A frase, infeliz, de Fernando Henrique ─ “Não é porque são pobres que apóiam o PT, é porque são menos informados” ─ a rigor deveria ser oferecida, para comentário, aos candidatos a uma vaga num curso de pós-graduação, teórico, sobre comportamento eleitoral.
O cientista político quis apenas dizer que o militante pode errar quando analisa a situação político-eleitoral usando instrumentos teóricos obtidos com uma visão estreita da Sociedade e do comportamento individual em momentos de decisão. A frase não afronta o sociólogo, pois este é quem poderá afirmar que não é a condição socioeconômica o que determina o voto, mas sim um conjunto de elementos que moldam a maneira do eleitor ver o mundo e avaliar os candidatos e a solidez de suas promessas. Um sociólogo destemperado diria: “É a visão do mundo, a ideologia, estúpido!”
A reação de Lula deve ter levado Fernando Henrique a concluir que o professor não deve querer dar aulas aos eleitores em época de eleições. As palavras serão mal compreendidas e atribuídas ao amigo do candidato ou ao próprio candidato. Mas não é a reação de Lula o que interessa.
A frase dita é o que merece atenção na medida em que destoa do pensamento corrente (e coerente, nas previsões dos que trabalham com Sociologia Eleitoral obrigando-se a buscar nas condições socioeconômicas dos eleitores as razões de um voto a favor ou contra candidatos que defendem ou combatem o statusquo). O curioso, em algumas análises desse tipo, é que não se avalia a adequação do discurso à realidade que seria mantida ou alterada. O que vale é a idéia que se faz da posição social do candidato, não de sua conduta enquanto Governo, no passado, ou de seu programa para o futuro.
Se nós, analistas de situação por profissão, cometemos enganos desse tipo, seria de estranhar que o eleitor tomasse gato por lebre?
Tomará ─ e muitas vezes até dirá que o guisado está bom de gosto ─ e recomendará o prato aos amigos porque as pessoas que reputa importantes demonstram ter igual paladar. Com o que nunca será possível esperar que os votos correspondam a uma visão coletiva da realidade ou que o comentário do analista corresponda aos fatos. Mais grave ─ na medida em que o analista merecer algum crédito, sua visão distorcida da realidade se difundirá e, passado algum tempo (não muito!), será voz corrente que o importante é saber se o eleitor é patrão ou é empregado, e não como ele vê o País, o processo político e a realidade socioeconômica. É, apesar de tudo, uma visão do mundo que decorre das informações (não são outra coisa) que o analista soube arquivar. Na pasta errada, convenhamos, pois a visão do mundo que elas permitem que ele tenha é, à falta de outro termo, é uma visão falha, obreirista, como se dizia de posturas no passado.
Ninguém negará a influência que o status tem na origem e mesmo na formulação de idéias e na procura (?) do comportamento adequado. Silone nos diz, em seu belo romance Fontamara, da descrição que os cafoni (camponeses) fazem de sua existência e de suas relações com o proprietário ─ seria antes o “senhor” ─ da terra: o chefe de todos é Deus, senhor do céu; depois vem o príncipe Torlonia, senhor da terra; depois vêm os guardas armados do príncipe Torlonia; depois, ninguém; depois os cachorros; depois, ainda ninguém. Depois, vêm os cafoni ─ os camponeses ─ e fim. Silone não insiste na determinação do pensamento pela posição socioeconômica. Mostrará, pelo contrário, como a convivência com um estranho vindo da cidade acrescenta novas informações às que os camponeses têm de seu dia-a-dia, permitindo que alguns vejam de outra maneira sua situação e resolvam modificá-la, fazendo um jornal que, após cada denúncia de abusos, lançará a pergunta: “Que devemos fazer?” Os cafoni continuam sendo camponeses ─ estarão, no entanto, mais informados.
Chamando atenção à importância da informação (depois de processada, a concepção do mundo, a ideologia em sentido amplo), a frase de Fernando Henrique é relevante e merece ser discutida, inclusive na universidade. A quantidade de informação, ou a visão das coisas que se constrói depois de processar todas as informações que recebemos na vida, porém, não nos altera necessariamente o grau de consciência da realidade.
E não será fácil alterar o parâmetro de análise. Uma dificuldade, de pronto ─ somos levados, obrigatoriamente, a nos perguntar: a “informação” oferecida ao público não estará marcada, em sua origem, pela posição socioeconômica de quem a produz? O que significará perguntar se o veículo que leva a informação tem ou não, por qualquer razão, interesse em difundir a sua versão dos fatos. Mas também significa atribuir aos indivíduos a incapacidade de mesclar o que recebem de Jornais, Rádio e TV e do contato com quem reconhecem ser mais bem informado ao que receberam durante toda a sua vida ─ sua experiência, em suma.
Esta é a opção intelectual de muitos ─ tantos, que se formou a idéia de que o diretor de um jornal determinará que se dê esta ou aquela versão das coisas para agradar o anunciante! Que, então, deixa de ser meramente anunciante interessado em vender um produto e passa a ser um anunciante-engajado, que compra o anúncio para que se noticie que o candidato que ele detesta ou de quem gosta (mas não confessa a ninguém) é um bom ou mau menino. Mais ainda: a preocupação maior de todos, diretor e funcionários, não será fazer um bom jornal para vender cada vez mais em bancas e assinaturas e influenciar os governantes ─ será agradar a N anunciantes, cada um deles pensando da maneira como o diretor ou o editor imagina que um anunciante pensa.
Caso se predisponha a utilizar esse modelo de raciocínio, o analista terá encontrado o caminho mais curto para chegar ao hospício.
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(publicado nesta data em “O Estado de S.Paulo”)
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