O SABRE CONTRA O FLORETE – 2

 

 

     Permito-me esclarecer, evitando confusões decorrentes de incorreta interpretação, que designo por “sabreur” todo aquele que usa argumentos de paixão para comover a opinião pública e facilitar a condenação por tribunais internacionais (esta a verdade) de quantos trabalharam nos órgãos de segurança a partir de 1968.

 

     No comentário anterior, afirmei que os “sabreurs” não pretendem que o debate sobre a anistia ou não dos que são acusados de tortura se trave no campo do Direito. Houve um certo exagero na afirmação. De fato, que afirmam eles? Que a tortura é um crime imprescritível. A prova do que afirmam? Que assim está na Constituição Brasileira de 1988 e em diferentes tratados e convenções internacionais que o Brasil assinou. Esse é, forçoso reconhecê-lo, um argumento jurídico, de Direito Positivo (muito embora muitos dos que o sustentam não gostem de ser tidos como defensores do Positivismo Jurídico). Estamos, pois, no campo do Direito. Do que se deve ter consciência é que os que sustentam a tese da imprescritibilidade se esquecem, no afã de conquistar a opinião dos letrados e dos semiletrados que compõem a maioria do corpo eleitoral brasileiro, de que o debate se trava no campo do Direito.  

 

     Com o objetivo de mostrar que a tortura é imprescritível, os “sabreurs” invocam a Constituição Brasileira de 1988, a lei 9.455/97 e os tratados internacionais assinados por Governos brasileiros. É no campo do Direito, portanto, que a discussão deve ser travada e não no dos ataques, irracionais alguns, inspirados pela paixão, outros — quando não motivados por uma estratégia política das mais refinadas. O Ministro Tarso Genro, ao dar início à polêmica, sustentou dois argumentos que reputou jurídicos. O primeiro, em suas palavras (que reproduzo de memória) seria o seguinte: as prisões dos que combatiam o Governo, por violentas que tivessem sido, deram-se de acordo com a ordem jurídica vigente, ainda que esta fosse contestável. O segundo, é que nessa ordem jurídica — contestável, mas aceita como premissa para discussão — não havia dispositivo algum que autorizasse a tortura. Por isso, os que tivessem praticado a tortura teriam cometido um crime contra os que, conforme o argumento, tivessem sido presos segundo normas jurídicas existentes à época.

 

     A quanto minha memória alcança, as últimas prisões efetuadas pelos órgãos de segurança deram-se no Governo Geisel em 1975, verificando-se a morte de Herzog em outubro daquele ano e a de Fiel Filho em 1976, com a diferença de alguns meses. O General Ednardo Dávila Mello foi exonerado do Comando do II Exército logo em seguida, substituído pelo General Dilermando Monteiro. O General Dilermando, poucos dias ou semanas após a assunção do Comando, declarou que tudo estava na mais perfeita ordem no II Exército. Dias depois dessa declaração, os dirigentes do PC do B foram mortos na Lapa em operação realizada pelos órgãos de segurança. O Presidente Geisel não transferiu o General Dilermando de Comando. Não tenho memória de outras prisões depois de 1975.  

 

     Convém, portanto, buscar esclarecer o que o Legislador quis dizer, ao elaborar a lei da anistia, sem sair do campo do Direito, que é onde o Ministro da Justiça coloca o problema: que os crimes políticos e conexos estão anistiados.  

 

     Os “sabreurs” não se preocupam em discutir essa questão, para eles de somenos importância. Sua argumentação consiste em destacar que os agentes dos órgãos de segurança do período cometeram um crime imprescritível. Mas, para surpresa de muitos, dizem também que os ilícitos penais cometidos pelos que se opunham aos Governos do período eram e são legítimos por natureza. Donde seguir-se que os Governos eram ilegítimos e que todo o sistema político igualmente não tinha legitimidade. A conclusão que não tiram, mas podemos fazê-lo, é que, se eles consideram legítima a luta armada contra um sistema político que consideram ilegítimo, o MDB e seus representantes devem ser considerados cúmplices dos Governos ilegítimos e, portanto, condenável sua ação em favor do “restabelecimento das liberdades democráticas”.

