– INTERMEZZO – 3

 

 

 

  

      O “Manifesto Interclubes Militares” de 16/02/2012, publicado no portal do Clube Militar e em seguida retirado − segundo explicações posteriores do Presidente do Clube Naval, porque a Comissão Interclubes Militares não o aprovara “tendo em vista a prioridade atribuída aos temas Reequipamento das Forças Armadas e a Reposição Salarial dos Militares” −, fez-me imediatamente procurar Tomás, o Cínico, para conhecer sua opinião. Ele conversava animadamente ao telefone com o Professor Pickup a respeito de como Stalin havia chegado ao poder. Vi que aquela conversa ia longe, então decidi procurar Sherlock Holmes que, quando cheguei, explicava a Watson a curiosa teoria que construíra sobre os fatos.
 
       “Imaginemos”, dizia ele a Watson, “dois quadros estratégicos − à falta de melhor nome. Um é o do Manifesto; outro, da reação do Governo.
 
       “DO MANIFESTO − É possível ter dúvidas sobre a autoria do documento. Ele se tornou conhecido por sua divulgação no portal do Clube Militar. Quem lhe teve acesso verificou que o documento trazia os selos dos três clubes: o Militar, o Naval e o da Aeronáutica. Esse fato permitiu concluir que fora da iniciativa dos presidentes dos três Clubes. Curiosamente, nos portais do Clube Naval e no da Aeronáutica, o Manifesto não se encontrava.
 
       “O fato, estranho, levava a pensar que os presidentes dos Cubes Naval e da Aeronáutica ou não subscreveram o documento ou pretenderam refletir sobre a conveniência de sua divulgação. Nessa linha de raciocínio, cabe a pergunta: por que foi divulgado pelo Clube Militar? Seu presidente pretendeu antecipar-se aos colegas, forçando-os a concordar com a divulgação, ou o documento foi colocado no portal sem o conhecimento do General Tibau?
 
       “Da mesma maneira que o presidente do Clube Militar esteve com o Comandante do Exército, os presidentes dos Clubes Naval e da Aeronáutica, pelo que se leu nos jornais, foram convidados a encontrar-se com os Comandantes da Marinha e da Aeronáutica. O que leva a concluir que assinaram o Manifesto − conclusão que exige, porém, uma ressalva: se assinaram, não autorizaram sua divulgação pelos portais de seus clubes.
 
       “A reação do Governo, determinando o encontro dos Comandantes das Forças com os presidentes dos Clubes, fez que o Manifesto fosse retirado do portal do Clube Militar e que os presidentes dos Clubes tornassem público que não haviam autorizado a divulgação. Em seguida, foi retirada a declaração do General Tibau de que não havia autorizado sua divulgação. A retirada do Manifesto do portal do Clube Militar provocou imediata reação de Oficiais da Reserva do Exército, da Marinha e da Aeronáutica, que assinaram um Manifesto à Nação com sugestivo título: “Não passarão”. Nele, reafirmavam os termos do Manifesto que fora renegado pelos Clubes e afirmavam que o Ministro da Defesa nem tinha autoridade nem legitimidade para intervir nas decisões desses Clubes, associações civis não subordinadas ao Ministério da Defesa. Nova reação do Governo, determinando a repreensão dos signatários, levou a que o número de assinaturas de Oficiais da Reserva crescesse ao mesmo tempo que civis aderiam ao documento”.
 
      Depois de alguns minutos de meditação e algumas baforadas no cachimbo, Sherlock passou a analisar o quadro estratégico do Governo.
 
       “DO GOVERNO – Apenas a ligação de alguns fatos permite ter visão do quadro estratégico. Vejamo-los pela ordem.
 
       “A lei que criou a chamada Comissão da Verdade foi sancionada pela Presidente da República há algum tempo. Curiosamente, até 1º de março não se conheciam os nomes de quem a integraria, pois a Presidente da República não os nomeara como determinava a lei.
 
       “Duas Ministras de Estado, na presença da Presidente da República, insistem na importância da lei e condenam com palavras emocionadas os que, para elas, cometeram crimes no período dos Governos militares, chamado de ditadura. A Presidente elogiou a fala de suas auxiliares diretas. Noticiou-se discretamente, depois, que a Presidente demorava em nomear os membros da Comissão da Verdade porque queria encontrar nomes que permitissem que os trabalhos transcorressem em clima ameno. Para presidente da Comissão, a Sra. Dilma Rousseff cogitava de indicar o ex-presidente da República, Fernando Henrique Cardoso, nome que garantiria que os trabalhos dessa Comissão chegariam a termo sem que os inquéritos que ela deveria instaurar e suas conclusões perturbassem o clima político-militar, permitindo, segundo alguns, que se fechasse o dossiê ‘ditadura’ e que a paz (alguns outros diriam ‘dos cemitérios’) voltasse a reinar entre o Governo petista e as Forças Armadas.
 
