O ENSAIO GERAL

 

 

     Quero ser claro desde o início: a invasão da Câmara dos Deputados no dia 6 de junho de 2006 (início da “Era da Besta”…?) foi o ensaio geral para a tomada do Estado. O filme apreendido pela Polícia Legislativa e exibido na TV no dia seguinte é disso a prova: foi um ato cuidadosamente preparado para a ocupação do Salão Verde, chamado pelo instrutor de “Salão de Baile”.  

 

     Se não na cabeça daqueles que depredaram o que encontravam pela frente, o ensaio fez parte do plano do ex-guerrilheiro que é líder do movimento. Este, sabiamente, no momento em que tudo acontecia, estava no interior da Casa, procurando ser recebido pelo Presidente Rebelo. Depois, pôde dizer que a violência fora espontânea… E houve quem acreditasse que assim era, ou se esforçasse por interpretar o episódio como mais uma manifestação legítima de quem reclamava a reforma agrária.  

 

     Está no Eclesiastes que Deus, quando quer perder os tolos, primeiro tira-lhes a razão. No malfadado dia em que os 6 se encontraram no calendário, prestigiados comentaristas, cientistas políticos de nome, todos se esqueceram de que o assalto fora a um dos Poderes do Estado e deram sua explicação “científica” e “abalizada” do que ocorrera.  

 

     O comentarista deitou falação, no seu terno bem cortado: entre os responsáveis pelo fato deveria ser colocado o Congresso, porque não cassara todos os do mensalão; o Judiciário, porque não fizera a reforma da lei de execução penal (como se mudar leis fosse função do Judiciário), e o Executivo, cujo Presidente recebe todo mundo e está preocupado com a eleição.  

 

     O cientista político foi na mesma direção, só que se limitando a acusar o Congresso: perdeu legitimidade quando deixou de cassar todos do mensalão. Todos aqueles que nós, que estamos do lado de fora da Corporação Legislativa, desejamos que sejam cassados. Ao investir contra um dos Poderes da República, especialmente contra o Congresso, o analista e o cientista político simplesmente coonestaram a invasão e deram a clara demonstração de que haviam perdido o juízo.  

 

     A prova de que Deus está com os humildes se mostrou com os comentários que ouvi de dois amigos: um, reproduziu o que sua doméstica lhe dissera: “Ninguém mais respeita ninguém, doutor. Estou com medo. Acho que vai haver uma revolução”. O outro comentou a resposta de um pedreiro que mora na periferia: “lá, mata-se todos os dias e ninguém sabe quem é. O Lula, esse não manda nada.” A resposta da doméstica trouxe-me à memória o que um motorista de táxi me dissera depois que o PCC fez o que queria: “Em 15 anos, vai haver uma revolução”.  

 

     Vamos refletir sobre os 15 anos. Nas suas poucas luzes, o motorista traduzia um fino raciocínio sociológico (sem ter ido à escola): para que haja uma revolução, é necessário que o tempo passe para que as pessoas não acreditem mais em uma solução dentro da Lei para seus problemas. Ou como dizia alguém que entendia de fato de revolução: a massa faz a revolução quando tem o amargo sentimento de não suportar mais o status quo. Um e outro teriam razão — mas o raciocínio não se aplica ao Brasil por duas razões simples: uma, que a massa brasileira suporta bem o status quo, na medida em que, como diz a sabedoria popular, em tempo de buriti, cada um cuida de si. Em outras palavras, a sociedade se tornou individualista. Outra, porque a revolução já começou.

 

     Se quisermos fixar uma data — assim como dizemos que o Renascimento começou num dado dia de 1453, quando os turcos tomaram Constantinopla — podemos dizer que a revolução começou em 1979, poucos dias depois da posse do Presidente João Batista Figueiredo. O movimento sindical “novo”, então liderado por Luís Inácio da Silva, vulgo Lula, declarou uma grande greve no ABC. Multitudinária! O Tribunal Regional do Trabalho declarou a greve ilegal. O líder do movimento fez que o movimento continuasse em claro desafio a um ramo do Poder Judiciário, portanto, um braço do Estado.  

 

     Se para os responsáveis pela democracia que se instaurava (os Atos Institucionais haviam cessado a 1° de janeiro) não seria de bom tom que Lula fosse processado pela lei de Segurança Nacional, ao menos poderia ter sido enquadrado no artigo do Código Penal que dispõe sobre a desobediência à Justiça. Nada feito: na democracia que começava, não seria correto atingir essa liderança que havia criado um novo sindicalismo para derrotar o de Vargas, de pelegos. O Ministro do Trabalho do Presidente Figueiredo, senhor Murilo Macedo, veio a São Paulo, conferenciou com Lula e a greve terminou. O Poder Judiciário foi desmoralizado, ultrapassado — pela Presidência da República — e entre os mortos e os feridos, ninguém se machucou.  

 

     Muito bem, o Poder de Estado fora assaltado. Mas a paz reinou em Santo André e no ABC. Aí começou tudo: o Estado recuou diante da possibilidade de confronto com grevistas e do risco, maior, de ser acusado de ditatorial por todos os que falavam e escreviam. Na cabeça dos grevistas, das lideranças, pelo menos, gravou-se a lição: desde que o Estado fosse ameaçado com a possibilidade de conflitos e de sangue, seriam vitoriosos.

 

     Esse foi o primeiro ato do drama. O segundo foram as ações violentas da CUT. É preciso lembrar que a CUT, quando se constituiu, era uma organização ilegal porque a CLT não considerava a possibilidade de se constituir uma central única de trabalhadores. Pela legislação ordinária datada de 1943, que não sofrera grandes alterações até aquela data, só poderia haver confederações de categorias, que deveriam agir isoladamente. Apesar disso, a CUT se organizou — quando apenas no Governo Sarney é que a modificação da lei permitiria que se constituísse legalmente.  