 

     Voltemos ao Legislador e sua intenção. Não se sustenta o argumento, de alguns “sabreurs” mais violentos, de que a lei da anistia não é legítima (sempre a legitimidade!) porque foi votada no Governo Figueiredo, durante o qual o Congresso estava sob constante pressão militar! Poderia dizer que o argumento é de cabo de esquadra; creio, porém, que a referência a “cabo” possa ser ofensiva. Digo, então, que é de meia tigela. Os que viveram aqueles dias sabem: 1. que os últimos remanescentes da “linha dura” não queriam que se concedesse anistia aos subversivos; 2. que, quando o Presidente Figueiredo ameaçava “chamar o Pires” — “se essa agitação continuar, chamo o Pires”, Ministro do Exército —, era para acalmar os “radicais”, como os chamava o General Golbery, e 3. que o Congresso teve plena autonomia desde janeiro de 1979, pois não precisava temer cassações ou prisões arbitrárias. Os Atos Institucionais tinham caducado e o habeas corpus restabelecido.  

 

     A anistia, pois, foi um ato de vontade do Presidente Figueiredo e de um Congresso livre, tendo em vista encontrar a porta que permitisse ao País trilhar novos caminhos. Inclusive, aceitando que voltassem a integrar o mundo político aqueles que se tinham levantado de armas na mão contra a situação. Na votação da lei, o Congresso pautou-se pelo princípio da eqüidade: se alguém que cometeu crime conexo ao opor-se ao Governo deve ser anistiado, os que, na defesa da ordem, tivessem cometido delito conexo deveriam ser também anistiados.

 

     A questão — e sempre volto a ela — é saber que entendeu o Legislador por “crimes políticos e conexos”. Com o que, também, retornamos ao problema Koba-Stalin que apresentei no último artigo. Ao assaltar bancos, Koba cometia um delito comum, ou Stalin cometia um crime político?

 

     Aceitemos, gratia argumentandi, que “o crime constitui uma espécie particular do injusto (delito), isto é, de ação culposa e ilegal” (pág.71) que tem como conseqüência a pena. O importante nesta definição já secular é “ação”. Os efeitos do injusto e, conseqüentemente a pena, diz o tratadista, “só se ligam a determinados fatos. As circunstâncias constitutivas do injusto não podem ser acontecimentos que independam da vontade humana, mas somente ações humanas” (pág. 217 – Cf. Franz von Liszt, “Tratado de Direito Penal”, tomo I, 1a. edição, Russell, Campinas, 2003).  

 

     Um cidadão pode estar contra o Governo e, ainda assim, não agir: limita-se a guardar para si, no máximo trocando idéias na intimidade do lar, as críticas que sabe justas contra as autoridades. Poderá, perdendo noção de que o regime que contesta é autoritário e “policial”, discutir o assunto com amigos no bar, pouca atenção prestando a quem está nas mesas ao redor. Começou a agir — mas ainda se poderá argüir em sua defesa que não tem outra intenção a não ser a de expressar uma opinião que julga importante seja conhecida para que não pensem mal dele. Quando, porém, a conversa de bar não é a substituição de uma sessão de psicanálise, mas visa a iniciar a organização de um grupo que se disponha a fazer oposição ao Governo (oposição de qualquer tipo, pichando paredes ou distribuindo panfletos) o cidadão entrou no reino da AÇÃO e está, portanto, cometendo um injusto, um crime, à luz das leis vigentes. Este é o tipo de crime que se pode dizer político. O partido de oposição que não pretende derrubar o Governo e se comporta como se fora a “leal oposição de sua majestade”, não age no campo na ilegalidade; sua ação faz parte do sistema, a atuação dele no Congresso sendo vista como o outro lado da moeda, desempenhando o papel do ouvidor necessário para que o Governo aja melhor. Legitima o Governo.

 

     O crime político é, pois, um conjunto de ações com finalidade determinada; pressupõe a existência de uma organização. Essa proposição nos leva a uma distinção importante, que retomo do mesmo autor: “Conspiração é o concerto de várias pessoas para a prática de um ou mais crimes determinados; associação de malfeitores é a reunião de várias pessoas para o fim de cometerem crimes individualmente não determinados”. Chamo atenção, antes de prosseguir, para o cuidado com que Franz von Liszt, que venho citando, usa as palavras: Conspiração é “concerto”; associação de malfeitores é “reunião”. O crime político, nessa linha de raciocínio, é uma “conspiração”, um concerto de várias pessoas para a prática do crime de mudar o sistema político e derrubar o Governo. Essa ação final requer a prática de crimes determinados. O que o Legislador considerou “crimes conexos”.

