O ANARQUISTA E O CÍNICO – Ato I

 

 

 

     O Anarquista é criação minha. Tomaz, o Cínico, é personagem de Ignacio Silone em “A Escola dos ditadores”.

 

 

     ANARQUISTA − Não direi “ponham fogo ao Palácio”. Digo: “Abaixo o Governo”! Se há, sou contra!

 

     TOMAZ, o Cínico − Meu amigo, prisioneiro de tuas idéias, não vês a realidade. Aqui não existe Governo!

 

     ANARQUISTA – Ora, Cínico, tão cínico como teu nome indica, pretendes defender a dominação dos reis e poderosos, negando sua existência. Mas eles aí estão, governando os fracos.

 

     TOMAZ, o Cínico – És tu quem não enxerga um palmo adiante do nariz! Sim! Há um amontoado de pessoas que ocupam cargos públicos e que o povo, na sua santa ignorância, acredita que são o Governo. Mas nada disso é verdade. O Governo não existe!

 

     ANARQUISTA − Bom. Já que insistes nisso, explica-me esta realidade fantasmagórica em que os que mandam não são Governo.

 

     TOMAZ, o Cínico − Falo do Governo que só existe quando apoiado em boas leis e boas armas, não no mando nu e cru, como o de César Bórgia. Este foi, de fato, um Príncipe, mas pouco ligava para a opinião dos fracos e até mesmo à dos fortes que pretendiam a ele igualar-se. Cooptava-os, como se diz hoje — mas prefiro usar a velha palavra: comprava-os com favores ou dinheiro.

      Boas Armas, o Brasil não tem. Os que estão vivendo muito bem em Brasília pouco se importam se as Armas estão prontas ou não. Para esses, basta que elas possam exibir-se nos desfiles comemorativos de algumas datas cívicas — já poucas — e estejam aptas para levar água aos necessitados, distribuir cestas básicas quando há uma catástrofe natural ou substituir as PMs quando entram em greve ou o IBAMA, zelando pelo verde das florestas. Segurança e Defesa, nem pensar. Ora, não havendo Armas prontas, o País está desguarnecido. Quando os que mandam não se preocupam com defender o País que dizem dirigir, não há Governo!

 

     ANARQUISTA − Ainda bem que é assim. Os fracos podem respirar mais tranqüilos. Mas não pretendas dizer que não há leis! Existe ou não um Congresso? Existe ou não esta coisa misteriosa que se chama de Medida Provisória, que o Povo, na Assembléia que o representava, decidiu colocar na Constituição?

 

     TOMAZ, o Cínico − Continuas cego! Pior, ainda! Passaste a acreditar no que dizem os ditos cientistas políticos e todos os políticos que vivem da crendice popular, a de que, por vê-los votar de quando em quando, vivemos numa democracia com Governo. No afã de destruir o Governo, não enxergas a realidade e fazes o jogo dos opressores.

 

     ANARQUISTA – És tu, agora, quem faz pouco de minha inteligência. Mas vamos lá. Continua tua parlenda!

 

     TOMAZ, o Cínico − As leis, bem o sabes, estabelecem a relação necessária entre as coisas. Mas não apenas isto. Afinal, é preciso sempre ver que “coisas” devem ser postas em relação. É possível fazer uma lei, reformando o Código Penal, para dizer que matar não é crime. Sei que não concordas com tal absurdo, mas tomando as palavras ao pé da letra, tudo é possível, desde que os que mandam desejem. Sei que detestas a Religião, qualquer que seja o Deus. Muito bem! Deixemos Religião de lado e pensemos na Moral. E sei que posso assim falar, porque os velhos anarquistas, os que queriam de fato salvar os homens da opressão dos tiranos, sempre pautaram sua conduta, mesmo os terroristas como os Populistas russos, por uma norma moral. A deles, os russos, era que uma vida se troca por outra. Por isso, matavam e sabiam que seriam mortos − e sua morte lhes justificava moralmente o crime que haviam cometido. Sei, muito bem, que não aceitas uma Moral que assente nos Mandamentos ou, como querem os muçulmanos, nas palavras …

 

     ANARQUISTA – … as do Profeta, que autorizavam que se matassem os infiéis ou os que ultrajavam seu nome ou desprezavam Alá…

 

     TOMAZ, o Cínico − Sim! Os que pretendiam romper os laços de solidariedade que uniam a tribo ou o clã. O que significa que normas muito rígidas garantiam que a solidariedade entre seus membros continuasse forte e a tribo ou o clã podia sobreviver em estreita união. Tua interrupção serve, portanto, à minha causa: toda Sociedade tem um conjunto de normas e preceitos morais (isto é, de convivência entre os homens), muitas vezes não escritos, que existem desde o começo dos seus tempos para que ela não desapareça entregue ao prazer de alguns, à cobiça ou à ambição de outros. Mais ainda, que a protege da ação dos que, de fora, vivendo com outras normas ou sem nenhuma, pretendam conquistar as almas, para dominá-las e depois fazer do resto aquilo que desejarem.

