Muitos terão esboçado um sorriso, poucos terão entendido o grito de dor de João Ubaldo Ribeiro em sua crônica de 03/11/13: “Não tem essa besteira de Brasil-Brasil-Brasil, isto é coisa para os iludidos de minha marca, que agora estão abrindo os olhos. Agora tem o Brasil das mulheres e o Brasil dos homens (…) o Brasil dos negros, o Brasil dos brancos (…) o Brasil dos evangélicos e o Brasil dos católicos (…) e nem sei quantas categorias, tudo é dividido direitinho e entremeado de animosidades, todo mundo agora dispõe de várias categorias para odiar. (…) esquece esse negócio de Brasil, não tem mais nada disso!”.
João Ubaldo nos está dizendo que aquilo chamávamos de sociedade brasileira deu lugar a tantas corporações quantos sejam os que, minimamente organizados, têm alguma influência sobre os que são tidos como formadores de opinião. Influência que se transforma em poder, para reclamar tratamento distinto do que recebem os milhões que compõem o corpo eleitoral – os cidadãos.
Se é possível esquecer, hoje, “esse negócio de Brasil”, é porque o ovo da serpente foi posto nas florestas, nos sertões e nas cidades há muito tempo, antes mesmo que cedêssemos à sedução do mercado e aceitássemos que “grana não tem nacionalidade” ─ a partir do momento em que não se cuidou de superar as servidões da infraestrutura e se permitiu que houvesse vários Brasis: o do Norte, o do Nordeste, o do Centro-Oeste, o do Sudeste e o do Sul). Eram Brasis distintos, e tão distintos continuam hoje que ilustre autoridade militar declarou, em entrevista, que o Norte é colonizado!
Não se culpem, porém, apenas as infraestruturas pelo progressivo desaparecimento da idéia de Brasil. O descaso com as comunicações que permitiriam o contato freqüente e duradouro entre as populações, umas influenciando outras, as mais adiantadas do ponto de vista da Civilization puxando as outras para a Kultur ─ esse descaso tem raízes no isolamento, mas também no regionalismo. Boa parte dos que orgulhosamente pertencem ao escol culto tem sua cota de responsabilidades na destruição da idéia do Brasil, vale dizer do Estado brasileiro. Nossa História passou a não ter grandeza ─ grandeza alguma! Os que fundaram o Império são vistos até hoje como indivíduos não só estúpidos como sem etiqueta alguma no trato social. Não importa que D. Pedro I tenha dado ao País uma constituição que durou mais de 40 anos com uma única emenda, revogada quando ficou claro que a unidade do Estado estava em jogo. A guerra do Paraguai não decorreu de uma invasão do território nacional ─ foi feita pelo Brasil a mando da Inglaterra! Outras tantas atitudes foram tomada por pressão dos norte-americanos. Seria de estranhar que um País sem História, sem brasileiros, portanto, sem consciência de Brasil, fosse, hoje, não um Estado, mas a reunião de corporações? É de estranhar que não saiamos da crise se todos nossos males são sempre dados como efeito da índole da raça e dos interesses externos?
Não apenas a infraestrutura e a destruição da História nos conduziram ao grito de dor que João Ubaldo emitiu. É preciso ver que a serpente pôde vir ao mundo ─ ao nosso mundo político e social ─ quando deixamos de ser cidadãos e passamos a ser membros de uma categoria: metalúrgicos, bancários, comerciários, jornalistas, nem sei mais quê. Consagrou-se a corporação como a reunião de indivíduos com interesses distintos dos demais e sem coisa alguma que os unisse, uns aos outros, a não ser o mero interesse imediato. Quando criou-se o PT, nada mais se fez que seguir o caminho corporativo ─ e basta ver a distinção semântica e política entre “Partido Trabalhista” e “Partido dos Trabalhadores” para entender o processo. E atentar para a divisão das bancadas no Congresso Nacional: os ruralistas, os evangélicos, os verdes, os que não se dão nomes, mas votam corporativamente. Ao nos identificarmos como membros de uma categoria, deixamos de ser cidadãos e passamos a ser apenas indivíduos ligados por laços de interesse curto, ainda que vil. Não nos projetamos, nem no tempo, nem no espaço.
Há mais! Um olhar, superficial que seja, a Mannheim permite compreender que a sociedade e o Estado corporativos ─ porque o Estado é, hoje, também uma corporação ─ mataram a Política, e não mais conseguimos nos ver como cidadãos de um Estado nacional. Que diz Mannheim? Que a Política se faz naquele reino das condutas que não são reguladas administrativamente pelo poder de Estado. É um reino imenso. Sendo campo em que as ações são livres, é no confronto que os diferentes grupos darão asas à imaginação para criar condições que permitam resolver o conflito. Não é jogo de soma zero. É jogo cujas regras são feitas no seu desenrolar ─ com maior ou menor agressividade, mais ou menos astúcia, maior ou menor consciência dos fins, das alianças e compromissos a serem feitos e até da necessidade de parar a ação. Essa é a natureza e a razão de ser da Política!
O Estado Novo, criando os sindicatos sustentados pelo Imposto Sindical e organizados em categorias, matou o jogo da Política nas relações de trabalho, já que as tornou regidas por atos administrativos, não políticos. O jogo é hoje de curto alcance porque os interesses a defender são estritamente imediatos e mediados pelo Estado. Essa relação medíocre foi levada aos Partidos políticos, que se organizam como corporação e a agravam “resolvendo” problemas sociais com “bolsas” ou prebendas administrativas.
As crises de Junho mostraram a falência do Estado e que, não tendo os Governos impedido a presença do crime organizado no território, a idéia do Brasil perece. Porque a idéia de Estado – que não é o mesmo que a idéia de corporação, a de algo relativo a uma “categoria” – morreu.
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(publicado nesta data em “O Estado de S.Paulo”)
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