 

     Que se pode considerar como crimes conexos?

 

     Plácido e Silva cuida do assunto em seu “Vocabulário Jurídico”: “A conexidade ou conexão criminal não tem sentido diverso da conexão civil, desde que, na conexão criminal, o elemento dominante é o da unidade do objeto, isto é, da unidade do vínculo real, ou melhor dito, da unidade de delitos. (…) A conexidade ou conexão importa na existência de delitos que se encontram conexos, isto é, que se mostrem unidos por uma relação tão estreita que não podem, de igual modo, ser considerados isoladamente”. E acrescenta logo a seguir: “A conexão de delitos justifica a conjunção ou união deles em um só processo, para que sejam submetidos a julgamento em uma só jurisdição e juízo” (Plácido e Silva, “Vocabulário Jurídico”, Editora Forense, Rio der janeiro, 2a. edição, 1990).  

 

     É de ver, ainda no que se refere à conexidade criminal, se o agente não agiu movido pelo que von Liszt chama de “extrema necessidade”. Ao discorrer sobre o tema e comentando várias legislações do século XIX, diz: “É notável a redação do Projeto (de Código Penal) austríaco: ‘A lei penal não tem aplicação a atos praticados em uma situação de extrema necessidade que de outra forma não possa ser remediada, tendo o agente por fim afastar de si ou de outrem um dano iminente e fora de proporção que ameaçasse o corpo, a liberdade ou os bens’” (Idem, pág. 218).

 

     A boa lógica obriga a que se reconheça que, se a conspiração dos que se opunham ao Governo era um crime político, também deve ser considerado política a ação dos que sustentavam a ordem jurídica que os conspiradores pretendiam subverter, substituindo por outra. O Ministro da Justiça admite (!) que as prisões eram feitas de acordo com uma ordem jurídica contestável, mas ainda assim ordem jurídica. O que não admite é que a tortura, quando houve, possa ser considerada conexa, pois nada havia na legislação que a permitisse. O Ato Institucional nº 5, ainda que podendo ter sua legitimidade contestada, era legal — e o Ministro da Justiça o reconhece ao dizer que as prisões se faziam dentro de uma ordem jurídica, contestável, embora. Ele não autorizava a tortura, da mesma forma que não autorizava expressamente a censura à Imprensa, que, apesar disso, exerceu-se. Vendo os fatos da perspectiva da legalidade dos atos, e sem paixão, é mister reconhecer que o Ato Institucional nº 5 não substituiu os Códigos, muito menos as leis ordinárias que não entrassem em conflito com a vontade política expressada nele. Quero dizer que o Código Penal continuou em vigor, e com ele o Código do Processo Penal, da mesma forma que o Código Civil, o Tributário, o Comercial etc.

 

     Voltemos aos argumentos dos “sabreurs” sobre a legislação que condena a tortura como crime e a torna imprescritível.

 

     A discussão é jurídica; convém, pois, ter presente os fatos jurídicos, isto é, as leis que condenam a prática da tortura. Nada melhor para isso, do que transcrever, apesar de longa, a exposição que Alberto Silva Franco, renomado especialista, faz sobre a recepção de leis internacionais pela Ordem Jurídica brasileira. Vamos aos fatos:

 

     “A prática das tortura está expressamente referida na Constituição Federal — art. 5º, inc. XLII — como sendo um fato criminoso equiparável aos crimes hediondos e que não poderia, como o terrorismo e o tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, ser afiançável, nem suscetível de graça ou de anistia. Apesar da explícita menção constitucional ao crime de tortura e de ter o Brasil ratificado, respectivamente, em 28.09.1989 e em 20.07.1989, a Convenção contra a Tortura e outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos e Degradantes, de 1984, e a Convenção Interamericana para Prevenir e Punir a Tortura, de 1985, assumindo o compromisso internacional de considerar delitos em seu direito penal, ‘todos os atos de tortura e as tentativas de praticar atos dessa natureza’, nenhuma providência foi seriamente adotada até março de 1997 para atender quer ao texto constitucional, quer aos compromissos internacionais” (Alberto Silva Franco, “Crimes hediondos”, RT, São Paulo, 5a. edição, 2005, página 122). Pediria ao leitor que registrasse as datas mencionadas, todas posteriores a 1979 (inclusive a da Constituição, que é de 1988), quando, sabemos, os Atos Institucionais perderam validade e o habeas corpus foi restabelecido.

