LEMBRANDO DICKENS: UM CONTO DE DUAS CIDADES

 

     

 

 

      Charles Dickens escreveu o “Conto de duas cidades”. Uma, Londres: o Rei, o Parlamento, a “leal oposição de Sua Majestade”. Outra, Paris. Nela, o Terror jacobino, o Tribunal de Salvação Pública, a guilhotina. E um Robespierre lógico: “O Rei não deve ser julgado; se for julgado pode ser absolvido”.

 

      Imaginei como servir-me da idéia esboçando duas cidades no Brasil atual. Uma, a da Constituição, acolhendo os que defendem as liberdades individuais e, agora, coletivas; a das instituições contra o assalto não dos aristocratas, mas dos que são supostos sonhar com um regime autoritário. Outra, menor que a primeira, mas nela se abrigando e ostentando em volta dos carros incendiados a bandeira negra da Anarquia. Encapuçados e mascarados passeiam pelas ruas à busca de símbolos daquilo contra o que estão, para destruí-los. Alguns poucos deles terão memória de que, depois da guilhotina, houve as baionetas de Napoleão, cujo triunfo deixou um grande vazio demográfico na França.

 

      As muralhas da cidade da Constituição são extensas como a da China, e na guarda de seus muros impõe-se caminhada tão longa e tão penosa que o cansaço perturba a mente dos que se dispõem a defendê-las. O Sol das liberdades faz que vejam miragens e que se imaginem Pimpinela Escarlate ─ herói romântico ─ que salvará não o Rei preso nas masmorras, mas Mariane, símbolo da República, que corre o risco de ser de novo violada. Vivem e mourejam pelos símbolos de uma Cidade que já não tem bandeira que a todos abrace. Os camuflados incógnitos erguem a da Anarquia, fazendo da Constituição sua defesa e do molotov sua arma. O Cidadão, que a Constituição prometeu acolher em seus braços, já não existe como ser real. Está sangrando.

 

       Isso tudo são meras reflexões literárias que mal conseguem descrever cenas reais. Não conseguem porque, de tanto ouvir dizer que devemos nos unir em uma “comunidade latino-americana”, vivemos um universo fantástico, em que tudo é simbólico.

 

      O TCU determina que funcionários do Senado devolvam o que receberam contrariamente ao que a Lei dispõe. Em sua defesa, estes alegam ter recebido de “boa fé”. Quem autorizou pagar também agiu de boa fé ─ fundamento dos atos administrativos. A Lei e a decisão do órgão que zela por ela são símbolos da República com que sonhamos. Nada mais ─ pois todos agimos de boa fé, símbolo de nossa inocência e de nossa cidadania.

 

      O Reitor da USP desce de sua magnificência e pede à Justiça que lhe devolva o prédio em que deve trabalhar, prédio público ocupado durante greve que, tudo indica, também é simbólica. Sim, porque a Reitoria não poderá alterar o critério da lista tríplice para a escolha do Reitor. A Justiça nega ao Reitor direito de trabalhar no próprio que é do Estado, porque a reintegração de posse com certeza implicará violência, que não é simbólica, mas real. Ademais, a greve é manifestação prevista na Constituição e para resolvê-la, que se negocie. Apesar de tudo, é preciso que a Justiça seja respeitada porque é Ela quem defende os valores maiores para cuja defesa se fez a “Cidadã”. Então, os alunos que desocupem o prédio, espontaneamente, em 60 dias. Afinal, o prédio da Reitoria é propriedade do Estado ─ perdão, da USP, que é autônoma! ─, portanto, simbolicamente, é de todos os professores, alunos e funcionários, portanto é de ninguém. Se é de ninguém, a propriedade dele é um símbolo. Respeitemo-lo.

 

      Sem máscara ─ para quê? ─ podemos destruir um laboratório de pesquisa e levar conosco centenas de animais. Para a Polícia, houve furto ─ a invasão e a destruição são danos colaterais. Simbólicos, pois.

 

      Tudo se passa num universo fantástico e, por isso mesmo, simbólico. Tudo é simbólico e fantástico (“ilusório, irreal, fantasmagórico, caprichoso e também simulado, inventado” como se lê no “Aurélio”) porque a Política é simbólica. O “partido” Rede não conseguiu ser ente política e juridicamente real. Sua líder e a cúpula do PSB reúnem a Imprensa para comunicar alguma coisa. Marina diz para todos: “É uma filiação simbólica” e ato contínuo, assina a ficha que lhe permite ser membro do PSB e, se possível, candidata a qualquer coisa em 2014. Foi uma assinatura simbólica ─ “caprichosa” ou “inventada”? Foi simbólica para salvar a face, mas real para poder impor, ao partido legal e real, alguns aliados e recusar outros.

 

      Se o que é real transformou-se em simbólico, o que era simbólico transformou-se em real porque assim alguém quis ─ e assim a Cidade da Constituição de fato reconheceu, como direito inalienável de qualquer cidadão, um agir simbolicamente. Não é o que fazem os mascarados?

 

      A Paris que Dickens retratou não nasceu do nada, não veio como um raio no céu azul. Robespierre elegeu-se aos Estados Gerais como um pacato advogado. As circunstâncias fizeram dele o guardião da Virtude, o inimigo da Justiça e o defensor da guilhotina. Os guardiões das muralhas da Cidade da Constituição semearam há tempos, fantasticamente está claro, as sementes das máscaras. Semearam o mal quando os “atrasos da Justiça” não puniram os que destruíram plantações experimentais; quando amigos do Rei invadiram o Congresso Nacional, depredando-o; quando a Escola ficou vazia de professores.

 

      O assalto à Ordem não oferece riscos porque a Anarquia tem os defensores das muralhas da Cidade da Constituição como seus porta-estandartes.

 

      Dickens não falou da Cidade que sucedeu à de Robespierre. Seria bom nos lembrarmos de que Beethoven reescreveu a dedicatória da 3ª sinfonia ao saber que Napoleão, o revolucionário, proclamara-se imperador. Não impediu que seu 5º concerto fosse conhecido como “Imperador” porque um granadeiro de Napoleão, ouvindo-o, saudou-o aos gritos de “Viva o Imperador”.

 

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(publicado nesta data em “O Estado de S.Paulo”)

 

 

 

 

 

 

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