Em minhas andanças profissionais pelo Estado-Maior do Exército, quando exercia as funções de chefe de redação do “Estado de S. Paulo”, costumava ouvir uma expressão: “Isso pode fermentar”.
Com essas palavras, o General com quem conversava traduzia sua avaliação de um fato recente, fosse a declaração de alguém com poder ou prestígio, fosse um acontecimento. Meu interlocutor partia da certeza de que o que comentava não teria conseqüências imediatas nem mudaria a situação política. Mas que poderia “fermentar”, isto é, repercutir, servir de motivo de aglutinação de pessoas e grupos, produzindo conseqüências políticas de maior ou menor relevo.
Dois fatos me levam, interrompendo a série de considerações que deveria prosseguir fazendo sobre o instituto do decreto-lei, a escrever a respeito da impressão que tenho de que eles “fermentarão”: a carta aberta do General Luis Cesário da Silveira Filho, ex-Comandante do Comando Militar do Leste, ao Ministro da Defesa, e o voto do Ministro Marco Aurélio Mendes de Farias Mello no STF sobre a demarcação da reserva Raposa/Serra do Sol, chamada por alguns de “terra indígena”.
Explico por que tenho a carta publicada e o voto enunciado na condição de fatos que podem “fermentar”, contribuindo para alterar a relação de forças que sufoca a Política nacional e impede a organização de uma real oposição ao sistema de poder que o atual governo e quantos se beneficiam do status quo vêm reforçando desde que Luis Inácio Lula da Silva se elegeu Presidente da República.
O voto do Ministro Marco Aurélio “fermentará” porque aponta os erros políticos e jurídicos cometidos por quem delimitou a reserva Raposa/Serra do Sol. O Exército, protagonista, já se pronunciara pela voz do General Heleno, Comandante do Comando Militar da Amazônia. Agora, aos argumentos daquele chefe militar, preocupado com a soberania nacional, será possível acrescentar os jurídicos, tão importantes neste país de bacharéis.
A carta do General Cesário não ultrapassou o limite do proibido pelos regulamentos disciplinares — conteve-se nele, mas fez questão de colocar as grandes questões que dizem respeito ao futuro das Forças Armadas.
O General Cesário falou em nome de uma tradição que, a meu ver, se reveste de dois sentidos: um, o de que o Exército, na história do Brasil, sempre participou das grandes decisões; outro, o da atuação do Partido Fardado, do qual, para mim, o General Orlando Geisel foi o último representante de quatro estrelas. E soube, com um toque de classe já evidente em seu discurso de despedida do Comando Leste, deixar claro em nome de que tradição falava.
Não simplesmente para recordar o passado foi que, em sua despedida, ele mencionou os nomes dos Generais Emilio Garrastazu Médici (que, na condição de comandante da AMAN, engajou os cadetes no 31 de março de 1964) e Orlando Geisel, que sempre simbolizou a oposição à forma como o irmão, o General Ernesto, Presidente da República, conduzia o processo de abertura política que levou aos Governos Sarney, Collor de Mello, Fernando Henrique Cardoso e Luís Inácio Lula da Silva. Voltou a citar Orlando Geisel em sua carta ao Ministro Jobim, sem afastar-se da tradição ao citar também o General Octávio Costa, homem de confiança do Presidente Médici.
O Ministro Jobim, em entrevista que concedeu ao JB, fez questão de deixar claro aquilo que o Executivo de que faz parte pensa das Forças Armadas, especialmente do Exército. No que, aliás, apenas reiterou o que o Presidente Lula disse no encontro formal com o corpo de Oficiais Generais, o almoço de confraternização do fim de ano de seu primeiro mandato: que ali estava um “bando de Generais”. Se o Presidente da República hostilizou, injuriando os Oficiais Generais da Ativa, o Ministro Jobim acrescentou agora o insulto à injúria, dirigindo-os à Reserva: “O General que declarou a insatisfação não tem nada a administrar porque é absolutamente indiferente, foi para a reserva, se liberou”. Jobim comentava, com a falta de delicadeza que lhe é própria e recorrente, as observações que o General Cesário fizera em documento lido na última reunião do Alto Comando do Exército, criticando a Estratégia Nacional de Defesa elaborada em conjunto com Mangabeira Unger.
