OESP
Victor Serge conta, nas Memórias de um Revolucionário, que nos congressos da 2ª Internacional se discutiam teses de economia e filosofia. E na biografia de Jean Jaurès há o episódio comovente de uma reunião da Internacional em que ele, acusado de não ser marxista convicto, não poderia pretender que seu partido, na França, usasse o nome de Socialista. Por dessas ironias da sorte, a maioria dos membros da reunião que decidiria se ele era “socialista” só falava alemão. Quando se levantou para fazer sua defesa – e era um orador desses que não se produzem mais, nem aqui nem em Cuba -, percebeu que ninguém se dispunha a traduzir o que iria dizer. Enunciou polidamente um protesto. Então, uma mulher se levantou e disse que, embora estivesse em posição contrária à dele, para que ele pudesse defender-se, faria a tradução. Chamava-se Rosa Luxemburgo. Assim eram os congressos da 2ª Internacional: reuniões em que se discutiam teses de economia e de filosofia.
Todos sabiam que era a vida de milhões que estava em jogo: a da classe operária européia. Não era próprio, portanto, fazer do encontro um local para expor teses. Era um local para que se confrontassem visões de como o processo se deveria dar – pela via revolucionária (Rosa Luxemburgo) ou pelo reformismo parlamentar, que no caso de Jaurès não excluía ele mergulhar de corpo e alma nas greves operárias ou sair em defesa de um certo capitão Dreyfus.
Por que essa lembrança, como dizemos nós, jornalistas, sem “gancho”? Porque ao ler o noticiário sobre a desistência de Covas, a rebeldia dos governadores tucanos, a incompreensão mútua sobre os valores monetários da Lei Kandir, o embaraço do presidente com tudo isso, vejo que os políticos não cuidam mais de fazer valer a sua visão de como se deve dar o processo político e social, nem de fazer que vençam suas teses econômicas e filosóficas sobre as dos demais. Porque os políticos não têm mais em mente que o que está em jogo é o destino de alguns milhões de pessoas; querem é saber quem é a favor da globalização ou contra ela – riqueza e pobreza ao mesmo tempo, como sempre foi, aliás. Se não tivesse sido, não teria havido Spartacus, Cristo, os socialistas.
Com o perdão do Santo Padre, a globalização é uma nova religião. Não salva almas, não traz consolo espiritual – mas ser a favor dela ou contra permite que se faça carreira acadêmica e política e se conquistem amigos poderosos.
Não pretendo dar estatura filosófica aos dirigentes da 2ª Internacional. Não discutirei com um professor de Filosofia se ele disser que o marxismo dos fundadores tinha pouco de Filosofia. Lembrarei que, depois da Revolução na Rússia, sempre se disse que o Ocidente poderia perder a guerra ideológica porque lhe faltava a visão do mundo que o marxismo dava de graça aos do lado de lá. Não é a discussão filosófica que interessa. É a política. É a falta do gesto de Rosa Luxemburgo, que se levanta e diz ao adversário, que quer que seja esmagado intelectualmente, que traduzirá seu discurso para que não se diga que foi condenado sem defesa.
Enquanto os tucanos brigam no seu ninho e o sr. Ciro Gomes busca amplas alianças – até com os antigos albaneses, Deus! -, a política morre porque os que nos comandam não têm idéia de onde poderão nos conduzir as suas tricas e futricas em 1998. O leitor avisado poderá construir cenários, sem recurso à filosofia: Rio Grande do Sul com o PT; Minas Gerais com alguém que não será tucano; São Paulo com Maluf; Rio de Janeiro sem tucano; Bahia com Luís Eduardo Magalhães; Pernambuco com o PFL ou um soldado de Arraes; o Norte e o Centro-Oeste com os senhores de baraço e cutelo. O presidente da República, com um Congresso que não será muito diferente do de hoje, instalado no centro geográfico do País. Será, porém, o centro geográfico do Poder? Terá, então, Fernando Henrique Cardoso uma Rosa Luxemburgo que queira traduzir seus discursos?
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