      Concordarás comigo numa coisa: ainda que reneguemos a Religião e seus ensinamentos, não podemos fugir à realidade de que todas as Sociedades criam sua Moral e fazem leis para que os que pretendem dela se afastar sejam punidos. É, se quiseres, a Lei da Natureza aplicada às Sociedades! Mais ainda, fazem as leis tendo em vista que elas servem para defender a Sociedade. Acrescentaria, meu amigo, que, quando desaparece das Sociedades esta preocupação e quando, nas ditas modernas, cujas constituições todos dizem que seguem Montesquieu, não se observa a sua lição sobre a separação dos poderes, caminhamos para a ditadura, que é a ausência de Governo como o entendo eu.

 

     ANARQUISTA − Não me venhas dizer que no Brasil não se respeitam estas normas que os opressores inventaram para iludir os fracos e oprimidos.

 

     TOMAZ, o Cínico − Digo e insisto. Cito dois casos recentes. Um deles deve ter-te chocado, pois, conforme aprendi, os anarquistas originais eram homens de moral elevada e respeitavam a Família, como todos os povos respeitam. Respeitam a Família até mesmo os muçulmanos que podem ter várias mulheres − desde que as cuidem igualmente e não desprezem nenhuma…

 

     ANARQUISTA − Mas podiam ter concubinas nos seus haréns…      

 

     TOMAZ, o Cínico − Que se cuidassem se não tratassem as legítimas, vamos dizer assim, com igual respeito e, antes de morrer, não determinassem que todas as suas viúvas gozassem dos mesmos favores. Mas voltemos aos meus exemplos. Não falo como moralista. Discutimos Governo e Leis, não atos arbitrários de vontade dos poderosos.

     Vê a decisão do Supremo Tribunal Federal do Brasil, legalizando a união estável entre pessoas do mesmo sexo. Não poderia tê-lo feito porque a Constituição diz expressamente que uma união estável faz-se entre homem e mulher. Pouco se me dá se dois homens ou duas mulheres resolvem viver juntos. O gozo é deles e eles que se cuidem! Mas um Tribunal, especialmente o Supremo, não pode mudar a Constituição a pretexto de dizer que é preciso eliminar a discriminação e que os homossexuais estão sendo tratados como desiguais. Ora, quando o Tribunal Supremo viola a Constituição invocando argumentos de cabo de esquadra, não há boas leis. Portanto, não há Governo!

     O outro exemplo mostra com maior clareza o que está acontecendo no Brasil. Se o Supremo Tribunal Federal diz que pode mudar a Constituição, o Congresso e a Presidente da República retiram poderes dos Juízes para resolver problemas que os administradores nunca souberam ou quiseram resolver, não existe Governo.

 

     ANARQUISTA − Não me venhas com esta! Como é que retirando poderes dos Juízes alguém pode pretender resolver problemas que se diz não resolvidos ao longo dos tempos? Usas de tua inteligência para construir sofismas.

 

     TOMAZ, o Cínico − Não sabes o que é um sofisma! Não minto. Cito fatos − aliás, publicados no Diário Oficial da União. É a lei (leva esse nome) nº 12.403/2011 aprovada pelo Congresso e sancionada em 05/05/2011 pela Presidente Dilma Rousseff e pelo Ministro da Justiça José Eduardo Cardozo. Valho-me da opinião de especialista para tentar te convencer. Em 60 dias (05/07/2011) ela entrará em vigor e a prisão em flagrante assim como a prisão preventiva só ocorrerão em casos raríssimos, aumentando a impunidade no País. Por ela, a prisão em flagrante ou a decretação da prisão preventiva só ocorrerão em situações excepcionais. Ela prevê a conversão da prisão em flagrante ou a substituição da prisão preventiva em nove tipos de medidas cautelares praticamente inócuas. Isso significa que crimes como homicídio simples, roubo a mão armada, lesão corporal gravíssima, uso de armas restritas (fuzil, pistola 9mm etc.), desvio de dinheiro público, corrupção passiva, peculato, extorsão etc. dificilmente admitirão a prisão preventiva ou a manutenção da prisão em flagrante. Além disso, a nova lei estendeu a fiança para crimes punidos com até quatro anos de prisão, coisa que não era permitida desde 1940 pelo Código de Processo Penal!

