurar o deputado que seja o “intelectual orgânico” (Gramsci) de uma classe social qualquer. Quando muito, será o representante corporativo de um grupo econômico – e o caráter não-orgânico de sua representação política e social será dado pela atitude que tomar na Câmara ou no Senado, por ocasião de votações de projetos de lei. Note-se que não desconheço que há deputados que se elegem porque de fato representam grupos de interesse: funcionários (de qualquer Poder) ou grupos sociais como os religiosos. No geral, porém diria que a observação feita é válida.
Para acentuar ainda mais esse caráter não-orgânico da representação, acrescente-se que jornais, televisão e rádio praticamente não dedicam espaço e tempo a noticiar resultados de votações na Câmara e Senado (exceto o resultado dos grandes projetos, ou os de grande interesse público, como agora o Estatuto do Desarmamento) ou a posição dos senadores e deputados dos estados nessas ocasiões, ou suas opiniões.
São essas características que produzem uma democracia sem caráter público, na qual nem se sabe se debates acontecem ou não acontecem nem se conhece quais idéias e posições foram defendidas por este ou aquele representante. A democracia brasileira é uma democracia em que as atividades do Congresso são ignoradas pela maioria dos eleitores e em que as opiniões políticas de deputados e senadores são desconhecidas – exceto quando certos problemas comovem a opinião pública. Mas, ainda assim, não há uma grande publicidade em torno das posições dos políticos. Há, isto sim, muita publicidade em torno das posições e opiniões do Presidente da República.
Este quadro, no entanto, é recente – vale dizer, desenhou-se a partir do fim de 1968, quando foi editado o Ato Institucional nº 5, o mais perverso instrumento de exceção editado por qualquer Governo militar desde 1964. Até 13 de dezembro de 1968, quando o Governo eliminou a Constituição de 1967, os jornais publicavam os debates na Câmara e Senado. A partir desse momento, mesmo que o Congresso permanecesse aberto e funcionando com o consentimento do Governo militar, nenhum jornal dedicou espaço ao que reputava uma atividade sem importância. Quando os Atos Institucionais perderam eficácia a 1º de janeiro de 1979, o desprezo da mídia pela atividade do Congresso já se havia consolidado. Isso por um lado; por outro, para compensar a ausência de deputados e senadores às sessões, os regimentos da Câmara e do Senado foram alterados de forma a permitir que apenas as lideranças dos partidos votassem no lugar dos plenários. A alteração dessa prática não diminuiu, no entanto, o poder dos líderes sobre os back benchers. A democracia, que já não tinha caráter orgânico, perdeu representatividade.
Há um outro aspecto que deve ser assinalado para que se compreenda o funcionamento da instituição “eleição” – raramente, o candidato a senador ou deputado precisa expor suas idéias aos eleitores. A extensão do distrito eleitoral (todo o estado) obriga-o a concentrar esforços de propaganda (e dinheiro) naquelas cidades e regiões do estado em que, supõe, terá mais votos (ou em que de fato obteve expressiva votação na eleição anterior), sem desprezar, no entanto, as demais. Essa “concentração” de esforços não se traduz em debates sobre programas ou a situação geral do país. Esse debate, quando há, faz-se entre o candidato e as elites (pequenas em número) econômicas ou sociais da cidade; e, normalmente, os esforços de propaganda concentram-se na distribuição de dádivas aos eventuais eleitores. Esse sistema de “concentração” e “distribuição”, somado à confecção de camisetas com o nome do candidato, de faixas, banners e cartazes, e à contratação de pessoal para fazer propaganda (os “cabos eleitorais”) faz que uma eleição para deputado federal, seja em São Paulo, seja no Piauí, custe ao candidato e aos seus financiadores quantias que variam de um a dois milhões de dólares… Sem dúvida, pela lei eleitoral, os candidatos têm direito a propaganda gratuita na TV e nos rádios. Quem seleciona a mídia e o tempo que o candidato falará, no entanto, é a direção do partido, que também teve poder para escolher este e não aquele candidato. A transformação dos partidos democráticos em oligarquias (Michels) é, assim, completa – e a falta de caráter orgânico e de representatividade dos candidatos se evidencia pelo teor da propaganda na TV e na rádio. Durante essa propaganda, não se discutem idéias: os candidatos simplesmente se limitam a dizer que a situação é boa ou má, e que o Governo é responsável pelo que vai mal ou pelo que vai bem; ou que o candidato, que tem pouco poder de decisão no Congresso, fará isto ou aquilo em favor dos pobres e da população em geral. Não existem partidos como na Europa, situação agravada pelo fato de que a lei permite que um deputado ou senador se eleja pelo PFL e no dia seguinte à sua posse se transfira para o PTB, ainda que os partidos tenham programas diferentes. O PT é caso à parte, que merece análise em separado.
Tal descrição permite que perguntemos: o processo político e eleitoral no Brasil é democrático? Pergunta de fácil resposta, se tomarmos os critérios pelos quais Dahl, num livro que ele mesmo reconhece como um “guia”, estabelece para caracterizar a democracia. Em “A democracia”, capítulo 4, “Os critérios de um processo democrático”, ele afirma que os critérios são cinco:
1. Participação efetiva. Antes de ser adotada uma política pela associação, todos os membros devem ter oportunidades iguais e efetivas para fazer os outros membros conhecerem suas opiniões sobre qual deveria ser esta política.
2. Igualdade de voto. <…> todos os membros devem ter oportunidades iguais e efetivas de voto e todos os votos devem ser contados como iguais.