 

     Que aconteceu em março de 1997 que permitiu que se preenchesse o vazio legal acusado por Silva Franco? Nenhum movimento que tivesse como objetivo rever a lei da anistia — com o que volto à minha pergunta inicial: por que só agora, 30 anos depois? Silva Franco relata os fatos. É longa a citação, mas reputo necessária e indispensável porque relata as circunstâncias que levaram a que se votasse a lei:  

 

     “Em março de 1997 — diz ele — as arbitrariedades praticadas por policiais militares na Favela Natal, em Diadema, Estado de São Paulo, tiveram enorme repercussão, em nível nacional e, até mesmo, internacional. O que, em verdade, não era fato isolado, mas sim, uma postura que se repetia com freqüência na ação de policiais, militares ou civis, e que, em medida bem alargada, era tolerada, nos diversos escalões hierárquicos das corporações a que tais policiais pertenciam, passou, subitamente, pelos meios de comunicação de massa, por razões que não foram ainda devidamente esclarecidas, a constituir um fato merecedor de reprovação geral. (…) Com isso apressou-se, sem maiores discussões, um dos projetos de lei sobre tortura que dormia, a sono solto, no Senado da República (há notícia de vários projetos de iniciativa de congressistas e de um projeto de iniciativa do Poder Executivo, datado do ano de 1994) e, com rapidíssimas votações, foi transformado na lei 9.455, de 7 de abril de 1997, publicada no Diário Oficial da União de 8 de abril de 1997”. (Ibidem)  

 

     Esteve-se, portanto, diante de uma comoção social (relativa, convenhamos) provocada por um fato que não era novo nem desconhecido dos meios de comunicação e das autoridades. Foi essa comoção que levou a que se “acordasse” de seu sono profundo um projeto de lei para cuja aprovação ninguém se empenhara até então.  

 

     Com esses esclarecimentos, podemos voltar ao nosso tema, o da luta dos “sabreurs” contra os que manejam floretes.

 

     A discussão centra-se em torno da imprescritibilidade do crime de tortura. Muito bem. Que lei tipificava esse crime até 1997? Nenhuma.

 

     Ao afirmar que a tortura é crime imprescritível, o Ministro da Justiça, que parece entender de leis, e os promotores públicos que sustentam a batalha e que têm também a obrigação de entender de leis, e todos os “sabreurs”, que não têm obrigação de entender delas, simplesmente fazem por esquecer ou desconhecem o Direito, especialmente um de seus Princípios Gerais. Consideremos ainda que um texto em jargão jurídico não apresenta a mesma dificuldade que decifrar a Pedra da Roseta…

 

     No Vocabulário Jurídico de Plácido e Silva pode ler-se: “No sentido jurídico, notadamente no plural, (princípio) quer significar as normas elementares, ou os requisitos primordiais instituídos como base, como alicerce de alguma coisa. § E, assim, princípios revelam o conjunto de regras ou preceitos que se fixaram para servir de norma a toda espécie de ação jurídica, traçando, assim, a conduta a ser tida em qualquer operação jurídica. § Desse modo, exprimem sentido mais relevante que o da própria norma ou regra jurídica. Mostram-se a própria razão fundamental de ser das coisas jurídicas, convertendo-se em perfeitos axiomas”.  

 

     A não-retroatividade das leis é um desses princípios gerais.

 

     No vocabulário jurídico de Plácido e Silva, que está ao alcance de qualquer leigo, encontramos o sentido em que se toma “retroatividade” e “retroatividade das leis”:  

 

     — Retroatividade “exprime a qualidade ou o caráter do ato ou da ação que possa exercer efeito em coisas passadas ou afetar coisas passadas”.

 

     — Retroatividade das leis: “É a expressão usada para indicar a condição ou a qualidade de certas leis que, promulgadas, exercem eficácia mesmo a respeito dos atos passados, regulando-os e os submetendo a seu regime. Em princípio, as leis são irretroativas, não retrocedem para levar seus efeitos aos atos pretéritos. Regulam somente os atos que se sucederam à sua promulgação”.  