Em sua resposta, o General Cesário fez questão de reafirmar coisas que não se ouviam há algum tempo: que não há dois Exércitos, o da Ativa e o da Reserva. “Há apenas um, o de Caxias, que congrega, irmanados, os militares da Ativa e da Reserva”.
A carta do General Cesário não deve ser tomada como a resposta de um General ofendido por um Ministro civil. Ela marca uma posição: “O Exército brasileiro sempre foi um ator importante na vida brasileira e, ao longo da história, teve o papel de interlocutor, indutor e protagonista”. É esta a mensagem que o General Cesário transmite a seus pares e a todos os Oficiais: o Governo Lula da Silva, desde sempre e agora, com a Estratégia Nacional de Defesa, pretende fazer do Exército a gendarmaria a que, desde Vargas, muitos querem reduzi-lo, transformando-o, de interlocutor, indutor e protagonista dos assuntos de Estado, em força subalterna submetida aos governos.
Lembremo-nos de que o Exército foi afastado das decisões de Estado já no Governo Collor de Mello, em processo que culminou, no Governo Fernando Henrique, com a criação do Ministério da Defesa. Isso foi feito a pretexto de subordinarem-se as Forças Armadas ao Poder Civil, mas, na realidade, com o propósito de que o País se ajustasse às diretivas daqueles que, ao Norte, pretendem reduzir as Forças Armadas brasileiras a forças meramente policiais.
Tomo a liberdade de transcrever a carta do General Cesário, publicada no JB em 18 de março, na íntegra. O que importa é o que está dito e dito está com palavras muito educadas.
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CARTA A UM JOBIM FORA DO TOM
Luiz Cesário da Silveira Filho – General da Reserva do Exército
Ministro Jobim,
Tomei conhecimento de sua entrevista, publicada no Jornal do Brasil em 15 março de 2009, na qual o senhor responde à pergunta de como pretende administrar a insatisfação de alguns generais em relação a algumas diretrizes da Estratégia Nacional de Defesa (END).
Por considerar deselegante para comigo e para com os integrantes da Reserva das Forças Armadas a sua resposta de que ‘o general que declarou a insatisfação não tem nada a administrar porque é absolutamente indiferente, foi para a reserva, se liberou’, resolvi considerar a possibilidade de responder-lhe.
Sei que o senhor não leu as minhas palavras de despedida do Comando Militar do Leste. Nelas, relembro o saudoso ministro do Exército, General Orlando Geisel, que afirmou: ‘Os velhos soldados se despedem, mas não se vão’.
Sou um general com 47 anos de serviço totalmente dedicados ao meu Exército e ao meu país. Conquistei todas as promoções por merecimento. Fiz jus à farda que vesti. Não andei fantasiado de general. Fui e continuarei a ser, pelo resto de minha vida, um respeitado chefe militar. Vivi intensamente todos os anos de minha vida militar. Fui, sempre, um profissional do meu tempo.
Alçado ao mais alto posto da hierarquia terrestre, acompanhei, por dever, atentamente, a evolução do pensamento político-estratégico brasileiro, reagindo com as perspectivas de futuro para a minha instituição, na certeza de que a história do Brasil se confunde com a história do Exército.
Vivemos, atualmente, dias de inquietude e incerteza. Sei que só nós, os militares, por força da continuidade do nosso dever constitucional, temos por obrigação manter a trajetória imutável da liberdade no Brasil. É, por este motivo, que serei sempre uma voz a se levantar contra os objetivos inconfessáveis que se podem aduzir da leitura de sua Estratégia Nacional de Defesa.
Ela está eivada de medidas, algumas utópicas e outras inexequíveis, que ferem princípios, contrariam a Constituição Federal e afastam mais os chefes militares das decisões de alto nível. Tal fato trará consequências negativas para o futuro das instituições militares, comprometendo, assim, o cumprimento do prescrito no artigo 142, da Constituição Federal, que trata da competência das Forças Armadas.
‘Competência para defender a Nação do estrangeiro e de si mesma’.