     Agora, nos crimes de porte de arma de fogo, disparo de arma de fogo, furto simples, receptação, apropriação indébita, homicídio culposo no trânsito, cárcere privado, corrupção de menores, formação de quadrilha, contrabando, armazenamento e transmissão de foto pornográfica de criança, assédio de criança para fins libidinosos, destruição de bem público, comercialização de produto agrotóxico sem origem, emissão de duplicada falsa, e vários outros crimes punidos com até quatro anos de prisão, ninguém poderá ser preso preventivamente ou permanecerá preso. Em todos esses casos, chamo tua atenção, o Delegado irá arbitrar fiança diretamente, sem análise do Promotor, como se fosse um Juiz. E alterou-se o Código do Processo Penal porque não há prisões suficientes para recolher com um mínimo de dignidade todos os acusados desses crimes enquanto esperam seu julgamento. Ora, quando se aprova um texto desses, que tem o nome de lei, e se coloca em risco a Sociedade, não há mais Governo.

 

     ANARQUISTA − Concordo no que se refere ao sem sentido da coisa, que só serve para esconder a inépcia dos que mandam. Mas isso não basta para dizer que não há Governo.

 

     TOMAZ, o Cínico − Dou-te outro exemplo. Governo, até mesmo para a Anarquia, significa autoridade consentida por todos. Mas significa, também, que os subordinados a essa autoridade devem ter hombridade (nobreza de caráter, dignidade, como se lê nos dicionários) suficiente para afastar-se dos postos administrativos que ocupam quando são desautorizados publicamente pelos seus superiores hierárquicos. Creio que haverá hierarquia (ainda que livremente determinada) na Anarquia, não? Do contrário, será a confusão total e a desagregação da boa Sociedade. Da mesma maneira que, para evitar essa confusão, o superior deve demitir o subordinado que, publicamente, comenta desairosamente decisão sua.

 

     ANARQUISTA − Não entrarei em discussão sobre esse ponto, mas, em princípio, concordo com a idéia geral.

 

     TOMAZ, o Cínico − Muito obrigado. O que aconteceu no Brasil? O Ministério da Educação ia distribuir pelas escolas um “kit” oficialmente destinado a educar os alunos a não terem preconceito contra homossexuais. Na verdade, o que foi feito nada mais era do que uma grosseira incitação à prática do homossexualismo pelos jovens. Foi preciso que os Deputados e Senadores evangélicos, seguidos pelos católicos (a CNBB ficou calada!) ameaçassem criar CPI para ouvir Palocci para que a Presidente da República mandasse parar a distribuição do “kit” e ordenasse mudanças no seu conteúdo. Quem fez e quem autorizou fazer o “kit” foi, assim, desautorado. Alta funcionária do Ministério reagiu a essa e outra medida, a que determina que tudo o que MEC faça que possa afetar os costumes — o que não cabe a esse e a nenhum outro Ministério — deva agora passar pela Presidência — como se à Presidência pudesse caber — dizendo que estávamos no “tempo das trevas”. Isso foi publicado, com seu nome. Vê que ela preferiu viver nas trevas a demitir-se. E vê, também, que a Presidência engoliu as trevas e nada fez. Não há, assim, autoridade. E não há, pois, Governo.

     Depois disso tudo, não sei por que queres acabar com o Governo. O Governo não existe.

 

     ANARQUISTA − Vamos parar por aqui. Vou meditar sobre tudo o que disseste. Se for verdade tudo isto, a situação não é própria para a Anarquia querer difundir seus princípios. A situação está de tal modo confusa e tudo parece caminhar para uma completa desarticulação em que os fortes continuarão mandando e os fracos continuarão a ficar satisfeitos. Até logo.

 

     TOMAZ, o Cínico − Voltaremos, por certo, a falar sobre este e outros assuntos mais. Uma única última observação hoje eu faria — mas sou um cínico. Que eu saiba, o niilismo disfarçado de Anarquia, de defensor da “liberdade” de cada um fazer o que bem entende, vem destruindo qualquer princípio de organização da vida em comum. Fosse eu um anarquista, não um niilista (mas eu sou apenas um cínico), tomaria muito cuidado com a repetição da palavra de ordem “Abaixo o Governo”. Fosse eu um anarquista, não um niilista (mas sou apenas um cínico), estaria mais atento à exploração que fazem da Anarquia, transformando-a na negação de qualquer Autoridade, até mesmo da livremente consentida. Fosse eu um anarquista, não um niilista (mas apenas um cínico eu sou), não permitiria uma propaganda niilista mascarada de “libertária”, com recurso a tantas citações de velhos anarquistas… Fosse eu um anarquista, não um niilista (e cínico é o que sou), não apostaria tanto numa Sociedade em que prevaleça um outro princípio, o da anomia, para fazer valer o princípio que defendo. Quando isso acontecer, quando a Sociedade brasileira estiver totalmente desarticulada — e isso não demorará muito, a continuarem as coisas como estão — ninguém mais dará pelotas a quem quiser igualmente distribuir os bens da Cultura e os produtos da Economia. Pois até para isso é preciso um pouco de ordem. Medita sobre tudo isso. E até breve.

 

 

 

 

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