       “O Clube Militar divulgou o Manifesto que continha palavras duras contra as duas Ministras e condenou abertamente a atitude da Presidente da República que as apoiou. Entre punir os três Oficiais-Generais dados como autores do documento e fazer de conta que o Manifesto não tinha importância porque vinha de três clubes de militares da Reserva, o Governo decidiu pedir aos presidentes dos três Clubes que deixassem claro que não fora sua intenção levar o documento a público. Dito e feito, imaginou-se que a paz reinava no quartel de Abranches. Na seqüência, veio o ‘Não passarão’.
 
       “A rigor − diz Sherlock −, o ‘Não passarão’ não diz mais que o Manifesto renegado pelos presidentes dos Clubes militares. Como não tinha de quem cobrar, o Governo decidiu mostrar que os militares estão sujeitos a regulamentos e devem obediência ao dito Poder Civil”.
 
      Depois de calmamente relatar tudo isso, Sherlock Holmes começou a selecionar fatos que devem, segundo sua velha advertência ao fiel Watson, alimentar a teoria.
 
      “O primeiro fato é o Governo ter pretendido fazer de conta que o que estava feito − o Manifesto dos Clubes − poderia ser considerado como não feito, já que fora feito por Oficiais da Reserva, não da Ativa.
 
       “O segundo fato é mais complexo − ou seria mais simples? Lendo-se o noticiário dos jornais, nota-se uma grande semelhança nas informações − a única diferença nas notícias era o número dos que assinaram. A Presidente, que não quis emprestar importância às palavras dos presidentes dos Clubes militares, irritou-se sobremaneira com a reiteração delas por 83 (ou seriam 97?) Oficiais da Reserva e pensou em pôr um deles na cadeia para dar exemplo. Se a interpretação das leis e regulamentos que o Governo faz é a correta, todos mereciam pelo menos prisão domiciliar por dez dias, como o Governo Goulart fazia, a seu tempo, com Oficiais da Reserva que o atacavam. Mas, entre a prisão exemplar de um deles e esquecer todos os Oficiais da Reserva, decidiu aplicar-lhes uma repreensão”.
 
      E Sherlock continuou seu raciocínio. “Que razões alegar para a reprimenda? Desrespeitaram o Ministro da Defesa?” Então Sherlock discutiu com Watson o que pensava a respeito do que lera. Para ele, o Manifesto dos 83 ou 97 era bastante claro ao dizer: “Em uníssono, reafirmamos a validade do conteúdo do Manifesto publicado no site do Clube Militar, a partir do dia 16 de fevereiro próximo passado, e dele retirado, segundo o publicado em jornais de circulação nacional, por ordem do Ministro da Defesa, a quem não reconhecemos qualquer tipo de autoridade ou legitimidade para fazê-lo.” Ora, o que todos os jornais noticiaram era que o Manifesto dos 83 ou 97 dizia, diferentemente, apenas “por ordem do Ministro da Defesa, a quem não reconhecemos qualquer tipo de autoridade ou legitimidade”. Para efeito público, suprimiram-se palavras para dar a impressão de que os 83 ou 97 eram insubordinados e estavam colocando em dúvida a legitimidade do Embaixador Celso Amorim enquanto Ministro da Defesa. Era, para efeito público, evidentemente, um ato de insubordinação. “Meu caro Watson − disse Sherlock − punir insubordinação com reprimenda só pode ser uma provocação. Convenhamos – insistiu Sherlock -, é uma pena humilhante. Com que finalidade? A quem aproveita?”
 
