Muitas das críticas à política externa dos governos Dilma insistem em deixar claro que a falta de brilho de que essa política pode ser acusada deve-se ao pouco interesse da presidente da República por esse tema – “política externa”. Os recentes incidentes envolvendo a Diplomacia – que tiveram por base o não atendimento do apelo da presidente em favor de um traficante condenado à morte pelo Governo de Jacarta – permitem que se avance na interpretação e que se chegue a afirmar, por absurdo que nos pareça, que a presidente Dilma Rousseff a um tempo considera-se um novo Luis XIV – “o Estado sou eu” – e despreza o Estado, pouco se incomodando com o juízo que se faça do Brasil em virtude da pouca consideração que seu Governo dá às formas.
O cuidado com as formas, respeitando-as, sem dúvida é uma questão formal. É o cuidado com questões formais, não de conteúdo. A diplomacia que se consolidou ao longo dos séculos sempre cuidou delas, partindo do princípio de que quem não as respeita deixa claro que não se importa com o juízo de terceiros – o que terceiros possam pensar a respeito de quem se considere acima dessas questões.
Estados que se respeitam preocupam-se com a opinião dos demais. Governos que se respeitam e respeitam o Estado que representam timbram em respeitar as formas inclusive no momento em que as guerras as põem por terra. Grandes Estados, ao declarar guerra, mesmo que a pequenos Estados, empenham-se em que seus embaixadores comuniquem essa decisão às chancelarias enquanto o ministro das Relações Exteriores informa o embaixador do presumível inimigo que há um estado de guerra e lhe entrega o salvo-conduto para que possam, ele, sua família e seus funcionários, deixar o território nacional. Em Agosto de 1914, o Império Austro-húngaro não tinha embaixador na Sérvia, mas, para iniciar as hostilidades, comunicou por telegrama internacional ao governo sérvio que havia um estado de guerra entre os dois países.
A coerência se vê entre as formas que exigem respeito. Coerência com o poder de que o Estado dispõe e em função do qual é julgado pela comunidade internacional: uma potência média ou grande deve ter um comportamento compatível com o poder que lhe é reconhecido. O ingresso do Brasil no Conselho de Segurança da ONU, na qualidade de membro permanente com poder de veto ou não, é o resultado de uma reflexão profunda sobre as posições e o comportamento do Brasil na análise das grandes questões de política externa que chegam a esse Conselho. Ao risco de ser apressado na conclusão, diria que muito do esforço feito pelo Brasil para ser admitido no Conselho de Segurança perdeu-se, não porque os grandes desconfiam das posições que o Brasil poderá assumir, mas porque não têm certeza de que o delegado brasileiro estará presente para votar “sim” ou “não” e, assim, dar quórum para validar uma decisão qualquer. A dúvida sobre a presença do Brasil por ocasião das grandes decisões vem da análise do comportamento do chanceler brasileiro na reunião extra-conselho em que os chanceleres dos “grandes”, que haviam convocado o encontro, examinariam a questão do Oriente Médio. Para eventualmente propor uma solução. Convidado, o ministro brasileiro não compareceu, enviando seu secretário-geral para encontrar-se e discutir com os chanceleres dos “grandes”. E as formalidades…
O tratamento dispensado ao embaixador da Indonésia fecha o círculo de análises que as chancelarias estrangeiras estão, por certo, fazendo – por dever de ofício – das razões fundantes de nossa política externa. Além do que podem pensar do apoio discreto ao governo venezuelano, das restrições que não se fazem ao comportamento desse governo… para não dizer da sugestão de diálogo com o Estado Islâmico.
A ser correta a conclusão da análise – Dilma despreza o Estado e não dá importância à política externa que é do Estado e não do presidente da República – ela poderá ser estendida às questões internas. Apenas o desprezo por esta associação abrangente e coativa que chamamos de Estado permitirá compreender o comportamento da presidente da República com os “chefes de fila” da classe política, ameaçando todo o processo democrático. Sem dúvida, por isto ou aquilo, o presidente do Senado lançou o lenço no clássico desafio para um duelo a espada, sabre ou florete – para não dizer pistola que tem atuais sabor e som militares. Nesse duelo não estarão em jogo a honra e o prestígio dos disputantes, mas a sorte das instituições.
A questão que se coloca a partir da premissa de que partiu este artigo é dramaticamente simples: a presidente Dilma está pouco preocupada com a sorte das instituições. Dito de outra maneira, a forma de que se revestirá a democracia – o Estado, melhor dizendo – merece pequena ou nenhuma preocupação. E esse desleixo se deve a que ela sabe que os adversários respeitam a Constituição e o prof. Temer deverá pôr de lado por alguns meses, se é que chegou a sonhar com ela, a perspectiva do impeachment. Em outras palavras, assim como o desastre da nossa política externa não afeta seus planos pessoais, a disputa com os presidentes do Senado e da Câmara não merece preocupação maior do que aquela que os jornais lhe dedicam.
Há, porém, outro elemento a ser considerado: apesar do desprezo que Dilma possa ter por ele, o Estado brasileiro teima em existir. E a guerra de defesa contra seus credores atuais e futuros exige que as finanças estejam em ordem – pois não se faz boa guerra sem finanças públicas em ordem. A disputa com Renan poderá inviabilizar as Medidas Provisórias como instrumento para salvar as finanças do Estado.
A oposição ao apoiar Renan não se deu conta desse pormenor. Que de menor tem pouca coisa, pois seus efeitos serão os de um terremoto…
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(publicado no dia 17 de março em “O Estado de S.Paulo”)
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