Há dois aspectos na reação à crise que se seguiu ao “decreto soberano” do Presidente Evo Morales que têm passado desapercebidos dos observadores e comentaristas.
O primeiro é que os mais experientes analistas deixaram-se levar pelo ardor partidário contra o Presidente Lula da Silva, ou pela preocupação com a defesa (a maneira de defender seria mais exato) os interesses nacionais, ou com os aspectos econômicos e, para alguns, político-eleitorais da crise. O segundo é que a nacionalização da Petrobrás-Bolívia teve efeito curioso na opinião pública: por um lado, tomou-se consciência de que o Brasil tem fronteiras e que podem ocorrer conflitos nelas; por outro, foi possível vislumbrar que há, pelo menos em alguns setores ilustrados (?) quem sustente as posições do Coronel Chávez.
Gostaria de emitir algumas opiniões sobre esta crise, que será a primeira de uma série que só terminará no dia em que o Presidente da República Federativa do Brasil decidir-se para que lado dirigirá um dos vagões, o que leva seus bonés. (Lembro-me de uma canção da revolução mexicana que fala de Pancho Villa que, cuando viaja, trae consigo dos vagones: uno, para su sombrero, otro, para sus… ) Evidentemente, por detrás do que direi há uma dose de teoria conspirativa. Mas, afinal, lembrando Chesterton, desde que não se crê em Deus, acredita-se em tudo.
O Presidente Lula da Silva está preso às pontas de um cruel dilema, que bem vistas as coisas, tem pelo menos três pontas, e não duas. A primeira, é que deve cuidar de sua reeleição. A segunda é que não pode contrariar Morales, pois estará contrariando Chávez, com quem — esta, a terceira — tem compromissos no sentido de sustentá-lo contra o “imperialismo norte-americano”. Para desatar o primeiro nó, não hesitou em acusar o Governo Fernando Henrique Cardoso de ter criado a situação (esquecendo-se do Presidente Itamar Franco, seguramente porque ainda pensa no PMDB como “linha auxiliar” em outubro) e, pior, mandou a Petrobrás arcar com o custo financeiro dos aumentos que sem dúvida a Bolívia estabelecerá para o gás. As declarações que faz sobre aquilo que a empresa deverá fazer são de uma mendicidade que só pode provocar pena, vindas de alguém com a experiência sindical de negociações entre patrões e sindicato que acumulou durante anos. Com a agravante de que faz por desconhecer que a empresa deve apresentar balanços consolidados e necessita dar satisfações a seus acionistas brasileiros e norte-americanos, já que tem Adrs cotadas na Bolsa de Nova York. Com isso, joga na lata de lixo da História (como diria Engels, referindo-se ao Estado depois da revolução comunista) o velho slogan “O petróleo é nosso” e o outro, “A Petrobrás é intocável”. Getúlio Vargas, com quem se compara, deve estar se remexendo no túmulo.
A segunda ponta do dilema “tripartite” é mais fácil de desatar pela simples e boa razão de que, de fato, o Governo boliviano decidiu demonstrar que é de fato soberano, isto é, poder absoluto em seu território. No que nada de novo acrescenta, a não ser o empenho em dizer ao povo brasileiro que nada pode fazer. Como de fato, nada pode a menos que queira mandar a Brigada de Pára-quedistas saltar em lugares escolhidos da Bolívia — o que não fará porque não temos poder militar para um gesto desse tipo, e também porque o Brasil seria imediatamente isolado pela comunidade latino-americana e, pior ainda, pelos Estados Unidos e pela União Européia que só admitem que eles próprios violem a soberania alheia. A Bolívia é soberana, PT saudações, como se escrevia antigamente ao encerrar telegramas. Se assim é, faz-se mister ter cuidado ao aconselhar medidas para arvorar o pendão da altivez nacional. A terceira ponta, esta é difícil de desatar — e daí a crise moral em que se debate Lula da Silva, obrigado a ser Presidente do Brasil e garante do Coronel Chávez.
Se, do ponto de vista do Direito Internacional (soberania) e das relações de força entre Brasil e Bolívia (ausência da Poder Militar brasileiro) o máximo que o Brasil pode fazer – isto da perspectiva do Governo, que age tendo em vista esses óbices — é dizer, como o chanceler Amorim, que se a Bolívia não quiser chegar a um acordo, o País irá buscar alternativas para abastecer-se de gás. Afirmação que o Ministro das Minas e Energia da Bolívia levará pouco a sério, pois o gás de Santos e de Campos só poderá chegar a São Paulo, Paraná, Santa Catarina e Porto Alegre depois de alguns anos e muito investimento e querelas com o Ibama e o Ministério Público Federal que cuida do meio ambiente. Deixemos, pois, de nos lamentar e vamos olhar para o futuro, tentando enxergar o passado recente com olhos de ver e compreender.
Que o Brasil construiu para si uma armadilha energética, é sabido — ou pelo menos deveria ser sabido pelo Governo Lula da Silva se seus assessores para política externa pensassem em termos geopolíticos e não se deixassem enlear pelas posições do Presidente, que de fato cuida é de seus compromissos com a imagem que procura construir para si. Essa armadilha, que vem desde Médici, tem várias entradas e praticamente poucas saídas: Itaipu (metade da energia é do Paraguai), o gás boliviano e, última, mas não derradeira, a energia elétrica que deve vir da Venezuela — pelo menos foi acordado entre Fernando Henrique e o Governo venezuelano de então.