      E o taciturno detetive continuou em suas inferências: “Há quem acredite que foram os jornalistas de três ou quatro jornais que, de má fé, para desmoralizar os militares, retiraram palavras do Manifesto dos 83 ou 97. É uma observação e até mesmo uma dedução que pode ser correta. Mas devemos observar um detalhe, meu caro Watson: admitir que assim foi será admitir que os setoristas que cobrem fatos dessa natureza em Brasília pertencem a um Partido, uma organização, ou coisa que o valha, e têm um centro diretivo que lhes dá instruções. É uma conclusão muito complicada. É tão mais simples partir do princípio de que o Ministério da Defesa ou a Presidência da República distribuiu a informação a respeito da reprimenda, pedindo que não fosse citada a fonte, detalhando as razões da punição e citando a frase sem aquelas palavras. Os jornalistas apanharam a notícia forjada, tomaram-na por boa, pois não leram o Manifesto em questão, e a publicaram. Diria até que a retirada de palavras é coisa fácil de entender e de fazer para quem conhece a história da Diplomacia. Lembre-se de que Bismarck, para levar a França a declarar guerra à Prússia, alterou um telegrama do Kaiser para deixar claro que o Imperador não tinha recebido o Embaixador francês. E veio a guerra…
 
       “Se foi assim, permanecem as perguntas: com que finalidade? A quem isso aproveita? A quem aproveita − continuou Sherlock − é fácil deduzir: ao Governo, que mobiliza em seu favor parcelas da opinião pública, dos que vêem nos militares a encarnação de Satanás. Qual a finalidade? Conhecer a força do adversário. Você sabe, Watson, que um bom Serviço de Informações, ou até mesmo um bom Oficial de Segunda Seção, informando o Chefe da Terceira (Operações), deve, na medida do possível, saber que pretende o adversário e com que forças vai agir. Não despreze nunca seu adversário, meu caro. O nosso Oficial de Informações deve ter-se feito a pergunta: ‘Até que ponto o Manifesto dos Clubes militares traduz apenas a opinião de seus presidentes ou, o que é grave, traduz a opinião de Oficiais da Ativa?’ Você tem razão ao dizer que os Clubes já pouco representam. Contudo, o Oficial de Informações da Presidência tem de construir seu quadro estratégico na suposição de que o clima pode ter mudado e de que a Presidente e seu Governo não contam mais com a passividade unânime das Forças. É preciso, pois, saber até onde querem chegar e até onde o Governo pode e deve ir. Daí a reprimenda. Ela é humilhante para os Oficiais-Generais, Oficiais superiores e outros que assinaram o Manifesto dos 83 ou 97 e outros mais que a ele vêm aderindo. É como um puxão de orelha de uma mãe zangada. Mas o Oficial de Informações terá aconselhado: ‘Uma prisão, não. Uma prisão, ainda que domiciliar, terá efeito muito adverso na opinião pública, sobretudo no Exterior. Vamos, pois, ver quantos são e que capacidade de mobilização têm’. Assim o Governo pode ter feito e, se fez, agora espera, observando, vigiando, acompanhando”.
 
      Este foi o raciocínio de Sherlock Holmes com os fatos que conhece. Depois, olhou para o quadro estratégico do Manifesto e se perguntou: “Quem colocou o Manifesto no portal do Clube Militar? Com que objetivo? Não tenho, ainda, respostas, mas observo os fatos. Já não são 97 os signatários do ‘Não passarão’. Já são centenas. E já há, neste momento, a publicação de 44 nomes de Generais que assinam o documento. São da Reserva, sem dúvida. Mas têm, se são Generais, com certeza certa, Oficiais na Ativa que os respeitam, sobretudo respeitam suas opiniões sobre a situação em que o Exército se encontra. E, aos Oficias da Reserva, já se somam civis. Quem são? Que representam? Poderão constituir, Generais, Coronéis e outros Oficiais da Reserva, juntamente com civis, uma força organizada que coloque em xeque o Executivo, cada vez mais dependente do Congresso? Por outro lado, considere, meu caro Watson, que o Oficial de Informações da Presidência tem a obrigação de levar em conta a probabilidade de o movimento ‘Não passarão’ fazer aflorar a insatisfação dos Quartéis, que sairiam de sua passividade traduzindo essa insatisfação em atos que atingiriam o Comandante do Exército e os das demais Forças, desfazendo, assim, a falsa impressão de estabilidade institucional – o que seria preciso prevenir. Só o tempo dirá se, desse episódio, sairá uma organização. Não se esqueça, Watson, de que os grandes movimentos sociais acontecem quando a massa − perdoe-me a palavra − não suporta mais o status quo. Mas só quem criou condições para que essa situação de mal-estar viesse à tona saberá onde quer chegar. Por isso, meu caro, é muito importante saber quem colocou o Manifesto no portal do Clube Militar, e que pretendia.”
 
      Sherlock Holmes se calou. Levantou-se, olhou seu violino, deixou-o quieto e saiu a caminhar, assoviando. E eu fiquei matutando.
 
 
 
 
 
 
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