3. Entendimento esclarecido. Dentro de limites razoáveis de tempo, cada membro deve ter oportunidades iguais e efetivas de aprender sobre as políticas alternativas importantes e suas prováveis conseqüências.
4. Controle do programa de planejamento. Os membros devem ter oportunidade exclusiva de decidir como e, e se preferirem, quais as questões que devem ser colocadas no planejamento. (…).
5. Inclusão dos adultos. (…) a maioria dos adultos residentes permanentes deveriam ter o pleno direito de cidadãos implícito no primeiro de nossos critérios. (…).
Exceto o item quatro, porque não há planejamento no Brasil, todos os critérios são atendidos. Se o item 3 não é uma realidade, não será culpa do processo, mas dos candidatos… Mas a propaganda dos candidatos à Presidência tende a suprir em parte o descaso dos candidatos a senador e deputado por esta necessidade de esclarecimento. Nas campanhas presidenciais, colocam-se problemas gerais, embora a discussão seja sempre de pouca profundidade. A democracia, portanto, existiria no Brasil – e é assim que todos vêem o processo, esquecidos de seu caráter não-orgânico, de sua falta de representatividade e do caráter oligárquico dos partidos…
O que podemos concluir a partir desses dados é que há um enorme divórcio entre o corpo eleitoral e a representação. A classe política não representa os eleitores que, com razão, não se sentem representados por deputados e senadores. A representação real e de fato é do Presidente da República – o que indica que, além do divórcio entre os eleitores e a classe política, há um outro, entre o Presidente e o Congresso. O divórcio entre os eleitores e a classe política não significa, porém, que as eleições para o Congresso não possam traduzir sentimentos difusos na população. A derrota do Governo militar nas eleições de 1974 para o Senado em todo o país e, nas eleições municipais de 1976, nas capitais dos Estados, indica que os eleitores encontram nas eleições uma maneira de expressar seu descontentamento com a situação política, ou de aprová-la. Pode-se dizer, no entanto, que tudo se passa como se a eleição fosse um termômetro que medisse a temperatura política do país: há momentos em que a temperatura é alta, mas são de curta duração. Esgotados esses momentos, o termômetro só registra baixas temperaturas, e a vida volta a seu leito normal, isto é, meramente corporativo e não político (Gramsci).
Não poderemos responsabilizar apenas os Governos autoritários militares (que se estendem de 1964 a 1º de janeiro de 1979 quando os atos de exceção perdem eficácia) por esses divórcios que afetam a essência da democracia, tal como se entende esse regime na teoria. Foram responsáveis, isto sim, pela perversão do sistema, na medida em que o regime vigente foi, na sua essência, a antítese da democracia, embora respeitasse formalmente muitos elementos do que seria um regime democrático. Na essência, a concentração dos poderes legislativo e executivo nas mãos do Presidente da República (houve um período em que o país foi governado por uma Junta Militar) e o poder que o Presidente tinha de cassar mandatos e de suspender direitos políticos – além do poder de colocar o Congresso ou assembléias legislativas estaduais em recesso – fizeram do regime de fato uma ditadura, caracterizada também pela censura que se exerceu erraticamente sobre a música popular de protesto, sobre a imprensa e sobre determinado tipo de literatura política. Mas considerando-se os aspectos formais, os anos em que uma longa noite hobbesiana recobriu a vida política e cultural podem ser considerados democráticos: havia dois partidos e a oposição podia ter maioria nas casas legislativas, como teve no Senado depois de 1974; as eleições eram em grande medida livres e do corpo eleitoral participavam, como na república democrática de 1946, todos os brasileiros maiores de 18 anos e alfabetizados; consentia-se que a oposição se organizasse desde que não contestasse pelas armas o regime e que a imprensa noticiasse tudo aquilo que, topicamente, a censura não proibia. Se a partir de 13 de dezembro de 1968 o habeas corpus foi suspenso para aquilo que se considerava “crime político”, nem por isso deixou de ser concedido para os crimes comuns. Se os tribunais não podiam julgar causas políticas, podiam pronunciar-se sobre causas civis, criminais (comuns), trabalhistas e tributárias – inclusive em ações contra a União. Esse caráter híbrido de um regime que durou de fato e juridicamente 15 anos, mas no imaginário dos políticos, inclusive da Universidade, 25 (pois só se realizaram eleições diretas para a Presidência em 1989, e para Governadores de Estado em 1982) impediu que se desenvolvesse no corpo político um desejo mais vivo de que se praticasse de fato a democracia como sempre foi apregoada pelas elites, liberais e até mesmo conservadoras, que governaram sempre o Brasil. Foi esse caráter híbrido que permitiu que, apesar das manifestações em favor das eleições diretas (1982) serem de massa, o regime militar chegasse ao fim com relativa tranqüilidade: convocou-se uma Assembléia Constituinte (e os juristas discutiram se ela poderia ter poderes constituintes e congressuais normais), votou-se uma Constituição dando aos menores de 16 anos e aos analfabetos o direito de voto, ampliando o poder dos sindicatos e, entre outras medidas de caráter populista, fixando os juros reais em 12% ao ano… As leis eleitorais continuaram as mesmas na essência: decidiu-se (já antes da reunião da Assembléia Constituinte) que as eleições continuariam proporcionais, eliminando-se o voto distrital misto (como na República Federal da Alemanha) porque a introdução dessa reforma tinha sido obra do Governo Geisel, e a obrigatoriedade dos eleitos pertencerem aos partidos que os tinham elegido, obrigatoriedade essa imposta pelo Governo militar, determinações essas que hoje novamente se discutem.
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