À luz do que se deve examinar com olhos de ver e compreender, há nesse imbróglio boliviano dois fatos que não têm lógica, pois não fazem necessariamente parte do cenário. De que maneira a platéia deveria ver o cenário a 1o. de maio? Um “decreto soberano” da Bolívia, nacionalizando a Petrobrás-Bolívia e também a Repsol-YPF argentina. Se a peça fosse encenada de acordo com as normas internacionais que regulam as relações pacíficas entre dois Estados amigos, bastaria o Presidente Morales ter feito o anúncio no comício montado em La Paz e comunicado o teor do decreto às embaixadas brasileira, espanhola e argentina para que o pano pudesse cair, abrindo-se em seguida para que se assistisse à reação dos governos interessados. Assim não aconteceu. O que o mundo assistiu foi a uma ocupação militar de uma instalação da Petrobrás, o Presidente boliviano arrotando soberania para quem quisesse ouvir e, o que realmente nada tinha a ver com a peça que deveria ser encenada, a convocação da reunião a quatro em Puerto Iguazu para discutir a integração energética da América do Sul com a presença do Coronel Chávez. Reunião de que tomamos conhecimento, no Brasil, por um anúncio oficial do Planalto. Ora, se assim foi, ou o Planalto decidiu convidar Chávez, ou Morales insistiu para que ele estivesse presente e o Presidente Lula da Silva aceitou — a rigor, poderia dizer não, mesmo sabendo que Chávez nada tinha a ver com as coisas? Ou sabia que tinha?
A ocupação militar da refinaria deve ser vista à luz da doutrina militar: foi um ato de dissuasão. Mais claramente, foi um ato de dissuasão que demonstrou a decisão do Governo boliviano de resistir a qualquer represália militar brasileira. O gesto dissuasório foi claramente entendido em Brasília. O que, olhando muito para trás, faz lembrar a posição de Gorbatchev quando Reagan anunciou que iria desenvolver o projeto ”guerra nas estrelas”. O máximo que pôde fazer, coitado, foi dizer: não faça… Mas Reagan nem ligou e continuou a fazer. Morales também fez, com a diferença de que o fez juntamente com o anúncio de que faria …
Dessa perspectiva, se o Governo Lula da Silva quisesse responder na mesma moeda, deveria ter feito como o General Lessa, Presidente do Clube Militar, sugeriu depois de tudo acontecido: convocar o Conselho de Defesa Nacional — é pena que não haja mais Conselho de Segurança Nacional. Estaríamos na nossa tradição que remonta a 1934… Ou, então, uma resposta mais forte e denotando disposição de não aceitar passivamente o esbulho, colocar de prontidão o Comando Militar do Oeste. Todavia, se assim procedesse, como se colocaria diante do Coronel Chávez, que imediatamente hipotecou solidariedade a seu amigo?
A relação Lula-Chávez-Fidel é que inibe qualquer passo brasileiro que permita satisfazer aquela parte da opinião pública que tomou consciência de que o Brasil tem fronteiras e deve defender seus interesses, mesmo além delas. Consciência de que, afinal, o Estado existe para isso — ou não?
Qual é essa relação? Não se trata de teoria conspirativa, como alertei de início que seria, embora possa ter sabor dela.
O Governo Lula não descobriu ainda, três anos e alguns meses depois de tomar posse, que a política interna reflete a externa, ou que a externa é conseqüência da interna. Tanto faz — a primazia de uma sobre outra depende da perspectiva de quem as traça. Por não saber dessas coisas, Lula — que constitucionalmente é capitão e timoneiro — leva o barco do Estado para o estreito de Messina, pensando que sua sabedoria de líder sindical, acostumado a navegar entre patrões e operários, será suficiente para vencer o rochedo e o sorvedouro sem que deva prestar maior atenção às águas revoltas. Ouviu dizer que se pode navegar entre Cila e Caribde como se fosse um passeio de lancha no lago de Brasília. Cila são os Estados Unidos; Caribde, a aliança que forjou com Castro e Chávez, primeiro para defender o ditador cubano nos velhos tempos da União Soviética, agora para sustentar o Coronel venezuelano que se opõe aos Estados Unidos, apesar de vender boa parte de seu petróleo para o inimigo Bush. Ao mesmo tempo em que procura governar o barco, facilita investimentos estrangeiros em títulos brasileiros (o que explica a alta constante da Bolsa), com o que entram dólares em quantidade suficiente para valorizar o real e dificultar a exportação das commodities que até então faziam concorrência a outras nos mercados internacionais. Será difícil sustentar aquilo que poderíamos chamar de derrota (termo náutico, note-se) do Estado brasileiro tendo de atender ao mesmo tempo a tantas solicitações não só contraditórias, mas antagônicas, como diria o falecido Mao Tse-tung.
Até agoras, o barco conseguiu ir passando entre Cila e Caribde. Só que Chávez está apressado e Lula tem de honrar a promissória passada (e isto já é teoria conspirativa) no Fórum São Paulo, do qual seria Presidente. Fórum São Paulo ou não Fórum São Paulo, a política externa do Governo Lula da Silva dá sustentação aos conspiradores. Esse é o problema que se coloca sempre. Quando alguém inventa uma estória dessas, os fatos, muitas vezes, comprovam o que se comenta, mesmo que a intenção de quem pratica o ato denunciado não seja a que se supõe. Azar de quem não se apetrecha ao ter que navegar por entre rochas e redemoinhos.
Para concluir, como Lula da Silva estava reticente no seu apoio a Chávez, embora tivesse aderido ao megagasduto (o Megahospício como é visto em círculos da Petrobrás), o Índio Morales deu o recado dos três que se reuniram antes em Havana. Um cerco dissuasório muito bem montado. O difícil vai ser o Brasil escapar a ele — afinal, depende do gás boliviano (a menos que queira brigar com a indústria paulista) e da energia elétrica de Itaipu. Nem o Conselho de Defesa Nacional conseguirá evitar que a jibóia, que já nos abraça, nos comprima enquanto suspiramos pela amizade eterna de “nuestros hermanos”…
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