O MEDO DE PENSAR A CRISE

OESP  

 

     A pergunta traduzia, por uma parte, incredulidade; por outra, um certo desespero: “Por que não temos oposição no Brasil?” A única resposta que me ocorreu foi mais desesperada: “Mas há situação?” Na verdade, não se discutia a existência de partidos; cuidava-se de saber por quê a oposição não era capaz de apresentar um programa que saísse do lugar comum, e, ao mesmo tempo, a situação timbrava em ficar no lugar comum que construiu ao longo desses quatro anos. O dramático da coisa toda está nisso: é que, embora a crise seja do Estado, o pensamento político da oposição e o da situação não cuidam de como se reconstruirá o Estado, a não ser partindo de premissas econômicas, não político-institucionais. Quase sempre tenho a sensação de que pensar a crise do Estado, colocar em dúvida o “idealismo da Constituição” e buscar encontrar uma solução para a crise não credencia ninguém a entrar no cidade dos bem-pensantes – esta República dos que se deixaram cooptar pelo prestígio de dela ser cidadão honorário. Pensa-se economia. O déficit público tornou-se tema obrigatório, como se fosse alguma coisa que brotasse da terra e não da crise do Estado.  

 

    O triste é que há tempos se tem consciência da crise. Não foi o Presidente Sarney, recebendo uma turma da Escola Superior de Guerra, quem afirmou que o Estado brasileiro caminhava para a falência? Para repetir Amaral Neto – nos tempos em que editava O Pasquim contra o General Lott da “novembrada” de 1955 – o Presidente parece ter falado, mas não dito. Porque ninguém se incomodou com o que havia dito. Talvez nem ele, que deixou as coisas andarem como se não lhe dissessem respeito.  

 

    Talvez haja uma explicação para este drama nacional de praticamente ninguém se preocupar com a crise institucional do Estado; com o fato de haver um Estado constitucional – Executivo, Legislativo, Judiciário – e outros (insisto, agora, no plural) – com seus executivos, legislativos e judiciários concentrados na mesma pessoa ou num pequeno grupo de pessoas que têm armas e ponto final. A explicação é simples: é que no dia em que se tornar aguda, dolorida, a consciência de que o Estado constitucional é uma ficção que arrecada impostos, veremos que os estados anticonstitucionais são mais reais do que aquele que se ostenta nas embaixadas e se exibe nos desfiles militares em Brasília.  

 

    Um jornalista português, escrevendo sobre a situação em Guiné-Bissau, produziu esta frase que se aplica muito bem ao medo que temos de pensar a crise do Estado: “Os morteiros acordam antes das pessoas.” Temos medo de acordar os morteiros, refletindo sobre a crise do Estado. Não medo de que os militares voltem a intervir – esqueçamos esse período; o “partido fardado” morreu com mea-culpa de seu intelectual. Temos medo, isto sim, de defrontar-nos com a realidade dos morteiros que governam a vida real de milhares de pessoas nas grandes cidades. Não foi publicado, essa semana, que empresas comerciais do Rio criaram departamentos de logística para programar entregas nos morros? E não foi publicado que para desenvolver a atividade econômica, os responsáveis sabem que precisam conhecer quem manda na rua onde vão fazer a entrega? E não se publicou, também, que os caminhões de entrega são monitorados por satélites para que as portas se fechem automaticamente se houver alguma coisa de errado no planejamento logístico e a polícia seja avisada? Publicou-se, com grande destaque. E também que as empresas querem jogar o custo do seguro nas costas dos entregadores….  

 

    Gostaria de saber se alguém, no Estado constitucional, se preocupou com o fato de que o comércio do Rio reconhece o Estado anticonstitucional e obedece a suas “normas jurídicas”…

 

 

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