 

     A Constituição Federal, a que os “sabreurs” recorrem sempre, estabelece no seu artigo 5º, XL, sem mencionar uma clara distinção entre a lei civil e a lei penal, que “a lei penal não retroage, salvo para beneficiar o réu”. E antes havia estabelecido, no inciso XXXIX do referido artigo 5º, que “não há crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação legal”.

 

     Esses dois incisos, a rigor, podem ser tidos como princípios gerais de Direito.  

 

     A não-retroatividade da lei penal era reconhecida enquanto princípio por todos que entendem de Direito antes mesmo que a Constituição de 1988 o inserisse no capítulo “Dos direitos e deveres individuais e coletivos”. Os “sabreurs” invocam a Declaração dos Direitos do Homem de 1789 para lançar seus acusados à execração pública. É interessante consultar alguns especialistas que a comentaram.  

 

    Diz Bruno Genevois, à época Conselheiro de Estado, secretário geral do Conselho Constitucional da França: “Minha terceira e última observação consistirá em voltar à questão de saber se certos direitos proclamados pela Declaração de 1789 não têm, na prática, mais importância que outros. Referir-me-ia, sobretudo, à noção de ‘peso específico’. A esse respeito, se consideramos matéria penal, parece-me que o princípio da não-retroatividade da lei penal mais severa figura no número dos princípios que não toleram atentados”.  

 

     Sobre o mesmo assunto, François Luchaire, antigo membro do Conselho Constitucional da França, fez algumas observações no Colóquio realizado em maio de 1989 pelo Conselho Constitucional. Traduzo-as: “O Conselho… aplicou no espírito de 1789 as disposições mais precisas da Declaração; é o caso do princípio das não-retroatividade das leis em matéria penal, princípio que o Conselho estendeu, aliás, a toda matéria repressiva…” (Conseil Constitutionnel, “La déclaration des droits de l’homme e du citoyen et la jurisprudence”, PUF, Paris, 1989).

 

     Essas considerações que já vão longas demais, servem para estabelecer o seguinte:  

 

     1. Se tortura houve, o fato não pode ser considerado um “injusto” na medida em que não havia lei que caracterizasse a ação como criminosa — hoje havendo, a lei penal não retroage;

 

     2. Se houve ação quer possa ser tida como criminosa, estava tipificada no artigo 322 (violência arbitrária), combinado com o artigo 61, II, f, do Código Penal. Nessa hipótese, como já disse o Presidente do Supremo Tribunal Federal, os eventuais crimes estariam prescritos. Prescritos, acrescentaria eu, porque os tratados internacionais recepcionados pela legislação brasileira, a Constituição Federal e a lei 9.455 são posteriores aos fatos.

 

     Se assim é, sou obrigado a voltar à questão: por que, passados 30 anos, move-se essa batalha política e publicitária? Há indícios do porquê. Um deles é a decisão da comissão que cuida de avaliar os casos dos que foram alegadamente torturados ou prejudicados em sua vida profissional ou pessoal pelos Governos de Presidentes militares, merecendo indenização pecuniária, de transferir ao Ministério Público Federal de São Paulo, empenhado em que a Justiça civil reconheça os Coronéis Ustra e Santos Maciel como torturadores, os documentos que pôde recolher ao longo de seus trabalhos. Essa decisão permitirá que os processos passem a ter âmbito nacional, não se limitando ao território de ação do Dói-Codi de São Paulo.  

 

     O importante, na análise dessa campanha iniciada 30 anos depois dos fatos que denuncia, é atentar para a circunstância de que não se cuida da condenação penal de ninguém, apesar do estardalhaço que se faz em torno da não-prescrição. Sabe-se que houve prescrição e que a lei penal não retroage. O importante, para os “sabreurs”, é obter da Justiça Civil uma decisão que aponte os eventuais réus como culpados. Depois, o assunto transfere-se automaticamente para a jurisdição universal, alçada dos que, no Exterior, a exemplo do Juiz Garzón, pretendem estabelecer a sua Justiça no mundo. Especialmente agora, que se identificou como sendo de cidadão espanhol uma ossada encontrada no cemitério de Perus.  

 

     Espero que essas linhas possam servir, de algum modo, aos que manejam floretes na sua luta contra a cavalaria dos que desembainharam sabres e acometem os infantes numa luta sem quartel. E também colaborem com colocar ponto final em uma discussão surrealista. Que deverá ser posto, a menos que ela seja mal intencionada.

 

  

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