Em época de grave crise econômica, como a que atinge o país, apesar das tentativas de acobertá-la por parte do governo ao qual o senhor serve, os melhoramentos materiais sugeridos serão, obviamente, postergados. Mas, o cerne da estratégia e suas motivações políticas poderão ser facilmente implementados.
É clara, nela, a intenção de se atribuir maiores poderes ao seu cargo de ministro da Defesa, dando-lhe total capacidade de interferir em todas as áreas das Forças Armadas, desde a indicação de seus comandantes, até a reestruturação do ensino e do preparo e emprego das Forças.
Vejo, atualmente, com preocupação, a subvalorização do poder militar. Desde a Independência do Brasil, sempre tivemos a presença de um cidadão fardado integrando a mesa onde se tomam as mais importantes decisões do país. O Exército Brasileiro sempre foi um ator importante na vida brasileira, e, ao longo da história, teve o papel de interlocutor, indutor e protagonista.
A concepção ressentida da esquerda, que se consolidou no poder político a partir de 1995, absorvendo as ideias exógenas do Estado mínimo e da submissão total do poder militar, mantendo ‘a chave do cofre e a caneta’ em mãos civis, a fim de conseguir a sua subserviência ao poder político civil, impôs a criação de um ministério destinado a coordenar as três Forças Armadas. Isto não se fazia necessário, no estágio evolutivo em que se encontrava o processo político brasileiro. Em um governo, à época da criação do Ministério da Defesa, constituído por 18 ministérios, nos quais pelo menos cinco eram militares, foram substituídos, estes últimos, por um ministério que, por desconhecimento de seus ocupantes (até hoje, nenhum ministro da Defesa prestou sequer o Serviço Militar Obrigatório, como soldado), tem apenas atuado no campo político.
Estou convencido que afastar-nos da mais alta mesa de decisão do país foi uma estratégia política proposital, o que tem possibilitado, mais facilmente, o aparelhamento do Estado brasileiro rumo à socialização, com a pulverização da alta administração do país, atualmente, em 37 ministérios e, apenas um, pretensamente, militar.
A expressão militar deve ser gerida com conhecimento profissional, pois ela é um componente indissolúvel do poder nacional. Sem a presença de militares no círculo das altas decisões nacionais, temos assistido a movimentos perturbadores da moral, da ética e da ordem pública intentarem contra a segurança do direito, aspecto basilar em um regime que se diz democrático. Tal fato traz, em seu bojo, condições potenciais de levar o país rapidamente a uma situação de anomia constitucional, o que poderá se configurar em risco de ruptura institucional.
A sua END aprofunda o contexto de restrições à autonomia militar e sugere medidas que, se adotadas, trarão de volta antigos costumes de politização dos negócios internos das Forças Armadas. Talvez isso favoreça o modelo de democracia que querem nos impingir. Será isto o que o senhor quer dizer quando fala em sua entrevista ‘que é o processo de consolidação da transição democrática’?
Finalizando, quero salientar que a desprezível conceituação de que ‘o general que declarou insatisfação não tem nada a administrar porque é absolutamente indiferente, foi para a reserva, se liberou’, bem demonstra a consideração que o senhor empresta aos integrantes da Reserva das Forças Armadas, segmento que o seu ministério pretende representar. Isto mostra, também, o seu desconhecimento da grandeza e da servidão da profissão militar, pois, como bem disse o general Otávio Costa, ‘a farda não é uma vestimenta que se despe, mas uma segunda pele que adere definitivamente à alma…’
Lembre-se que os militares da ativa sempre conferem prestígio, não somente aos chefes de hoje, como, também, aos de ontem. Não existem dois Exércitos. Há apenas um: o de Caxias, que congrega, irmanados, os militares da ativa e da reserva.
A certeza de que o espírito militar, que sempre me acompanhou nos meus 47 anos de vida dedicados totalmente ao Exército, o qual, oxigenado pela camaradagem, é formado por coragem, lealdade, ética, dignidade, espírito público e amor incondicional ao Brasil, é o que me faz voltar, permanentemente, contra a concepção contida na sua END.
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