 

     As primeiras ações da CUT foram, como todos nós lembramos, de uma violência nunca vista nas relações trabalhistas. Em São José dos Campos e no ABC, ela deu demonstração de uma nova tática de luta: a ocupação das fábricas. Em muitas ocasiões, as ocupações incluíam atos de violência física contra pessoas e a propriedade: quem quisesse furar a greve sofreria ultrajes maiores ou menores, um dos quais era ser preso naquilo que se chamou de “chiqueirinho”. Em uma das ocasiões, creio que no ABC, os operários da CUT que ocupavam uma montadora, puseram fogo em vários automóveis já prontos.  

 

     A reação a esses atos de violência foi mais de parte da sociedade do que do Governo. Afora a reação da sociedade, preocupada com a escalada da violência, houve outro fator que levou a CUT a mudar sua tática: indústrias mudaram-se do ABC e os novos líderes compreenderam que a violência na luta sindical não era produtiva do ponto de vista de ganhos salariais.  

 

     É preciso ver que essas ações da CUT configuravam três tipos de violência (sem querer copiar dom Helder Câmara e suas quatro violências): contra as pessoas, contra a propriedade e contra a Lei. A rigor, poder-se-á dizer que as três podem ser resumidas na última, pois a violência contra a pessoa e a propriedade são crimes previstos no Código Penal. Concordo, mas qualifico minha posição: a violência contra a pessoa e a violência contra a propriedade são sentidas emocionalmente — e sublinho o sentidas emocionalmente — por todas as pessoas que dela foram vítimas e pelos que se arrepiam com esse tipo de ação. A violência contra a Lei, essa é feita contra um fato que, para a maioria das pessoas, é mais abstrato do que um desejo de ser multimilionário. Quem não tem idéia de seus direitos — e essa é a posição da maioria dos brasileiros — muito menos sentirá que a Lei foi violada. A reação emocional dá-se contra o ataque à pessoa e à propriedade — não contra a norma jurídica, abstrata como o Estado. O Governo, repitamos à exaustão, esse é concreto para o cidadão (que, com isso, demonstra ser mais súdito do que cidadão); o Estado é uma abstração. É, como diria um teórico do Direito, a comunidade criada pela ordem jurídica. A maioria da população, dos eleitores (semi-alfabetizados ou analfabetos) saberá que significa isto?  

 

     Esse fato — a violência contra a Lei — confirmou a revolução que se iniciava. E que foi incentivada, no plano do coração e das mentes, pela propaganda contrária aos Governos de 1964 a 1985, que se acrescentou a uma série de fatos sociais que contribuíram para enfraquecer o tecido social e acovardar os Governadores de Estado — que inclusive se recusavam a fazer qualquer coisa para evitar greves nas Policias Militares, pois estavam certos, como me disse o então Comandante do IV Exército, que o Exército entraria em força para assegurar a ordem pública.

 

     As ocupações de terra pelo MST foram o ingrediente final para que a idéia de revolução se instalasse no coração e nas mentes das lideranças, de desempregados e daqueles que ainda sonhavam com Che Guevara e o socialismo cubano.  

 

     Ponha-se a débito dos Governos Federais o fato de estarem vindo financiando organizações legalmente registradas e controladas pelo MST, que é uma entidade fantasma, pois não tem registro legal – organizações que, reconhecidas como ONGs, mascaram seus objetivos.  

 

     Não responsabilizemos o Governo Federal por culpa que não tem em primeira instância. Quem responde pela manutenção da ordem pública é a instância estadual. Esta é quem deveria ter realizado as primeiras ações repressivas contra invasões de terra — os Governos estaduais e a Justiça estadual. Em São Paulo, mesmo, houve caso em que um Juiz não concedeu a imissão de posse porque a invasão fora feita apenas em uma porcentagem da fazenda… A maioria dos Governadores, se não todos, foi omissa, preferindo jogar a responsabilidade pela inação nos ombros do Governo Federal.  

 

     Aquela idéia que acompanhou o fim da greve no ABC em 1979 transformou-se hoje em moeda corrente: as invasões de terra são feitas por mais de 100 pessoas (ou 500). A desocupação da terra por mandado judicial e emprego das PMs levaria a um resultado danoso para a imagem da autoridade. Portanto, nada se faz — ou, perdão: entregaram-se e ainda hoje se entregam cestas básicas para alimentar as famílias que ocupam ilegalmente as terras.  

 

     A revolução já foi feita na medida em que a idéia de Lei e a de Estado já não mais faz parte da maneira de pensar dessas pessoas que violam a lei. A doméstica de meu amigo, aquela a que me referi no início, tem razão em ter medo; é que o pedreiro também tem razão, pois Lula nada manda. Nada manda porque os que, na sociedade, poderiam reclamar a imposição da Lei têm receio de serem chamados de reacionários, de fascistas e, ainda não, mas em breve, de gorilas — como em 1963 e 1964.

 

     O ensaio geral para a tomada do Poder foi feito.  

 

     Aguardemos, confortavelmente sentados, que apareça, no meio do MST, do MLST ou dos Sem Teto urbanos, alguém com a audácia de Adolf Hitler ou Lênin para que se tome de fato o poder de Estado — contra nós, porque totalitário. Então, o novo Governo, que será dirigido por um partido, traçará suas diretivas e dará suas ordens às Forças Armadas como no III Reich e na URSS.

 

  

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